10/03/2015

Os ratos




Pelo Carnaval, encontrei um amigo que já não via há uns anos. Falou-me com entusiasmo de uma compra que entretanto fizera — uma casa no campo que, segundo disse, era um elixir miraculoso para a pressão da vida na cidade. Satisfeito com o meu interesse, acabou por insistir em me emprestar a casa, para lá ir passar uns dias. Eu aceitei com agrado e muita curiosidade. Mas o meu amigo avisou-me:
— Olha que é capaz de haver lá ratos! Da última vez que lá estive, havia.

Na manhã do sábado seguinte, rumei às Beiras, com a minha mulher. Mas antes preveni-me. Fui à drogaria e comprei uma embalagem de pastilhas de raticida.
Efetivamente, o sítio é lindíssimo: muito arborizado, junto ao espelho de água de uma barragem, com a sombra azulada de uma serra, em fundo. Feito de encomenda para um fim de semana romântico. E a vivenda tem o encanto das casas tradicionais: antiga, toda em granito, com lareira, e quartos forrados a madeira.
Mas, realmente, está infestada de ratos. Na cozinha, havia restos de embalagens que o meu amigo lá teria deixado — pacotes de sumos, garrafas plásticas de refrigerantes, caixas de flocos — tudo misturado com xixi e caganitas. O aspeto da cozinha era desolador.

Foi uma tarde de sábado pouco romântica. Limpar toda aquela porcaria, provocou-nos sentimentos perversos de vingança. À noite, antes de adormecer, distribuí uma meia dúzia de pastilhas, pelos cantos da cozinha, sentindo o rancor prestes a ser saciado. De noite, uma vez que acordei, apercebi-me, nitidamente, de um restolhar na cozinha. Virei-me para o outro lado, com um sorriso consolado.

Ao romper do dia, acordei sobressaltado. Ouviam-se guinchos, correrias, ruídos vários, vindos do forro da casa. Era um chinfrim enorme. Como se um bando de gatos perseguisse os ratos, numa luta feroz e prolongada. Não se assemelhava nada à débil agonia de dois ou três ratos envenenados. Parecia até que o reboliço aumentava.

A minha curiosidade não me deixou continuar na cama. Como havia um alçapão no teto do quarto, fui buscar um escadote e, um pouco receoso, espreitei.
O que vi não pode ser completamente transmitido por palavras. Uma dezena de ratos copulava, freneticamente, num desespero alucinado. Corriam. Rebolavam. Saltavam. Trocavam continuamente de parceiro. Formavam-se mesmo, molhos de três ou quatro, em tentativas de cópulas improváveis. No soalho, jaziam já uns quatro, mortos por exaustão.

Fiquei um minuto atónito, a olhar para aquele cenário, sem compreender o que estava a acontecer; a perguntar-me porque é que os ratos se estavam a comportar daquela maneira. 
A explicação atingiu-me então como um soco. Fiquei gelado. Devo ter feito um esgar de horror, ao tomar consciência da incrível estupidez da minha troca de embalagens. Do alto do escadote, olhei para a mesa-de-cabeceira. Lá estava uma pastilha azul de raticida, que eu estive quase a tomar, se não fosse a enxaqueca providencial da minha mulher!

Joaquim Bispo
 * * *
Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

* * *
(Este conto foi o primeiro que publiquei na revista literária virtual Samizdat, no número 7, de agosto de 2008)


Outros:

  • A final olímpica  Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John, de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande … Ler Mais
  • O incendiário «Tudo menos troça!» Mauro pediu mais uma cerveja. Mantinha na retina a imagem da jovem, na véspera, a cochichar com as amigas, e nos ouvidos o som atroz dos risinhos. É claro que era um falhado, toda a gente sabia isso, mas troça é que não. Para a menina do papá, era muito fácil rir-se dele. Não tivera de passar pela experiência de dormir debaixo de um viaduto, na vila; não tinha de … Ler Mais
  • A angústia do dirigente na iminência do embate  — Estou ansioso, Lampreia! Achas que vamos conseguir mostrar um bom jogo no domingo? — Presidente, estou convencido de que vai ser dos melhores da temporada. — Ah, ótimo! Adoro desfrutar de uma partida de futebol, no seu conceito mais puro: o embate vigoroso entre duas equipas de garbosos mancebos, virtuosos no tratamento de uma bola com os pés, envolvidos numa sã competição … Ler Mais
  • A confraria do macho ibérico  Ficou-lhes sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter caído da cadeira em 1968. Escolheram a igreja de São João Batista ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo Lourenço, da zona de Lisboa. Enquanto não … Ler Mais
  • Amigos Foi ao almoço, em casa da minha prima no Cartaxo, que o assunto da amizade foi levantado. — Pai, o Bruno quer que eu lhe empreste o street-skate — lançou o meu priminho Sérgio, logo no princípio do creme de ervilhas. — Porquê? Ele não tem? — retorquiu Estêvão, o marido da minha prima, meio desinteressado. — Só tem um dos básicos. Mas, como vai passar o fim de semana a Lisboa, quer ir ao … Ler Mais

10 comentários:

  1. "No soalho, jaziam já uns quatro, mortos por exaustão." e nem com esta frase me antecipei ao veredicto ... só mesmo tu Joaquim :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado. O efeito perdia-se se tivesse revelado demais.

      Eliminar
  2. Eheheheheheh!!!!!!! Depois de uma tarde nas limpezas, quem não fica com enxaqueca????? M. João Rocha

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Os ratos estragaram o que podia ser um fim de semana romântico... ;)

      Eliminar
  3. Portugal da Silveira24 março, 2015

    o teu conto fez-me lembrar uma aventura parecida que me aconteceu há uns anos, mas ainda não havia os "azuis". Diverti-me de verdade. Gostei muito. Parabéns e um abração

    ResponderEliminar
  4. Obrigado, Portugal. Abraço!
    Esta história também se baseia numa peripécia real. A cor azul do raticida desencadeou a inspiração.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Há são azuis então que raio tenho andado a tomar?

      Eliminar
  5. Eh, eh! Cuidado! Olha os efeitos colaterais...

    ResponderEliminar