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10/11/2024

Cadeias

 

Em todos os tempos, ostentar ouro concedia estatuto, demonstrava sofisticação. O ouro de uma mulher do interior há 80, 70, 60 anos valorizava-lhe a beleza, conferia-lhe estatuto social, dava-lhe segurança, como a outra de qualquer época, mas também concedia a quase sempre ignorada liberdade económica da própria. O ouro de uma mulher, sobretudo aquele que ela trouxe de dote, era dela, era um bem a que podia recorrer, em último caso, para um desígnio pessoal. Um cordão podia ajudar um filho, às escondidas do marido; uns brincos de que já não gostasse podiam comprar uma peça de vestuário para levar a um casamento.

O ouro acompanhava-a, compondo uma imagem de si. Tendo-o por testemunha, vinham os filhos, vinha a labuta, passavam os bons e os maus momentos. O cabelo branqueava, vinham os netos, chegavam as doenças. Por fim, já nada interessava, nem o ouro. Só a viagem sem retorno ganhava o centro da angústia conformada.

Passam dias, passam meses, os filhos fazem as partilhas. Tentam equilibrar os valores, mesmo nas pequenas coisas. Dividem-se as roupas aproveitáveis, as loiças, os bibelôs. Muita coisa não tem préstimo, muita coisa se guarda por valor sentimental. A vida vai-se recompondo, sem a ausente. Ainda vem muitas vezes à ideia, enquanto viva; lembram-se os tempos penosos do hospital; quem foi prestável e atento, a tia mais nova que foi lá todos os dias e até ajudava a dar-lhe o jantar. Um deles põe a hipótese de presenteá-la com algo que pertenceu à morta, algo de algum valor, mas que seja sobretudo evocativo. Aquela pulseira dela, que lhe era característica, que aparece nas fotografias de solteira? Sim, sem dúvida; parece bem, parece mais que justo; resolvem dar-lha.

Inesperadamente, a tia não quer a pulseira, faz muita resistência a recebê-la. Começa a parecer exagerada tanta cortesia, a parecer estranho não querer ficar com uma lembrança da irmã. Finalmente, explica-se, conta uma história; a pulseira tem uma história secreta.

Não te lembras que eu era muito enfermiça desde pequena? Qualquer corrente de ar me deitava à cama. Desde a minha terceira classe até ser já quase adulta, eu era muito fraca dos brônquios. Quase que não podia sair de casa. Então a tua mãe, a ver-me assim, e a ver a tua avó a ficar cada vez mais velha — algum dia a não poder dar-me proteção —, acho que fez uma promessa a Nossa Senhora: que, se eu ficasse boa, lhe dava uma pulseira de ouro, esta mesma.

O sobrinho surpreende-se, não sabe desta história. Parece-lhe que tem um resquício de memória, uma miragem incerta, mas foi há muito tempo: a maior parte das recordações desvaneceu-se. Quer saber mais, os “quandos”, os “comos” e os porquês. A tia não se retrai:

Não sei que idade é que eu tinha quando ela fez a promessa, mas o que é certo é que aí pelos dezanove anos passei a andar sempre boa, tanto que fui fazer o segundo ano, nas freiras, e depois o Liceu, quase sempre dois anos num. Então a tua mãe, vendo que eu estava boa de vez, dispôs-se a pagar a promessa. E deve ter falado disso numa matança do porco. Então a tia Ana disse que o ouro é do melhor que uma mulher tem e que não deve desfazer-se dele. Que, se calhar, a tua mãe podia pagar a promessa em dinheiro. «Vais ao ourives, perguntas-lhe quanto é que vale a pulseira — podes mesmo explicar-lhe o caso — e dás esse valor à Nossa Senhora.» Ora a tua mãe ficou a pensar naquilo, mas tinha medo que a promessa não ficasse paga. Então foi-se confessar e perguntou ao padre se podia fazer assim, como a tia Ana tinha dito. E o padre disse que sim, que o que contava era o valor da promessa e a vontade de a pagar. E foi isso que a tua mãe fez. Portanto, estás a ver, eu não posso ficar com esta pulseira, não quero.

Mas porquê, tia? A promessa foi paga; é como se tivesse sido dada a própria pulseira. Outra como esta.

Mas eu sei que esta é que foi prometida. É como se eu estivesse a aceitar o pagamento devido à Nossa Senhora.

O sobrinho calcula que ela terá medo de voltar a ter os achaques da juventude, por via da pulseira recebida: ela tinha sido beneficiária uma vez; ser beneficiária duas vezes deve parecer-lhe um abuso, quase uma blasfémia ou um pecado.

Tia, não é como se estivesse a usar o que lhe não pertence; seria antes honrar a memória da sua irmã — argumenta.

Ela acaba por aceitá-la, mas passados uns dois anos volta a tentar devolvê-la. Com tanta veemência que o sobrinho a recebe de volta.

Que fará ele com aquela pulseira, aquele objeto mediador do amor fraternal de sua mãe pela irmã dela? Não precisa do dinheiro, felizmente, mas, mesmo que precisasse… Pergunta-se qual o significado profundo da pulseira de ouro. Lembra-se, então, da ideia tradicional: o ouro de uma mulher é a sua liberdade económica pessoal. Pensa: “a pulseira é da mãe, sempre foi; ela que decida qual o caso ou o momento adequado para ser usada. E por quem”.

Manda escavar um estreito sulco na parte posterior da moldura com o retrato da mãe, que tem na sala, e esconde lá a pulseira. Um dia, ele ou alguém decidirá retirá-la. Para o que decidir. Ou que pensar que decidiu.

Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos selecionados no concurso literário da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo) de 2018 para integrar uma coletânea literária.

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Imagem:

Topa Topera (Tiago Estrelinha), Mural dedicado à mulher da Nazaré, 2022.

in Jornal das Caldas, 24 de Fevereiro, 2022.

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10/01/2018

Os números de Lucas


Ao José Espírito Santo, que me deu a conhecer “Os números de Lucas”
Quando Édouard Lucas, no século XIX, elaborou a sequência numérica que é conhecida como “Os números de Lucas”, poderia ter imaginado também o seguinte episódio, porque não lhe eram estranhos Fibonacci nem os outros protagonistas que, ao longo dos séculos, estudaram as relações numéricas e o inexplicável eflúvio de beleza que algumas emanam, sobretudo a chamada “Divina proporção” ou “Número de ouro”.
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Florença, ano de 1492. Enquanto Fra Domenico não chegava, Tommaso da Fiesole, acompanhado do seu aprendiz, Filippo, aproveitava o tempo na contemplação da Trindade pintada na parede interior da igreja de Sta. Maria Novella. Gostava da sua profissão de arquiteto, que não era fácil, mas admirava a capacidade dos pintores de transmitirem para um plano a ilusão das três dimensões, como Masaccio conseguira neste fresco.
O Senhor esteja consigo, senhor Tommaso! — Era o frade, no seu hábito preto e branco. Com ele vinha um noviço.
Como tendes passado, meu irmão? — respondeu, com um sorriso de ternura.
Tommaso sentia sempre alguma estranheza quando cumprimentava o seu conterrâneo e primo por «meu irmão». Tinham sido companheiros de brincadeira, mas cada um seguira o seu caminho — Domenico ingressara no convento de S. Marcos de Florença, e ele tinha feito o percurso dos aprendizes de artes mecânicas até atingir o atual estatuto.
Ouvi dizer que estais a trabalhar para um sobrinho do senhor Lourenço de Médici.
Sim, o senhor Ludovico. Saiamos! É mesmo por causa desse projeto que pedi para vos falar. Sei que vos tendes interessado pelo estudo das formas e das relações entre as suas dimensões. Eu, na minha profissão, não posso ignorar o valor exato da secção áurea, para a aplicar aos edifícios, ou não fosse essa relação tão agradável aos sentidos. E sei como, há muito tempo, o grande Fibonacci demonstrou a sua génese, de maneira tão compreensível. — Fez uma pausa a avaliar se Domenico queria responder.
Sim — assentiu o frade —, partindo dos dois primeiros números, somava-os para obter um terceiro — o 3 — e, para obter o quarto número da sequência, somava os dois anteriores e obtinha o 5. — O frade aproveitava para ilustrar o seu pupilo. — E assim sucessivamente. Obtinha uma sequência que começava por 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. Parece uma brincadeira para obter o interesse de meninos na aritmética, mas a divisão de um número pelo anterior dá o valor da secção áurea ou divina, em que o valor mais pequeno — 5 pés da secção de uma parede, por exemplo —, está para a secção maior — 8 pés —, como esta está para a largura total da parede.
O grupo afastava-se do bulício que envolvia a igreja e dirigia-se para o Duomo, através das ruas estreitas bordejadas de vendas, tabernas e oficinas de artífices.
Ora, essa sequência levanta-me um problema — continuou Tommaso. — Tenho uma igreja para projetar para o meu senhor. As dimensões relativas das fachadas estão decididas. Mas os tamanhos não são tudo. Os elementos que as integram, pela sua forte individualidade, ganham uma força que é preciso ponderar. A fachada lateral, por exemplo, vai ter uma série de arcos monumentais a mascarar a parede da nave. A linha horizontal, que os capitéis das colunas geram, divide a fachada de tal modo que a distância do chão ao topo dos capitéis é exatamente 1,618 vezes maior que do topo dos capitéis à linha do telhado. Está, portanto, de acordo com a secção de ouro: a distância mais estreita está para a mais larga, como esta está para o total, do chão ao telhado. — Parou novamente, desta vez para respirar.
Havia alguma tensão na cidade, porque Lourenço, o magnífico, o patriarca da família mais poderosa de Florença, estava doente e Savonarola, o prior de S. Marcos, não cessava de clamar contra o luxo e o paganismo da sua corte.
Então, o que vos preocupa? — perguntou o frade.
O número de arcos que devo projetar. A relação dourada é obtida com números inteiros. Se ponho oito arcos no lado, deveria pôr cinco portas na fachada principal, o que é muito. Para pôr três portas, deveria pôr só cinco arcos, para respeitar a sequência de Fibonacci, mas ficariam demasiado largos. — Agora o sobrolho de Tommaso mostrava-se carregado de preocupação.
Ponde sete arcos no lado.
Tommaso parou e olhou diretamente para Fra Domenico, tentando descortinar algum sorriso. Mas o rosto do frade estava compenetrado.
Mas 7 não faz parte da sequência!
Não faz da de Fibonacci, mas faz da do Senhor. Há milhares de sequências. Quaisquer dois números a que aplicardes essa regra da soma sucessiva, dá sempre o mesmo valor de 1,618, a partir, aí, da décima soma. Todas apontam para esse número sagrado, mas a sequência 1, 3, 4, 7, 11, etc. faz parte das Escrituras. Há 1 só Deus, em 3 pessoas distintas, a cruz tem 4 braços, as virtudes são 7, os apóstolos fiéis são 11.
Meu irmão, a sequência 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. está em toda a parte: no crescimento das plantas e dos animais, no corpo humano. Sabeis que a relação entre a falange e a falanginha é dourada, assim como a relação entre esta e a falangeta?
Sim, sei, Deus fala por muitas vias.
Passavam agora por S. Lourenço, a igreja da família Médici. O templo estava cheio e cá fora havia uma pequena multidão a conversar em grupos. O governante estava muito mal, dizia-se.
Há muito tempo que os Homens se aperceberam dessa relação, sob a qual as formas transmitem um aspeto completo, perfeito — prosseguiu Tommaso. — Pitágoras descobriu-a no seu pentagrama, Vitrúvio aplicou-a aos edifícios dos Romanos, Leonardo encontrou-a no corpo humano. O nosso Piero della Francesca é exímio a aplicá-la nas suas pinturas. Por isso, elas nos parecem tão perfeitamente equilibradas. Conheceriam estes homens a sequência desses vossos números?
Meus, não! Mas estou certo que um dia alguém lhes dará o nome de um sábio.
Custa-me muito aceitar que possa ser perfeita uma sequência que não tem o 2, o número do casal, a base da sociedade dos Homens.
Pode ter, se quiserdes. Tem o seu lugar de direito, mesmo na origem, antes do 1.
Tommaso olhou para cima, pensativo. Via-se que ficara impressionado.
Antes do 1?! Sabeis o que pensa o vosso prior sobre estes assuntos?
A crítica dele não atinge especificamente questões estéticas, mas não vê com bons olhos a aproximação cada vez maior que a corte e os artistas, que para ela trabalham, vão fazendo aos textos pagãos dos antigos e à sua licenciosidade.
Dizei-me, então, Fra Domenico, sete arcos na lateral era uma boa solução, mas como ficaria a frontaria? Não pode ficar com quatro portas, precisa de uma central.
Como bem dissestes, a individualidade dos elementos é um fator muito forte de visibilidade. Mantende a simetria das três portas, mas fazei sobressair elementos que as enquadrem, colunas volumosas, por exemplo. Reparai que seriam quatro colunas — o 4 de que precisais.
Interessante, irmão Domenico! — Parou, pensativo. Os seus olhos baixos moviam-se à esquerda e à direita. — Tenho que alterar o projeto. Acho que já sei como vou fazer.
Estavam a chegar a Santa Maria dei Fiore. Já se ouvia a vozearia habitual. De repente, da esquerda, do palácio Médici, elevaram-se gritos, vários, intensos, angustiados:
Morreu o senhor Lourenço! Morreu o senhor Lourenço! Deus tenha piedade de nós!
O grupo de Tommaso da Fiesole olhou-se inquieto. Depois, despediram-se rapidamente:
Adeus, meu irmão. O vosso conselho é precioso; mas não sei se poderá ser concretizado, com os tempos que se avizinham. Temo que o filho de Lourenço não consiga resistir a Savonarola.
Aqui para nós, senhor Tommaso, até eu! Que Deus vos acompanhe!

Joaquim Bispo

Imagem: O Homem Vitruviano e a Série de Fibonacci.


(Este conto foi publicado no número 35 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2013.) 
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