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10/03/2018

O Comerciante de Arte



 — Então, não quiseram visitar a catedral de Santa Sofia?
A minha interpelação direta não era impertinente, porque eu e a minha mulher já tínhamos mantido algumas conversas com este casal, noutras ocasiões da viagem. Na Tunísia, deslumbrados na contemplação de mosaicos romanos, num dos inúmeros locais onde se mantêm bem conservados, lembro-me de o marido comentar: «Estas obras de arte não têm preço! Como eu gostava de viajar no tempo e ver estes banhos a funcionar com as pessoas da época!», o que foi pretexto para falarmos um pouco do tema, reconhecidos, que foram, alguns gostos próximos.
Já a visitámos duas vezes — respondeu Renato, o companheiro de cruzeiro. — Vimos com alguma frequência a Istambul. Como já lhes disse, sou colecionador e comerciante de arte, e a pintura turca, especialmente a de alguns artistas mais vanguardistas, está a crescer na cotação internacional. Ontem, estivemos em casa de um deles e comprei-lhe uma dúzia de obras de pequeno formato, que não vimos preparados para levar obras maiores. Se quiserem, depois podemos vê-las!
Ah, adorava! — respondi, cortesmente. — Ontem, vimos algumas telas no Grande Bazar, mas não faço ideia se são representativas da pintura que se pratica por aqui.
Estávamos com as respetivas mulheres, na fila do almoço self-service, e o paquete deslizava pelas águas do mar Egeu, de regresso a casa. Sentámo-nos, depois, numa mesa para quatro. Cada um falou daquilo que mais o tinha impressionado. Eu alonguei-me, sobretudo, nas emoções de vaguear pelo Bazar das Especiarias — um mundo assombroso para os olhos ocidentais.
Depois de um digestivo no bar, que à noite se transmutava em discoteca, fomos à cabine dos nossos novos amigos. Renato e a mulher, Jennifer, mostraram-nos, então, as novas aquisições. Eram uns oito pequenos quadros figurativos de certa ingenuidade e uns cinco abstratos. Pareciam mais souvenirs baratos, que obras de arte passíveis de transação de alto preço. Confesso que fiquei desapontado.
Isto vende? — perguntei, sem tentar esconder o desconforto.
Ó Francisco, já vi que tem dificuldades com a arte contemporânea. Arte é o que o artista diz que é arte, e torna-se vendável o que o sistema mundial da arte reconhece como arte. Há um século que deixou de ser equivalente a belo. As elites anseiam por novidades. O diferente tem a venda quase garantida.
Realmente, esperava outra coisa…
Este artista é ainda jovem e, com uma promoção adequada, pode vir a atingir bons preços no mercado. A arte pode ser encarada como um investimento, como outro qualquer. Há que estar atento às tendências, como um especulador vigia os movimentos da Bolsa. O segredo é «comprar em baixa», se assim me posso exprimir. Neste caso, antes de o artista ser muito conhecido e a cotação dele disparar.
Saímos e dirigimo-nos ao deck da piscina.
O que eu faço — continuou Renato — é descobrir, em qualquer parte do mundo, artistas pouco conhecidos, mas cujas obras se enquadrem numa tendência que esteja a crescer em aceitação. E invisto. Mais de metade dos quadros que viu irá parar a uma galeria que temos em Nova Iorque; os outros, ponho-os na de Lisboa e vou guardar um para a minha coleção pessoal. Vou ver como o público reage. Creio que esta expressão pseudoingénua, com evocações exóticas, está a ter cada vez mais procura.
Portanto — retorqui num tom ligeiramente crítico — a arte para si, afinal, não passa de um negócio!
Gosto de arte, mas também vivo dela. É como um jogo — íamos a passar junto à sala das slot-machines —, mas onde eu controlo alguns dos aspetos. Já viu estupidez maior que a destas pessoas, que pensam que podem derrotar uma máquina programada para as vencer? Eu exponho em feiras de arte e promovo o meu investimento, com notas para a imprensa especializada e catálogos escritos por especialistas que sabem encontrar as virtudes de qualquer obra de arte, como faz um administrador quando anuncia os resultados trimestrais da sua empresa.
Instalámo-nos em espreguiçadeiras, na zona da piscina, com as brincadeiras da juventude na água, dum lado, e o azul profundo das águas de alto-mar, do outro.
Ainda voltando ao jogo — prosseguiu Renato — está muito enraizada a ideia de que se se lançar uma moeda ao ar vinte vezes e vinte vezes sair «coroa» — ou que sejam cem! — haveria uma maior probabilidade de sair «cara», no próximo lançamento. Ora isto é um erro perigosíssimo, se se estiver a apostar forte. A moeda não tem qualquer memória dos lançamentos anteriores. Terá, exatamente, a probabilidade de cinquenta por cento de sair «cara». A mesma que de sair «coroa».
Não estou a perceber!
O que eu quero dizer é que o que parece lógico nem sempre é o que na realidade acontece. Os gostos mudam e há que estar atento aos movimentos da sociedade. Que pintor lhe faz lembrar esta piscina? A mim faz-me lembrar David Hockney — continuou sem me dar tempo de avaliar. — Foi uma sociedade hedonista, onde o corpo era e é glorificado e a homossexualidade ganhou espaço, que permitiu as pinturas apolineamente erotizadas de Hockney.
A conversa já começava a enfadar-me e tratei de a desviar para as frivolidades das conversas de viagens. Dois dias depois, quando passámos uma dezena de horas em Roma, fomos os quatro fazer o passeio sugerido por Renato. Não nos interessava repetir as visitas aos museus do Vaticano, às catacumbas e quejandos, que tínhamos feito doutra vez. Levou-nos a ver obras importantes, mas que não ficam nos roteiros habituais. Vimos o rosto «terrível» do Moisés de Miguel Ângelo e o inacreditável Êxtase de Santa Teresa de Bernini, onde não sabemos com o que mais nos surpreender: se com a inesperada expressão de gozo sensual de Santa Teresa, se com o facto de tal grupo escultórico erótico estar há séculos num altar. Renato aproveitou para teorizar sobre os jogos subconscientes da mentalidade de cada época e a resposta que a arte lhes dá.
Nessa noite, ainda confraternizámos e dançámos na discoteca do navio, onde uma pequena, mas estimulante, banda animava os foliões antes de deitar. Lá pelas cinco da manhã, acordámos com grandes solavancos do barco. Saí, cambaleante, para o corredor deserto e espreitei o mar. Estava bastante encapelado, devido a vento forte, mas o barco não parecia intimidado. Ao pequeno-almoço, pouca gente apareceu. O mar continuava agitado e o ambiente era deprimente, com gente amarelada a retirar-se para as cabines. Renato e a mulher foram dos que preferiram curtir o enjoo longe de olhares.
Chegámos a Barcelona a meio da tarde, já com bom tempo. Dos nossos amigos, nem sinal. Atracado o paquete, houve atrasos inesperados, antes de nos libertarem para as ruas da cidade. Havia movimentações no cais, pessoas entravam e saíam do barco, até que, estupefactos, vimos Renato ser levado algemado para fora do navio, com a mulher a acompanhá-lo. Em vão, tentámos saber o que tinha acontecido. No dia seguinte, depois de termos visitado o extraordinário parque Guell, do Gaudí, deparei-me com a fotografia de Renato na capa de um jornal local. Lemos a notícia, sofregamente, e oscilámos entre o sentimento de incredulidade, perante as revelações do jornal, e de desconforto pela nossa ingenuidade. Segundo o jornal, uma longa investigação tinha descoberto que Renato era um recetador de inúmeros ícones roubados em pequenas igrejas ortodoxas da Bulgária, que eram canalizados para agentes, na vizinha Istambul. Os ícones pintados eram dissimulados por detrás de quadros contemporâneos vulgares e Renato usava os cruzeiros para os fazer sair do país, devido ao menor controlo de fronteiras exercido nestas circunstâncias.
Dei por mim a pensar como é que Renato enquadraria este desenlace nas suas teorias dos jogos…

Joaquim Bispo

Imagem: Ícone ortodoxo
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(Este conto integra a coletânea organizada pelo blogue português Ora, Vejamos…, em 2009.)
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