Sou
camionista de longo curso. Passo os dias pelas estradas da Europa,
rodeado de carros e camiões, mas sozinho, a ver desfilar cidades
para lá das estradas, e serras para lá das cidades, a trabalhar
demasiadas horas por dia, a dormir mal e pouco, a levantar cedo. Este
ano que passou foi particularmente cansativo. Parecia que o mês de julho nunca mais acabava. Ansiava por voltar para a Minha Terra, tão
bela e tão mal amada. Ah, quando chegasse, ia pôr o sono em dia e,
depois, ia passar o mês inteiro de férias a visitá-la, a
conhecê-la, a amá-la.
Assim
que cheguei, fechei-me em casa, cerrei as persianas e ferrei-me a
dormir, como se já não dormisse há semanas, o que não era
completamente mentira. Queria recuperar o vigor, nem que para tanto
gastasse dois ou três dias de férias. Durante horas incontáveis,
dormi profundamente, pressentindo o meu corpo a relaxar, a
distender-se, a ganhar as formas que a Natureza lhe quis dar. A certa
altura, senti-me leve, solto, fluido. Acordei aéreo, atmosférico.
Achei-me um pouco estranho mas, longe de me inquietar, aceitei-me e
foi sob essa feição que parti finalmente a conhecer a Minha Terra.
Iniciei
a viagem muito lentamente, como leve aragem, percorrendo a sua
superfície. Subi o Alentejo langorosamente, acariciando a planície,
a contrapelo. A Minha Terra parecia agradada. Mostrava-me, de vez em
quando, o branco dos seus casarios. Avancei silencioso e morno.
Balancei-me, delicadamente, no sobe e desce das pequenas elevações
e das suaves baixas. Insinuei-me nos vales dos maciços centrais,
explorando cada dobra, evaporando a geada de uma várzea aqui,
ondulando o pasto de uma encosta acolá. Subi as serras atapetadas
pelo mato, monte a monte, envolvi os cumes em névoa. Sussurrei
segredos às fragas. Do alto dos talefes, alarguei a atenção, a
escolher outras explorações. Entusiasmado, desci os declives, mais
apressado que na subida, fiz ondular a cabeleira das florestas,
deambulei por entre os troncos majestosos. Soprei sobre as gargantas,
os riachos e os açudes. Desci às grutas. Brinquei com a água das
fontes e das lagoas, deixei-me arrastar pelos caudais dos rios.
Humedeci, liquefiz-me.
Agora
eu era mar. As minhas ondas batiam nas arribas, lambiam as rochas de
baixo para cima e estas ficavam a escorrer, lascivas. As vagas do meu
corpo recuavam e logo voltavam, altas e empenhadas. No Algarve,
brincavam por entre as rochas esburacadas, a fazer cócegas à Minha
Terra. E ela a provocar, a abrir enseadas, a elevar promontórios, a
estender cabos, atiçando o meu corpo líquido. As suas areias a
arder, a chamar pelo meu afago refrescante. E eu fluía e refluía
sobre as areias da Minha Terra, uma e outra vez, afagando-as numa
dolência de amantes. No Minho a arrepiá-las com as minhas carícias
geladas. E a entrar atrevido no estuário de Viana. A surpreender a
Minha Terra com uma incursão inesperada na foz do Douro. E depois,
grosso e seguro, a encher a Ria de Aveiro. E a retirar-me maroto e
sabido. E a deixar um gosto salgado e sensual. Ao mesmo tempo, o meu
corpo longo e ondeado roçava-se nos extensos areais do Sul, toque
aqui, toque ali. A costa alentejana, cheia de refegos, a resistir
mal. E eu a rebolar-me nos areais da Comporta e de Troia, guloso e
lúbrico. A experimentar, obsceno, o estuário do Sado, crescendo
demorado em vagares maliciosos: maré-cheia, maré-vazia. Iludindo.
Insinuando Setúbal e apontando a Lisboa. Fluindo e refluindo.
Engrossando. Em maré viva, franqueio a barra do Tejo, transponho a
Ponte 25 de Abril e espraio-me em plenitude pelo Mar da Palha. E
refluo, e volto com mais vivacidade. Uma e outra vez. Venço a
resistência da Ponte Vasco da Gama, encho esteiros e valados e
alcanço Vila Franca. E, fecundador, inundo a lezíria. Avassalador,
imenso, cósmico.
Durante
muito tempo, o meu espírito anda disperso pelo éter. Flutuo num
limbo, sem energia nem densidade. Onde estou, por onde andei?
Lentamente, tomo consciência de mim. Estou alagado em suores,
humores, fluidos. Parece-me que a viagem demorou um mês inteiro, mas
não durou mais que umas horas. Foram o suficiente para que o meu
corpo e o meu espírito se unissem profundamente à Minha Terra.
Dissolveram-se e voltaram a condensar-se. Inteiros. Refeitos.
Apaziguados.
Nunca
pensei que as minhas saudades dela fossem tão grandes!
Joaquim
Bispo
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(Este
conto foi publicado no
número 8 da revista literária virtual Samizdat, de setembro de
2008)
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Imagem
de Jackie
Adshead,
na net
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