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10/07/2017

O deserto de Atacama na minha cozinha



Há tempos, ao regressar de umas pequenas férias, deparei-me com um carreiro de formigas na cozinha e brigadas de exploração em vários outros pontos da casa. A minha mulher tratou de as atacar com vinagre e spray anti-insetos — método de destruição maciça, cujas evocações da guerra química me perturbam —, mas, apesar das inúmeras vítimas, a comunidade esfomeada não desapareceu completamente.

Uns quinze dias depois, encontrei o meu pacote de flocos de cereais com chocolate cheiinho de formigas, aonde chegavam por um carreiro de grosso caudal. Silenciosamente, sem pressa, deambulavam sobre os flocos e banqueteavam-se, suponho; não apurei se transportavam minúsculos pedaços da iguaria para a sua base, que imaginei na parede, por detrás dos azulejos.

Não tenho nojo das formigas nem das abelhas, como tenho das baratas ou das moscas. Não me passou pela cabeça deitar fora os flocos. Mas, como limpá-los? Passá-los por água estava fora de questão. Peneirá-los? As danadas não largariam tão facilmente o seu pedaço. Pô-los no micro-ondas também não era opção, porque além do desagrado de matar as bichas, ainda ficaria com uns flocos com um sabor um pouco picante, acredito. O ideal seria fazer com que abandonassem o pacote e não retornassem. Mas como?

Lembrei-me, então — baseado nos métodos de baixa intensidade dos camponeses para resguardar os seus produtos dos roedores, e mais como brincadeira de miúdo a descobrir as maravilhas do mundo animal, do que como experiência promissora de êxito —, de pendurar o pacote por uma longa e fina linha de costura, ao teto, sobre a mesa da cozinha. A ideia, sem grande esperança de sucesso, era que a necessidade de manter contacto com a base as obrigasse a procurar a saída e que, abandonando o local dos flocos, tivessem dificuldade em reencontrá-lo. Como efeito inesperado, o pacote começou a rodopiar, em resultado da destorção da linha, provocada pelo peso.

Não estou certo que esta rotação as incomodasse, mas, pouco depois, já algumas tinham encontrado a linha, que iam explorando, avançando um bocado, voltando atrás para transmitir informações, regressando à descoberta. Quando me fui deitar — umas três horas depois —, a linha estava carregadinha delas e várias já exploravam a vastidão desértica do teto liso. Na manhã seguinte, o pacote estava livre de formigas. O pacote e a casa. Nem uma. Desapareceram todas. E passaram-se meses sem voltar a vê-las.

Ao imaginar a pequena odisseia das formigas, obrigadas a trepar uma a uma, às escuras, por uma linha rodopiante interminável, para escapar ao isolamento forçado, surgiu-me naturalmente a comparação com a saída dos mineiros chilenos das profundezas da mina de cobre no deserto de Atacama, por um furo vertical de 700 metros, que então era notícia. As situações tinham muitos pontos de contacto. Pus-me mesmo a calcular até aonde chegava a similaridade. Na verdade, tendo a linha pouco mais de metro e vinte, e as formigas três milímetros, a relação tamanho do corpo / distância ao teto era semelhante à do resgate dos mineiros chilenos: 1/400. Bem, se calhar, arredondei um pouco as contas…

Por outro lado… Certamente que foi muito mais fácil e rápido para as formigas treparem, às escuras, por uma linha rodopiante até escaparem do pacote de flocos, do que os 33 mineiros chegarem à superfície 69 dias depois, encerrados um a um numa cápsula puxada do exterior. Mas, quando a subida acabou, as minorcas não tinham a comunicação social, nem o presidente das formigas à espera. Tiveram ainda de atravessar o “deserto de Atacama” do meu teto e descer pelas paredes até à saída deste mundo inóspito onde os deliciosos flocos de chocolate, de repente e imprevisivelmente, ficaram tão remotamente isolados como o fundo de uma mina de cobre no Chile.

Bem, calculo; eu não estava lá para ver…

Joaquim Bispo

* * *