Há
tempos, ao regressar de umas pequenas férias, deparei-me com um
carreiro de formigas na cozinha e brigadas de exploração em vários
outros pontos da casa. A minha mulher tratou de as atacar com vinagre
e spray
anti-insetos
— método de destruição maciça, cujas evocações da guerra química me perturbam —, mas, apesar das inúmeras vítimas,
a comunidade esfomeada não desapareceu completamente.
Uns
quinze dias depois, encontrei o meu pacote de flocos de cereais com
chocolate cheiinho de formigas, aonde chegavam por um carreiro de
grosso caudal. Silenciosamente, sem pressa, deambulavam sobre os
flocos e banqueteavam-se, suponho; não apurei se transportavam
minúsculos pedaços da iguaria para a sua base, que imaginei na
parede, por detrás dos azulejos.
Não
tenho nojo das formigas nem das abelhas, como tenho das baratas ou
das moscas. Não me passou pela cabeça deitar fora os flocos. Mas,
como limpá-los? Passá-los por água estava fora de questão.
Peneirá-los? As danadas não largariam tão facilmente o seu pedaço.
Pô-los no micro-ondas também não era opção, porque além do
desagrado de matar as bichas, ainda ficaria com uns flocos com um
sabor um pouco picante, acredito. O ideal seria fazer com que
abandonassem o pacote e não retornassem. Mas como?
Lembrei-me,
então — baseado nos métodos de baixa intensidade dos camponeses
para resguardar os seus produtos dos roedores, e mais como
brincadeira de miúdo a descobrir as maravilhas do mundo animal, do
que como experiência promissora de êxito —,
de pendurar o pacote por uma longa e fina linha de costura, ao teto,
sobre a mesa da cozinha. A ideia, sem grande esperança de sucesso,
era que a necessidade de manter contacto com a base as obrigasse a
procurar a saída e que, abandonando o local dos
flocos, tivessem dificuldade em reencontrá-lo. Como efeito inesperado, o
pacote começou a rodopiar, em resultado da
destorção da linha, provocada pelo peso.
Não
estou certo que esta rotação as incomodasse, mas, pouco depois, já
algumas tinham encontrado a linha, que iam explorando, avançando um
bocado, voltando atrás para transmitir informações, regressando à
descoberta. Quando me fui deitar — umas três horas depois —, a
linha estava carregadinha delas e várias já exploravam a vastidão
desértica do teto liso. Na manhã seguinte, o pacote estava livre de
formigas. O pacote e a casa. Nem uma. Desapareceram todas. E
passaram-se meses sem voltar a vê-las.
Ao
imaginar a pequena odisseia das formigas, obrigadas a trepar uma a
uma, às escuras, por uma linha rodopiante interminável, para
escapar ao isolamento forçado, surgiu-me naturalmente a comparação
com a saída dos mineiros chilenos das profundezas da mina de cobre
no deserto de Atacama, por um furo vertical de 700 metros, que então era notícia. As situações tinham
muitos pontos de contacto. Pus-me mesmo a calcular até aonde chegava
a similaridade. Na verdade, tendo a linha pouco mais de metro e
vinte, e as formigas três milímetros, a relação tamanho do corpo
/ distância ao teto era semelhante à do resgate dos mineiros
chilenos: 1/400. Bem, se calhar, arredondei um pouco as contas…
Por
outro lado… Certamente
que foi muito mais fácil e rápido para as formigas treparem, às escuras, por
uma linha rodopiante até escaparem do pacote de flocos, do que os 33 mineiros chegarem à superfície 69 dias depois, encerrados um a um numa cápsula puxada do exterior. Mas,
quando a subida acabou, as
minorcas não tinham a comunicação social, nem o presidente das formigas à
espera. Tiveram
ainda de atravessar o “deserto de Atacama” do meu teto e descer
pelas paredes até à saída deste mundo inóspito onde os deliciosos
flocos de chocolate, de repente e imprevisivelmente, ficaram tão
remotamente isolados como o fundo de uma mina de cobre no Chile.
Bem, calculo; eu
não estava lá para ver…
Joaquim
Bispo
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