Ao
José Espírito Santo, que me deu a conhecer “Os números de Lucas”
Quando
Édouard Lucas, no século XIX, elaborou a sequência numérica que é
conhecida como “Os números de Lucas”,
poderia ter imaginado também o seguinte episódio, porque não lhe
eram estranhos Fibonacci nem os outros protagonistas que, ao longo
dos séculos, estudaram as relações numéricas e o inexplicável
eflúvio de beleza que algumas emanam, sobretudo a chamada “Divina
proporção” ou “Número de ouro”.
*
Florença,
ano de 1492. Enquanto Fra Domenico não chegava, Tommaso da Fiesole,
acompanhado do seu aprendiz, Filippo,
aproveitava o tempo na contemplação da Trindade pintada na parede
interior da igreja de Sta. Maria Novella. Gostava da sua profissão
de arquiteto, que não era fácil, mas admirava a capacidade dos
pintores de transmitirem para um plano a ilusão das três dimensões,
como Masaccio conseguira neste fresco.
— O
Senhor esteja consigo, senhor Tommaso! — Era o frade, no seu hábito
preto e branco. Com ele vinha um noviço.
— Como
tendes passado, meu irmão? — respondeu, com um sorriso de ternura.
Tommaso
sentia sempre alguma estranheza quando cumprimentava o seu
conterrâneo e primo por «meu irmão». Tinham sido companheiros de
brincadeira, mas cada um seguira o seu caminho — Domenico
ingressara no convento de S. Marcos de Florença, e ele tinha feito o
percurso dos aprendizes de artes mecânicas até atingir o atual
estatuto.
— Ouvi
dizer que estais a trabalhar para um sobrinho do senhor Lourenço de
Médici.
— Sim,
o senhor Ludovico. Saiamos! É mesmo por causa desse projeto que pedi
para vos falar. Sei que vos tendes interessado pelo estudo das formas
e das relações entre as suas dimensões. Eu, na minha profissão,
não posso ignorar o valor exato da secção áurea, para a aplicar
aos edifícios, ou não fosse essa relação tão agradável aos
sentidos. E sei como, há muito tempo, o grande Fibonacci demonstrou
a sua génese, de maneira tão compreensível. — Fez uma pausa a
avaliar se Domenico queria responder.
— Sim
— assentiu o frade —, partindo dos dois primeiros números,
somava-os para obter um terceiro — o 3 — e, para obter o quarto
número da sequência, somava os dois anteriores e obtinha o 5. — O
frade aproveitava para ilustrar o seu pupilo. — E assim
sucessivamente. Obtinha uma sequência que começava por 1, 2, 3, 5,
8, 13, etc. Parece uma brincadeira para obter o interesse de meninos
na aritmética, mas a divisão de um número pelo anterior dá o
valor da secção áurea ou divina, em que o valor mais pequeno — 5
pés da secção de uma parede, por exemplo —, está para a secção
maior — 8 pés —, como esta está para a largura total da parede.
O
grupo afastava-se do bulício que envolvia a igreja e dirigia-se para
o Duomo, através das ruas estreitas bordejadas de vendas, tabernas e
oficinas de artífices.
— Ora,
essa sequência levanta-me um problema — continuou Tommaso. —
Tenho uma igreja para projetar para o meu senhor. As dimensões
relativas das fachadas estão decididas. Mas os tamanhos não são
tudo. Os elementos que as integram, pela sua forte individualidade,
ganham uma força que é preciso ponderar. A fachada lateral, por
exemplo, vai ter uma série de arcos monumentais a mascarar a parede
da nave. A linha horizontal, que os capitéis das colunas geram,
divide a fachada de tal modo que a distância do chão ao topo dos
capitéis é exatamente 1,618 vezes
maior que do topo dos capitéis à linha do telhado. Está, portanto,
de acordo com a secção de ouro: a distância mais estreita está
para a mais larga, como esta está para o total, do chão ao telhado.
— Parou novamente, desta vez para respirar.
Havia
alguma tensão na cidade, porque Lourenço, o magnífico, o patriarca
da família mais poderosa de Florença, estava doente e Savonarola, o
prior de S. Marcos, não cessava de clamar contra o luxo e o
paganismo da sua corte.
— Então,
o que vos preocupa? — perguntou o frade.
— O
número de arcos que devo projetar. A relação dourada é obtida com
números inteiros. Se ponho oito arcos no lado, deveria pôr cinco
portas na fachada principal, o que é muito. Para pôr três portas,
deveria pôr só cinco arcos, para respeitar a sequência de
Fibonacci, mas ficariam demasiado largos. — Agora o sobrolho de
Tommaso mostrava-se carregado de preocupação.
— Ponde
sete arcos no lado.
Tommaso
parou e olhou diretamente para Fra Domenico, tentando descortinar
algum sorriso. Mas o rosto do frade estava compenetrado.
— Mas
7 não faz parte da sequência!
— Não
faz da de Fibonacci, mas faz da do Senhor. Há milhares de
sequências. Quaisquer dois números a que aplicardes essa regra da
soma sucessiva, dá sempre o mesmo valor de 1,618,
a partir, aí, da décima soma. Todas apontam para esse número
sagrado, mas a sequência 1, 3, 4, 7, 11, etc. faz parte das
Escrituras. Há 1 só Deus, em 3 pessoas distintas, a cruz tem 4
braços, as virtudes são 7, os apóstolos fiéis são 11.
— Meu
irmão, a sequência 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. está em toda a parte:
no crescimento das plantas e dos animais, no corpo humano. Sabeis que
a relação entre a falange e a falanginha é dourada, assim como a
relação entre esta e a falangeta?
— Sim,
sei, Deus fala por muitas vias.
Passavam
agora por S. Lourenço, a igreja da família Médici. O templo estava
cheio e cá fora havia uma pequena multidão a conversar em grupos. O
governante estava muito mal, dizia-se.
— Há
muito tempo que os Homens se aperceberam dessa relação, sob a qual
as formas transmitem um aspeto completo, perfeito — prosseguiu
Tommaso. — Pitágoras descobriu-a no seu pentagrama, Vitrúvio
aplicou-a aos edifícios dos Romanos, Leonardo encontrou-a no corpo
humano. O nosso Piero della Francesca é exímio a aplicá-la nas
suas pinturas. Por isso, elas nos parecem tão perfeitamente
equilibradas. Conheceriam estes homens a sequência desses vossos
números?
— Meus,
não! Mas estou certo que um dia alguém lhes dará o nome de um
sábio.
— Custa-me
muito aceitar que possa ser perfeita uma sequência que não tem o 2,
o número do casal, a base da sociedade dos Homens.
— Pode
ter, se quiserdes. Tem o seu lugar de direito, mesmo na origem, antes
do 1.
Tommaso
olhou para cima, pensativo. Via-se que ficara impressionado.
— Antes
do 1?! Sabeis o que pensa o vosso prior sobre estes assuntos?
— A
crítica dele não atinge especificamente questões estéticas, mas
não vê com bons olhos a aproximação cada vez maior que a corte e
os artistas, que para ela trabalham, vão fazendo aos textos pagãos
dos antigos e à sua licenciosidade.
— Dizei-me,
então, Fra Domenico, sete arcos na lateral era uma boa solução,
mas como ficaria a frontaria? Não pode ficar com quatro portas,
precisa de uma central.
— Como
bem dissestes, a individualidade dos elementos é um fator muito
forte de visibilidade. Mantende a simetria das três portas, mas
fazei sobressair elementos que as enquadrem, colunas volumosas, por
exemplo. Reparai que seriam quatro colunas — o 4 de que precisais.
— Interessante,
irmão Domenico! — Parou, pensativo. Os seus olhos baixos moviam-se
à esquerda e à direita. — Tenho que alterar o projeto. Acho que
já sei como vou fazer.
Estavam
a chegar a Santa Maria dei Fiore. Já se ouvia a vozearia habitual.
De repente, da esquerda, do palácio Médici, elevaram-se gritos,
vários, intensos, angustiados:
— Morreu
o senhor Lourenço! Morreu o senhor Lourenço! Deus tenha piedade de
nós!
O
grupo de Tommaso da Fiesole olhou-se inquieto. Depois, despediram-se
rapidamente:
— Adeus,
meu irmão. O vosso conselho é precioso; mas não sei se poderá ser
concretizado, com os tempos que se avizinham. Temo que o filho de
Lourenço não consiga resistir a Savonarola.
— Aqui
para nós, senhor Tommaso, até eu! Que Deus vos acompanhe!
Joaquim
Bispo
Imagem:
O Homem Vitruviano e a Série de Fibonacci.
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(Este conto foi publicado no número 35 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2013.)
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