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10/02/2016

Perdidos na translação


O aniversário de nascimento é a data mais marcante para quase todas as pessoas. Embevecem-se quando recebem os votos de parabéns e ficam infelizes se os outros o esquecem. Comemorar aquele momento especial em que se veio ao mundo empolga tanto os aniversariantes, que muitas vezes organizam uma festa a que associam familiares e amigos. Mas, único mesmo é o primeiro aniversário. Em casa da família Marques não é diferente:
Hoje o nosso Martim vai apagar uma velinha de bolo de aniversário pela primeira vez — anuncia o baboso pai da criança.
Reuniu à volta da mesa de almoço, em sua casa, avós, tios e primos do bebé. E mais meia dúzia de outros familiares. A ocasião não é para menos.
Nasceu exatamente à uma da tarde, de 20 de fevereiro — relembra. — Quando for uma da tarde, completará um aninho e vamos todos cantar-lhe os parabéns!
Isso, agora… — intervém o tio Francisco, que é um autodidata vaidoso e muito metediço. — Até podemos cantar-lhe os parabéns, mas esse miúdo tão giro não completa um ano à uma da tarde.
Como assim, tio? — reclama o papá frustrado. — Eu estava lá e assisti ao parto! Assim que saiu cá para fora, olhei para o relógio: uma da tarde em ponto.
Eu não digo o contrário, mas não passa um ano à uma. Só lá perto das sete da tarde. Aliás, curiosamente, é por isso que este mês tem 29 dias.
Todos os familiares já conhecem bem estas tiradas do tio e sabem que não há nada a fazer: de uma maneira ou de outra, ele vai desbobinar o relatório completo:
Estamos habituados a que, de 4 em 4 anos, fevereiro tenha 29 dias, em vez dos habituais 28 — continua ele, enchendo o peito. — É o resultado das repetidas tentativas que os Homens têm feito para adaptar o tamanho do ano de calendário à duração da translação da Terra. O que não é nada fácil, porque, em vez de um número inteiro de dias, a viagem à volta do Sol deste esferoide maravilhoso, em que vivemos, dura 365,2422 dias. Nem 365, nem 366; um pouco mais de 365. Ora, o que é que isto implica? Que, no caso do nosso Martim, o aninho dele completa-se só pelas… 18 horas e quase 49 minutos.
Neste ponto, o pai da criança fecha os olhos e baixa e abana a cabeça, desanimado. Os mais novos, meio surpreendidos, meio divertidos, prestam alguma atenção à explicação do tio esquisito, que prossegue:
Alguns povos da Antiguidade, como os Mesopotâmicos, usavam 12 meses lunares de 29 ou 30 dias, o que perfazia só 354 dias, mas, quando havia necessidade, adicionavam um mês extra. Os Egípcios e os Persas já usavam 12 meses de 30 dias, a que acrescentavam 5 dias, no fim do ano.
Por amor de Deus, tio; contas agora não! — insurge-se a mãe da criança.
Isto é muito interessante. São só dois minutos — desculpa-se o divulgador extemporâneo de ciência e história. — O calendário juliano — de Júlio César, do século I a.C. —, que vigorou no Ocidente por mais de 15 séculos, estipulava um ano de 365 dias, exceto que, a cada 4 anos, se inseria um dia extra junto ao sexto dia das calendas de março, isto é, 6 dias antes do dia 1 de março. A cada 4 anos, havia, assim, a repetição de um sexto dia das calendas de março. É daí que vem a designação de “bissexto”, e não por 366 dias ter dois algarismos 6. E de calendas derivou calendário.
Então, era igual ao nosso! — atreve-se um dos miúdos.
Quase! — esmiúça o “tio-enciclopédia”, puxando de uma esferográfica e de um guardanapo de papel. — O rigor era razoável, mas, como se percebe, o ano médio deste calendário — (365 + 365 + 365 + 366) / 4 = 365,25 dias — era ligeiramente maior do que o da duração real: 365,2422 dias. A diferença era pouca, mas, com o passar dos séculos, o desfasamento foi aumentando tanto que, no século XVI, o equinócio da primavera acontecia vários dias antes do dia 21 de março e tornou-se premente adotar outro calendário. Em 1582, sob o Papa Gregório XIII, adotou-se o calendário atual — o gregoriano, derivado do nome do Papa. Para que o dia 21 de março do calendário voltasse a coincidir com o equinócio da primavera, houve que saltar 10 dias. O ajuste foi feito no outono. As pessoas adormeceram no dia 4 de outubro e quando acordaram no dia seguinte era o dia 15.
A sério? — entusiasma-se outro. — Que cena!
Sim. Foram 10 dias que nunca existiram no calendário de Portugal, Espanha, Itália e Polónia. Os outros países foram, posteriormente, aderindo a este calendário.
Mas saltar 10 dias resolveu o problema, de vez? — capitula o pai do aniversariante.
Não, mas minorou-o bastante. Repara no que estipula o calendário gregoriano para o tamanho do ano:

. O ano tem 365 dias;
. Se o ano for divisível por 4, e não for fim de século, acrescenta-se um dia ao mês de fevereiro. Por exemplo, este ano — 2016 — é bissexto;
. Se o ano for fim de século e divisível por 400 — por exemplo 2000 —, o ano é bissexto. Caso contrário, mantém os 365 dias. É o caso dos anos de 1700, 1800, 1900, 2100, que são divisíveis por 4, mas não por 400.

Rematando o raciocínio, o tio Francisco ataca de novo o guardanapo:
Assim, o tamanho médio do ano de calendário é igual a: [(300 x 365) + (96 x 366) + (3 x 365) + 366] / 400 = 365,2425. Mesmo com esta “ginástica” toda, ainda há que saltar um dia a cada 3333,(3) anos! Que difícil de encaixar esta nossa Terra! Não acham? — conclui.
Na mesa do almoço da festa do primeiro ano do bebé Martim, reina um silêncio mais ou menos constrangido. Quebra-o a avó Celeste:
Então, sendo assim, não custa nada adiar o bolo e os parabéns para mais logo — comenta, decidida. — Cantar os parabéns antes é que não! Dá azar.
Furtivamente, o anfitrião aproxima-se da esposa e sussurra-lhe:
Faz-me um favor, pela tua saúde: não convides mais o teu tio Francisco para as nossas festas!
Mas ela olha-o com um sorriso e dá de ombros, como quem diz: «Deixa lá! É um chato, mas é nosso.»

Joaquim Bispo

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(Este conteúdo foi publicado, sob a forma de ensaio, no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009, com o título “O ano bissexto”.)

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