O
séquito aproximava-se do cemitério encabeçado por duas filas de
homens. Enquadravam a carreta, precedida por um sacristão que
segurava a longa haste de uma cruz processional. Logo atrás, em
passo arrastado, seguia o padre, envolvido pelos restantes sacristães
em suas opas brancas. A fechar o cortejo, a massa escura das
mulheres. Do ruído surdo de tantos passos e de um leve gemido dos
rodados, sobressaía o toque de finados na torre da aldeia, que
ficara para trás. Vistos de fora, parecia que caminhavam há horas,
mas sem saírem do mesmo sítio. Esse arrastamento do tempo causava
um certo desconforto num insuspeito espectador. Apetecia que
terminassem logo aquilo a que se propunham: enterrar a Dona Clarisse
de oitenta e dois anos.
Finalmente,
chegaram aos portões do cemitério. Os portadores retiraram o caixão
e começaram a transportá-lo, com a ajuda de faixas de pano que
fizeram passar por baixo do féretro e que seguravam sobre os
próprios ombros. Agora, o grupo deslocava-se por entre algumas
poucas sepulturas em direção a um monte de terra escavada de
fresco, onde se encontrava o coveiro em atitude expectante,
acompanhado do seu cão. Aí chegados, puderam perceber o vazio da
cova, que seria a última morada da defunta. O oficiante
aproximou-se, fez uma pausa, a dar tempo aos acompanhantes de se
arrumarem em volta da tumba, e começou a ler os trechos litúrgicos
adequados ao ato fúnebre.
Então,
ouviu-se um longo gemido abafado. O padre parou a leitura, os
sacristães entreolharam-se, os portadores que tinham pousado a carga
esboçaram um trejeito de desagrado, enquanto os restantes presentes
olhavam para o ataúde sem mostrar o mínimo movimento de surpresa. A
um gesto do padre, os dois funcionários laicos da igreja levantaram
a tampa do caixão e um deles perguntou, impaciente:
— O
que foi, agora?
Vista
de fora, a situação suscitava grande perplexidade. Estendida no seu
leito de morte, Dona Clarisse, de olhos fechados e tez lívida,
respondeu num longo e lúgubre lamento:
— Eu
não quero ser enterrada neste cemitério. Quero ficar em Ornans ao
pé dos meus pais, do meu filho Jean, e das minhas amigas. Neste meio
do nada, não conheço ninguém.
Ouvido
isto, todo o grupo de cerca de cinquenta pessoas começou a murmurar
e a abanar a cabeça, reprovando a atitude da defunta.
— Já
lhe dissemos que não pode ser — respondeu o mais alto, que era
cordoeiro, imponente na sua vestimenta carmesim. — O cemitério
velho esgotou a capacidade com os mortos de há dois anos. Não cabe
lá mais ninguém. Tem de ficar neste novo.
[Ainda
não era Covid-19, mas, a partir da Revolução Francesa e suas réplicas, devido ao número crescente de mortes, a
exiguidade dos cemitérios tradicionais junto à igreja levou à sua deslocalização para fora das povoações.]
— Não
quero saber — insistia a morta —, onde cabem cem cabem duzentos.
Metam-me numa sepultura antiga, onde já só haja ossos.
— Não
há! — irritava-se agora o outro oficial. —
A revolução de 1848 aumentou tragicamente o fluxo normal de mortos. Todas
as campas possíveis foram utilizadas. E esses mortos ainda não
estão em condições de levantar.
— Sei
bem o que fizeste, safado! — contra-atacava a falecida. —
Deixaste sepultar lá gente de outras terras, a troco de uns quantos
“napoleões”.
— Estou
farto disto! — esbravejou o visado. — Ou que estamos a guardar as
campas para os amigos, ou que só as damos a quem paga bem; agora são
os mortos de outras terras. Eu vou-me embora.
E,
dito isto, retirou-se em grandes passadas. Pouco depois, era a vez do
segundo oficial abandonar o cemitério, após Dona Clarisse sugerir
que ele exercia estas funções por favorecimento do padre. Este
dirigiu-se então à finada com palavras que denunciavam já uma
irritação mais própria de um homem dominado pelas emoções
primárias do ser humano do que pela sábia serenidade de um
intermediário do sagrado.
— Ó,
Dona Clarisse, eu não lhe admito isso! A senhora não pense que pode
dizer o que lhe apetece, só porque está morta. Vamos lá esclarecer
uma coisa: nós não vamos ficar aqui a tarde toda a discutir os
pequenos caprichos da senhora. Daqui a pouco é noite e, se não se
decide depressa, fica aqui mesmo, tal e qual, de tampa aberta. Pode
ser que os lobos cá venham fazer-lhe companhia... Agora, escolha!
— Você
não pense que me assusta, com esse palavreado, seu badameco, que eu
de si não tenho medo! — redarguiu Dona Clarisse, de voz alterada.
— Você é que tem com que se preocupar, se não me levar já para
o cemitério velho. Ou pensa que eu não sei as propostas que fez à
minha sobrinha mais nova? Agora é que o povo todo vai ficar a saber
a quem se tem andado a confessar!
Estas
palavras foram de mais para o pároco de Ornans. As suas mãos
largaram o breviário e lançaram-se ao pescoço de Dona Clarisse,
numa tentativa vã de estrangular uma morta. O gesto tresloucado foi
rapidamente travado por alguns dos presentes, nomeadamente o regedor
de Ornans e dois assumidos partidários da I República, o que não
impediu que a touca negra da defunta, na confusão, lhe fosse
arrancada da cabeça.
Vista
de fora, a cena era deveras confrangedora. Qualquer cidadão normal
se sentiria angustiado com o desrespeito pelos mortos manifestado por
aquela assembleia, e pelo comportamento inesperado e impertinente de
um deles.
Terá
sido esse desaforo social que fez Gustave Courbet acordar em
sobressalto. Envolto pelo escuro do seu quarto de Ornans, mantinha
vívidas na retina as imagens violentas a que acabara de assistir.
Temeu pela sua obra mais recente — aquela que lhe tinha levado três
meses a realizar em condições difíceis. Pintara cinquenta pessoas
da aldeia, uma a uma, no espaço esconso do sótão, numa enorme tela
de
três por mais de seis metros, como memória do funeral da sua velha
tia Clarisse.
Em
grande agitação, acendeu uma lanterna e subiu ao sótão. Os
cinquenta aldeãos aguardavam-no, solenes e calmos, no seu ritual
fúnebre: os portadores, segurando o caixão, os sacristães, os
funcionários laicos, o padre, o coveiro, os vários homens de aspeto
grave, o
grande grupo das mulheres de escuro e coifas brancas. Tudo estava no
seu lugar, como seria de esperar no mundo real. Mesmo o cão do
coveiro mantinha um ar curioso por tão grande ajuntamento. Eram
assim os enterros em Ornans. Afinal, fora apenas um sonho, bizarro
como todos os sonhos.
Deixou-se
envolver por uma reconfortante sensação de alívio. A inquietação
de há pouco deu lugar a um consolador relaxamento. Então, reparou
no padre: a sua mão direita agarrava ainda a touca amarfanhada da
velha tia Clarisse…
Joaquim
Bispo
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Este
conto integra — páginas 169 e 170 — a coletânea resultante da edição de 2015 do Concurso Literário
da Cidade de Presidente Prudente, Brasil.
Também por seleção em concurso literário, integra — páginas 100 a 102 — a 19ª edição (janeiro/fevereiro de 2020)
da Revista LiteraLivre, em formato e-book:
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Imagem:
Gustave Courbet, Um enterro em Ornans, 1849–1850.
Museu
d'Orsay, Paris.
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