Mostrar mensagens com a etiqueta morte. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta morte. Mostrar todas as mensagens

10/10/2024

O desconhecido

 

As nuvens adensam-se, o céu escurece, corre uma brisa fria e desagradável. É meio da tarde, o grupo prossegue pelo caminho rural em passo apressado. A cavaqueira de há bocado deu lugar ao silêncio; só o farfalhar da areia a ser esmagada pelas pisadas enche o ar. Mário segue no fim do grupo de seis pessoas, embrenhado nos seus pensamentos. Está a caminho de Fátima, nem sabe dizer porquê. Talvez porque se sente perdido num mundo que já não reconhece, talvez porque os vizinhos o desafiaram. Lá à frente, a uns trinta metros, segue Adelina, a líder, mulher de uns sessenta anos, rude e vigorosa. Já fez esta viagem muitas vezes; é quase uma rotina sazonal. Desta vez arrastou a sobrinha Vanessa, que anda com problemas com o namorado, e Beatriz, outra vizinha da sua geração, cujo homem está para a França e há quatro meses que não dá notícias. Partiram pelas 5 da manhã da sua aldeia da zona do pinhal, perto de Oleiros. Já devem ter andado mais de trinta quilómetros e começam a dar sinais de cansaço. É muito para o primeiro dia.

Há uns quilómetros que Mário pressente uma névoa no trilho ao lado do seu. Não é uma sombra, só a incerteza de uma miragem. Pouco depois torna-se mais densa e acaba por se materializar, inteira, caminhando. Parece um ancião, de cara esquálida enquadrada por um capuz branco. Será mais um peregrino que alcançou o grupo? Mário repara que todo ele veste de branco. Sem sombra, sem ruído.

Mário já viu muita coisa, está muito recetivo a visões, a ilusões. Caminha e espera. Caminhar, naquele ponto da viagem, já é automático; não se deixa perturbar pelos pensamentos. Os pés caminham, arrastando pó e areia. O desconhecido parece agora uma pessoa como as que o precedem, mas Mário pressente que não. Pressentir, intuir, é uma forma de conhecimento.

Já? — lançou, em tom dorido, ao desconhecido.

Este olhou-o no fundo dos olhos, com um olhar quase meigo.

Em breve!

Lá à frente, Adelina começou a puxar pelo grupo com uma canção de hossanas à virgem. Mário caminhou ainda um quilómetro, antes de ripostar ao estranho:

Podes dizer-me antes o que há do lado de lá?

Nada te posso dizer; sou apenas um arauto, um mensageiro.

Não sabes ou não queres dizer?

Eu nada sei.

Se nada sabes, porque apareceste agora? — impacientou-se o humano.

Eu não sou exterior a ti. Convivo contigo desde sempre.

Mário calou-se a ruminar na resposta. Estava cansado. Nem sequer lhe interessava falar agora. Em breve chegariam à Sertã e poderia descansar.


O trajeto está todo apalavrado. A pensão da Sertã é limpa e agradável. Mário atirou-se para cima da cama e ferrou logo no sono, mas o companheiro de quarto, um madeireiro de uns cinquenta anos, chamou-o e convenceu-o a tomar um banho e a comer qualquer coisa antes de se deitar.

Depois de um jantar ligeiro, o grupo reuniu-se numa pequena sala de convívio, com televisão. Os ânimos tinham melhorado, com o tratamento de bolhas em alguns pés e a previsão de umas horas de sono descansado.

Queres jogar xadrez? — perguntou o desconhecido de branco, ao seu lado, frente a uma mesinha com um tabuleiro e as peças alinhadas.

Não me apetece! — respondeu Mário, sincero. — Não tenho cabeça para isso. Preciso de mais tempo para saber mais. Se tu não me dizes o que há do lado de lá… Ou é só uma escuridão vazia? Existe lá uma entidade que justifique os preceitos éticos e morais que nos são exigidos e faça a triagem lógica entre bons e maus, algo que torne o sistema entendível e aceitável pela nossa mente? Porque se nesse desconhecido não existe mais que o nada, a vida redundou num absurdo trágico. Agora só consigo pensar que preciso de mais tempo.

O tempo não está marcado, mas tem de ser cumprido. Ouve, tenho uma proposta: se me venceres, prorrogamos a concessão por uns dias. Se perderes...

Por uns dias… Isso é de uma grande injustiça! Porque és irrevogável? Porque é que ninguém consegue um prolongamento dos seus anos, ninguém pode acabar o que deixa inacabado, ninguém consegue esconder-se ou furtar-se deste encontro funesto? Porque é que não se pode saber se há algo para lá dessa fronteira? Porque é que ninguém tem respostas, ninguém regressa para contar?

Fazes tantas perguntas...

Porque é que velhos e novos, ricos e pobres, humildes e poderosos, todos são obrigados a submeterem-se a ti? Porque é que nenhum vivente te escapa?

Também se chama mortais aos viventes…


A noite de Mário não foi das melhores. Estava cansado, mas agora não conseguia dormir. Passavam-lhe pela lembrança alguns achaques recentes: incómodos abdominais frequentes, dores de cabeça intensas que duravam pouco, taquicardias e sensações de morte iminente durante a noite. Mário concluiu que já não devia durar muito. Nem os seus 83 anos auguravam outra coisa. Costumava convencer-se de que já não tinha pena de morrer — já cá andava há muito tempo, já tinha o papinho cheio de boas e más experiências, de vida. Custava-lhe, de qualquer modo, não saber muitas coisas do mundo. E, de cada vez que pensava nisso, sempre achava que era uma enorme injustiça. Tantos anos a aprender o funcionamento do mundo e das pessoas e agora… Porquê? Para quê? Que lógica é que havia nisto tudo? Haveria alguma entidade a tomar conta da máquina do mundo? Ou tudo não passava de acaso?

Na outra cama, o seu companheiro de viagem roncava, a sono solto.


A alvorada foi às seis. Os olhos de Mário mantinham-se papudos, mal refeitos com as três ou quatro horas em que o cansaço vencera a sua mente agitada. Daí a meia hora, depois de um pequeno almoço apressado, todo o grupo estava em marcha, agora por estrada de alcatrão. Caminhavam em fila, pelo lado esquerdo da via, por causa dos carros. Mário continuava atrás. Daí a um bocado juntou-se-lhe o peregrino de branco.

Pode ser hoje? — indagou, cortês.

Mário não respondeu logo. Havia um turbilhão de perguntas em disputa.

Deixa-me chegar a Fátima. Talvez a nossa senhora interceda por mim. — Pareceu-lhe que tinha transparecido medo e corou. — Há deus, não há?

Faz diferença?

Deve haver; senão, porque se mantém ele como realidade desconcertante no nosso íntimo, apesar de todos os esforços para o extirparmos em nós?

Eu nunca o vi.

Será possível que esta indelével impressão íntima não passe de um mecanismo mental gerado pela evolução, que se revelou vantajoso, por nos tornar a vida suportável, ao fazer-nos acreditar que uma entidade toda-poderosa comanda o mundo e que a vida tem um sentido?

É possível...

É uma grande ironia, se não há deus. E uma grande maldade se há. A maldade começa com o facto de ele se esconder num misto de promessas meio-formuladas e recompensas improvadas. E de não responder. Se o único juiz que pode ou não confirmar o acerto das nossas escolhas, das nossas ações, não responde, instala-se a dúvida, a suspeita de que pode ser tudo uma gigantesca farsa. Qual seria então a razão disto tudo?

Essa lógica é humana — querer que tudo tenha um sentido.

Como é que pode ser de outra maneira? As pessoas têm de encontrar um sentido no que fazem. É da sua natureza. Esforçam-se por acreditar em deus, mesmo nunca o vendo, nem obtendo qualquer resposta às suas tentativas de comunicação. Sabem por experiência que não é possível acreditar, não acreditando. E mesmo acreditar não satisfaz o nosso entendimento. Gera uma indessedentável vontade de verdade que formule as questões e dê as respostas de maneira leal, sem subterfúgios, sem falsidades. Nessa demanda se vive. Por que não responde ele às nossas perguntas?

Talvez seja surdo ou mudo; talvez esteja noutro lado. Talvez não exista.

Oh, deixa-te de evasivas! Queres fazer-me acreditar que toda esta máquina de ilusão funciona e que tu és a única entidade real nela?

Eu, pelo menos, sou evidente e incontornável.

E se eu não acreditar em ti? Talvez deixes de existir. Alguns velhos teimosos gostam de dizer que nada ainda lhes provou que não são imortais.

Até que nos encontremos…

Oh! Não se pode falar contigo.

Mário sentiu-se, mais uma vez, por sua conta, exclusivamente. Sem apoios físicos, sem bordões ideológicos. Vasculhar os limites das grandes questões do ser e só encontrar silêncio e incerteza trouxe-lhe a mesma angústia da criança que acorda e se encontra só no negrume da noite.


A dureza das jornadas parece que vai deitar abaixo os que se atrevem a enfrentar tantos quilómetros, mas o corpo tem essa capacidade de reação, de adaptação, que o enrijece e o leva a suportar com mais facilidade o esforço. O grupo manteve-se unido e motivado nos dois dias que ainda durou a caminhada.

Então, ti Mário, aguenta-se até Fátima? — brincou Adelina, logo à saída de Ferreira do Zêzere. — Hoje a estrada é melhor!

Então, não havia de aguentar, Adelina? Antes de ser professor primário, fui carteiro. Calcorreei muitos quilómetros de serra.

Vejo-o tão calado...

Também nunca fui muito reinadio!

O velho de branco não deixou de comparecer ao encontro, mas Mário não se atemorizou com a ameaça implícita e o seu corpo enviava-lhe mensagens de satisfação física, cada vez mais encorajadoras. Parecia-lhe que quanto mais andava menos debilitado ficava. Se o desconhecido quisesse apunhalá-lo à traição, era com ele, mas Mário acreditava que até uma entidade destas tem alguma ética.

Os últimos quilómetros foram de andamento frenético. Toda a gente ansiava por concluir a jornada o quanto antes. Só se ouvia o arfar da respiração apressada. O estranho parecia apresentar algumas dificuldades para acompanhar o grupo. O primeiro indício foi um atraso tão ténue como o de uma passada, mas um quilómetro mais à frente já se atrasara uns dez metros. Ao aperceber-se disto, Mário esboçou um sorriso de tal maneira contido que o desconhecido não se teria apercebido dele, mesmo que ainda caminhasse ao seu lado. Quando mais à frente olhou para trás, só vislumbrou uma esparsa névoa, em vez de um ancião esquálido de branco.


A entrada no recinto principal do santuário gerou no grupo um clima de euforia e exaltação. Tinham conseguido, tinham-se superado. Abraçaram-se emocionados, improvisaram mesmo uma dança de roda, num estado potenciado pela grandiosidade do espaço e pela desmesurada multidão ali presente. Até Mário se manifestou falador e sorridente. Sentia-se revigorado e tão confiante como se tivesse ganhado uma segunda vida.

A poucos quilómetros, uma névoa esbranquiçada de forma humana, parecendo sentada sobre uma pedra da berma da estrada, resolvia mentalmente um problema de xadrez, enquanto esperava, como se tivesse todo o tempo do mundo.

Joaquim Bispo

*

Este conto foi apresentado pela primeira vez na Festa do Livro do Centro Artístico Albicastrense uma organização conjunta com a Alma Azul , em 26 de julho de 2018, pela voz de alunas da USALBI (Universidade Sénior Albicastrense).

*

Uma versão reduzida do mesmo foi selecionada para a 46ª edição (julho/agosto de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 85 a 88):

https://drive.google.com/file/d/1UQGefU6vzogEa772pS6q2EiAiDTRlSfX/view

*

Imagem: André Dinis, Muzinga (capa de livro de banda desenhada), 2024.

* * *

10/03/2024

A última morada

 



Respeita a minha última morada.

Pelo teu exemplo, talvez respeitem a tua.


Eburo estava indignado. A anta da sua família, com mais de 6000 anos, fora arrasada para plantar um amendoal.

Ninguém o avisara que os mortos não se indignam. Nem têm nenhuma das outras inumeráveis emoções dos vivos. Mas, não era o único morto que não tinha consciência da impossibilidade da sua vitalidade psíquica.

Comentou o desacato com familiares e amigos, mas não obteve mais do que encolheres de ombros. Parecia que todos já estavam habituados à falta de respeito pela integridade dos seus restos mortais e da sua última morada. Uma indignidade continuada. A falta de apoio deixou-o desalentado, mas não deixou de ruminar no assunto.

Na excursão a Lisboa que a autarquia organizou pouco depois, Eburo sentou-se ao lado de um tipo moreno de óculos. A conversa, em língua moderna, só podia rumar num sentido:

O vizinho já viu o que me fizeram? Arrasaram-me a anta de família, ali na Herdade do Vale da Moura. Aguentou 6000 anos sem estragos de maior! É claro que os esteios já estavam à vista e a cobertura estava tombada sobre um resto da terra da mamoa, mas estava completa, com um porte ainda nobre. Agora vieram estes tipos e mandaram aplanar o terreno todo, para plantarem um amendoal intensivo, como se lhes fizesse falta o terreno de 4 árvores. A última morada, minha e da minha família, não vale mais do que 15 ou 20 quilos de amêndoas. É de uma indignidade atroz, você não acha? Você é de onde e de quando?

Olhe, eu sou ali de ao pé de Montemor e estou morto de fresco. Morri há 4 anos e nem fui à terra, fui direto para o crematório de Ferreira. E pensa que os herdeiros levaram as cinzas para casa? Ná, foram para o cendrário coletivo do crematório. É assim a nossa vida. Você, ao menos, sabe onde era a sua anta; eu nem isso.

Eburo não respondeu, mas franziu o sobrolho, surpreendido com a revelação pungente do companheiro de viagem.

Eu até acho mais ecológico — continuou o interpelado. E tem algo de evocação primordial: o clã à volta da pira sobre a qual se depositava o falecido, as chamas altas, o fumo a subir. Parece uma solução própria de exércitos ou grupos étnicos em marcha. Prestam homenagem ao extinto e não deixam para trás qualquer resto que possa ser profanado por estranhos ou inimigos. Era assim no tempo da Guerra de Troia.

Só soube dessa guerra umas centenas de anos depois...

Somos a única espécie que tem comportamentos funerários — discorria o recém-conhecido. Devem ter surgido não só pela razão prática de fazer desaparecer a carne morta, como pela tomada de consciência da falibilidade da vida. Para os nómadas, se não praticassem o canibalismo, seria fácil abandonar o corpo à ação higienizadora de abutres e lobos; para os sedentários ligados à terra, o fogo purificador faria menos sentido do que enterrar o defunto. Adubava a terra. As plantas e os frutos que dali medrassem teriam um pouco do falecido, seriam o seu regresso ao ciclo da vida.

Eburo mantinha-se atento, mas conhecia bem aquele entendimento.

O resguardo dos restos mortais em urnas, jazigos, criptas deve ter sido adotado quando se ganhou a convicção, ou pelo menos a esperança, na vida depois da morte — prosseguiu o morto recente. — Manter o corpo guardado num local fechado podia ser a melhor forma de manter alguma coerência corporal. E se fosse bem preservado por uma mumificação eficaz, como faziam os Egípcios, e bem resguardado numa estrutura inexpugnável, como uma pirâmide, o morto tinha as melhores condições a que podia aspirar, quando iniciasse a viagem para um outro mundo, ou quando ressuscitasse.

Em Lisboa, Eburo tratou de visitar o Cemitério dos Prazeres. Já conhecia a fama da qualidade arquitetónica dos jazigos, mas o que o levou lá foi sobretudo tentar perceber se a falta de respeito pelos mortos e pelo património também se fazia sentir na grande cidade. A maioria dos jazigos parecia em bom estado e objeto de atenção frequente. Não meteu conversa com ninguém, porque os habitantes estavam recolhidos, e não era por causa da Covid-19; era porque já não podiam com tanto turista. Deambulou pelas avenidas do local, ficou mesmo surpreendido com o inesperado de algumas construções e com a qualidade das esculturas, mas, depois de muitas paragens, decidiu que, apesar de tantos arrebiques, a sua anta possuía — possuíra — uma beleza singela e natural que nenhum daqueles edifícios tumulares atingia. Deteve-se com alguma demora em frente do formidável mausoléu do Duque de Palmela. A grandiosidade da edificação, que alberga os restos mortais de mais de 200 membros da família, causava-lhe um misto de admiração e ressentimento pela ostentação faraónica. A seu lado, dois outros turistas isolados apreciavam o túmulo coletivo.

Admiro o cuidado com que mantêm esta necrópole em tão boas condições — lançou Eburo aos presentes. — E até fico impressionado, confesso, com a capacidade dela. Já sou mais cético em relação à longevidade… Eu estive numa anta no Alentejo, logo abaixo de Évora, rodeado por vários familiares, durante quase 6000 anos. Há talvez uma centena de anos, assaltaram-na e a maioria dos ossos dispersou-se. E, há uns meses, vieram com máquinas e destruíram-na completamente. Já tenho dificuldade em saber onde era. Até as pedras enterradas arrastaram dali. Há direito isto? Já não valem nada 6000 anos? Aonde é que nós chegámos?

Os outros dois olharam-no surpreendidos. Pareciam não querer conversa, mas após um tempo, um deles pareceu entristecer-se e baixou a cabeça. Parecia rememorar alguma coisa penosa. Por fim, tomou a palavra:

Como eu o compreendo, amigo! Isto são tempos terríveis. Não há respeito por nada. Você, se calhar, ainda encontra as pedras maiores da sua morada; eu nem isso.

Lembranças dolorosas fizeram-no baixar de novo a cabeça. Depois prosseguiu:

Chamo-me Creze. Vivi há 3000 anos numa área junto à serra da Gardunha. Fui agricultor de certa importância. Cultivava cereais naquelas encostas descarnadas e mantinha um rebanho numeroso, ajudado pela meia dezena dos filhos que chegaram à idade adulta. Quando morri, os filhos mandaram escavar uma grande pedra oblonga e enterraram o féretro na encosta de uma pequena elevação, na qual eu gostava de me sentar à sombra de um carvalho olhando a distância. Há coisa de 60 anos, um agricultor agradou-se da minha sepultura. Devia querer usá-la para bebedouro de animais. Desenterrou-a, levou-a para a sua quinta e tentou furá-la no fundo. Tanto martelou que a sepultura de pedra se partiu a meio. Frustrado e sem lhe encontrar já préstimo, no dia seguinte partiu-a a martelão.

Os ouvintes franziram o sobrolho, incomodados com o relato daquela depredação inútil.

O meu querido machado de bronze, que ele também tinha levado, foi parar às mãos do filho adolescente, que não reconheceu a peça, muito menos a sua antiguidade, apesar de ser estudante. Pouco depois, usou-o como escopro para uma das suas bricolagens. É claro que, com aquele uso inadequado, o machado abriu-se em lascas. A metalurgia do meu tempo não tinha a qualidade da de agora. Em dois ou três dias, o meu espólio, a minha última morada, a minha dignidade foram completamente esfacelados.

Eburo estava impressionado. Parecia que o seu caso, que tanto o indignava, era a regra: saque e destruição.

O outro ouvinte pareceu ganhar coragem para contar a sua história.

O meu nome é Arnth Vipinana, de uma das mais importantes famílias etruscas do final do século IV a.C., da qual provinham os altos funcionários do Estado. Vivíamos na zona a norte de Roma e a nossa gens tinha um nível cultural muito apurado, o que não impediu que viéssemos a ser absorvidos, nos últimos séculos antes desta era, pelos emergentes descendentes de Rómulo. Deixámos monumentos funerários admiráveis, de uma beleza sofisticada — sarcófagos encimados por figuras reclinadas, geralmente resguardados em grutas coletivas. Assim era o meu, uma arca em granito, com altos relevos de cenas guerreiras na face maior e que na tampa apresentava a minha figura de vulto, em atitude de descanso majestoso, reclinado sobre o lado esquerdo. Mantive-me em sossego durante 22 séculos, juntamente com outros familiares, cada um em seu sarcófago, na cripta coletiva subterrânea.

Os dois ouvintes circunstanciais mantinham uma atenção silenciosa.

Então, em 1839, a necrópole da minha família foi descoberta pela família Campanari. Os Campanari eram já prósperos comerciantes de antiguidades, com licenças estatais e tudo. Estava em alta a moda das antiguidades, potenciada por uma exposição de arte etrusca por eles organizada dois anos antes em Inglaterra. As peças etruscas rendiam bom dinheiro e muito do espólio encontrado foi leiloado pouco tempo depois. Por volta de 1867, venderam três sarcófagos da nossa cripta, incluindo o meu, por um preço fabuloso, a um emergente comerciante inglês — Francis Cook. Cook tinha acabado de comprar a Quinta de Monserrate, em Sintra e lançara-se na construção de um esplendoroso jardim romântico, com inúmeras espécies botânicas exóticas, trilhos serpenteantes, cascatas, lagos, pontes, ruínas falsas. Neste ambiente paradisíaco, colocou ele os três sarcófagos verdadeiros, aproveitando não só a sua beleza estética, mas também a sua capacidade evocadora, cada um em seu contexto cenográfico. O meu ocupava a abside da ruína falsa de uma capela e ali se manteve desde 1867, à mercê da ação da humidade, de líquenes e musgos, e sobretudo, do vandalismo dos visitantes, que é sempre ignorante. Aquele fabuloso parque foi mesmo votado ao abandono a partir de 1929.

É uma falta de respeito inaudita! — fez-se ouvir Eburo, que já estava um pouco cansado da explicação.

Em 1983, houve uma tempestade tal que a torrente arrastou uns metros o sarcófago que estava junto a uma represa e lhe levou a tampa, que nunca mais apareceu. Foi um dia muito triste para nós os três. Só nessa altura as autoridades nacionais recolheram os sarcófagos no abandonado Palácio de Monserrate, mas com tal falta de cuidado que esborcelaram gravemente aquele já castigado pela tempestade. Mas terminavam 116 anos de grande degradação e angústia. Finalmente, em 1997, criaram uma câmara especial, a lembrar uma cripta etrusca, no Museu Arqueológico de Odrinhas, onde me sinto razoavelmente. Só me queixo da vozearia que vem da Sala dos Romanos — um salão com umas boas dezenas de estelas e pedras tumulares.

Isso foi uma odisseia e tanto, amigo! — respondeu, por sua vez, o beirão. — Mas ao menos acabou em bem. Já quanto a nós…

— “Em bem” é uma maneira de dizer; o amigo desculpe — ripostou o etrusco. “Em bem” era ter-me mantido na cripta em que os meus familiares me colocaram, e não vir parar a uns milhares de quilómetros, a servir de decoração e divertimento para gentes que não conhecia.

Tem razão, pois claro, desculpe. Mas como compreende, a nossa situação é muito mais penosa que a sua. Infelizmente, não há muito a fazer. Não é verdade, amigo alentejano?

Eu não sei. Acho que isto não fica assim; não pode ficar assim. Só me apetece ir lá deitar-me na cama dos que me fizeram isto. Se calhar, não davam por nada; ou talvez sentissem um fresquinho, sem saberem de onde vinha… Pelo menos, tinha onde descansar.

Creze gostou da ideia. Logo ali resolveram os dois criar um movimento dos “sem tumba”. Haviam de organizar-se, reunir o apoio de tantos outros deserdados, propor formas de ação, intervir no mundo dos vivos, ainda que de forma subtil.

Despediram-se do itálico, que prometeu pensar no assunto.

Quando passarem por Sintra, vão-me lá visitar a Odrinhas — convidou.

Está prometido, Arnth! Arrivederci — brincaram os ibéricos, bem-humorados.

Foi bom humor de pouca dura. Daí a pouco, no elétrico, enquanto lançavam olhares distraídos ao jornal que um cidadão folheava, carregaram de repente o semblante. Uma pequena notícia no interior, de título “Outra anta do Neolítico arrasada no Alentejo”, informava que o crime acontecera no mês anterior na Herdade dos Pardais, Cabeção, Mora.

Joaquim Bispo


*

Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 44ª edição (março/abril de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 71 a 74):

https://drive.google.com/file/d/1p23s5QFHjyx7ieM_btfnEYNRrYFF3m6r/edit

*

Imagem: Sarcófago etrusco de Arnth Vipinana, c. 310–300 a. C.

Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, Sintra.

* * *

10/01/2024

Vencido

 


Na distante China, tinha surgido mais um vírus. Como tantas vezes antes. Não costumava chegar cá e, quando chegava, não passava de uma gripe fugaz. Os chineses tinham lá aqueles ambientes insalubres. Víamo-los andar frequentemente de máscara, por causa da poluição, por causa de uma fuga química, por causa de um dos vírus deles.

Agora, pareciam estar bastante aflitos, a fechar cidades e fronteiras, a controlar milhões de pessoas por meios eletrónicos. A mandarem-nas ficar fechadas em casa. O número de infetados começava a ser assustador. E o de mortos parecia irreal. Tudo por causa de um vírus que passara de um morcego para um pangolim, que alguém comera? Esperávamos que conseguissem ultrapassar o problema, que, felizmente, não chegara cá. Nem chegaria — asseguravam-nos.

Era por meados de fevereiro. Manuel Gondim juntou a família para comemorar os seus 76 anos. Era bom ter os mais pequenos na sua festa, brincar com eles. Não tinha preço o enlevo.

Em poucos dias, começou a ouvir-se falar em infetados no Irão, em Itália, em Espanha… «Aqui ao lado? Oh, caraças!» Pelos ditos, era gente que tinha estado na China e viera infetada. Parecia ser meia dúzia de episódios infelizes. A eficácia dos sistemas de saúde ocidentais iria travar a propagação, sem problema — pensava-se.

Começou então a perceber-se que o mundo se tornara um lugar global, no qual as pessoas se deslocavam entre todos os lugares em números astronómicos. Que, enquanto se tratava um doente, muitas outras pessoas já tinham sido contaminadas por ele, sem ninguém perceber. E que, a cada momento, milhares de infetados estavam a contaminar milhares de outras pessoas insuspeitas. E que este vírus não provocava uma gripe vulgar. Estava a matar em números inimagináveis.

Manuel aproveitou uma previsão de uma semana de bom tempo para ir à terra plantar árvores. Agora, de velho, interiorizara a necessidade ambientalista de contribuir para deixar um planeta menos inóspito aos netos. Árvores, oxigénio, humidade, biodiversidade. O quintal era grande; dava para uma vintena de árvores, mesmo separadas por intervalos de seis ou sete metros. Plantou nogueiras, castanheiros, limoeiros, macieiras. Até a bizarria de uma pimenteira. Não se importou com a imagem de velho alquebrado a manejar uma enxada. Só os braços se queixaram. Três dias depois, contemplou aqueles caules frágeis a fazer verdejar meia dúzia de folhinhas, cada. Tinha parecido uma utopia e, afinal, fora tão fácil. Esperava que daí a um ano já tivessem um metro de altura. E daí a cinco anos?

No regresso, as notícias vieram derrubar o seu contentamento: o governo aconselhava isolamento social, dado o perigo de morte de quem fosse contaminado, em idades elevadas. O vírus tinha uma taxa de letalidade de mais de dez por cento, em pessoas acima dos setenta. Fechou-se em casa com a mulher, com a consciência cada vez mais aguda de que sair à rua era uma jogada de roleta russa. Podia-se ir à mercearia em frente e voltar são, ou trazer para casa uma silenciosa sentença de morte.

Foi tentando entreter-se a acabar as dezenas de leituras que deixara a meio e a acompanhar uma ou outra série, mas a apreensão nunca o abandonava. Sabia que o assassino andava lá fora, pronto a apanhá-lo, não tinha dúvidas. Os dados da sua cidade indicavam uma subida constante de infetados que, em pouco tempo, já ia em várias centenas. Quantas outras centenas de infetados andariam já por aí, sem ninguém saber?

O mundo transformara-se na mais aterradora versão de um filme-catástrofe de série B. As imagens das grandes cidades europeias mostravam ruas tão vazias como a sua. Eram vulgares por todo o mundo imagens de filas de caixões, lares de idosos cheios de velhos mortos, sepultamentos em valas comuns. O diabo fora libertado e cobrava corpos com todo o rancor que os livros sagrados afiançavam.

Manuel ia registando os números fornecidos pelas autoridades de saúde, compondo gráficos de progressão, sempre na esperança de notar as curvas vergarem-se ao controlo humano. E observava a limpidez saudável do mapa do seu concelho de origem: sem registo de infetados.

As informações dominantes diziam que toda a gente acabaria por ter contacto com o vírus; a estratégia nacional era defensiva e procurava que esse contacto se desse o mais tarde possível, para que o sistema de saúde fosse mantendo, ao longo do tempo, a capacidade para tratar quem ficasse doente, sem colapsar. A esperança — ténue — era só a de maior disponibilidade de meios de tratamento, não de cura. Não era dada nenhuma garantia de que ele, ou qualquer outro, se salvasse, se só fosse infetado daí a muito tempo. Tudo dependia da capacidade de internamento hospitalar.

A meio de abril, Manuel desabou de desalento: morrera do vírus o escritor Luís Sepúlveda, no mesmo dia em que a limpidez cartográfica do seu concelho fora manchada pelos primeiros infetados. Um choro rouco saiu-lhe da garganta.

Havia que tomar uma posição pessoal sobre a própria vida. Afinal, devia ter medo da morte ou enfrentar a ideia com toda a racionalidade? Não se entregaria, não; se ela o quisesse, teria de vir buscá-lo. Mas também não se importaria de morrer, concluiu, com tristeza. Pensando bem, tivera uma vida boa e razoavelmente longa. A conclusão deu-lhe uma calma que já não tinha havia algum tempo.

Manuel começou a preparar o que ia deixar. Era bom que os herdeiros encontrassem as papeladas organizadas. Iriam agradecer-lhe. Passou a embrenhar-se nos inúmeros papéis que abundavam nas estantes da arrecadação. Tanto papel irrelevante, tanta tralha de que já não se lembrava. Mesmo quando estava bem arrumada em dossiês. Foi enchendo sacos de papelada inútil. Que ia despejar ao papelão, noite adentro, para não encontrar ninguém.

As reflexões desencadeadas pela situação de confinamento social produziram nele algumas alterações subtis. Começou a prestar maior atenção à passarada que, com a menor quantidade de gente nas ruas, passou a fazer festas e concertos nas árvores próximas. Gostava especialmente do canto dos melros, muito mais sociáveis do que eram na sua adolescência rural. E passou a dedicar muito tempo a vê-los caçar no jardim traseiro e a deslocar-se como cães de caça, no típico corre-e-para, a perceber onde está a minhoca, que devem achar saborosa.

Finalmente, os números começaram a abrandar a ferocidade. Claramente, tinha passado o pico da pandemia e começava a falar-se em desconfinamento. Havia que pensar agora na economia. Gradualmente, reabriram barbeiros, restaurantes, escolas, centros comerciais. A normalidade anunciava-se com otimismo. Cortaram-se as florestas capilares, voltou a saborear-se o prato especial no restaurante favorito, os pais de crianças e jovens em idade escolar suspiraram de alívio por voltarem a ter um pouco de sossego em casa.

Manuel Gondim voltou a reunir em casa filhos e netos, no almoço de domingo. Um sentimento de esperança na vida andava no ar. Qualquer dia iria à terra verificar se as suas arvorezinhas se tinham aguentado.

Mas a besta não tinha desaparecido. Mantinha-se alapada em pulmões insuspeitos, manhosa e cobarde. Então, passadas poucas semanas, as notícias davam conta da explosão de vários focos de centenas de infetados por conta, ora de festas ou ajuntamentos com inúmeros convivas fartos de confinamento, ora de lares de idosos que pareciam pegar a infeção como a palha pega fogo. E também por via das condições precárias de transporte das multidões de gentes que tinham de viajar engarrafadas pela madrugada, para compor os cenários de trabalho de camadas de população não tão desfavorecidas. Foi reimposto o isolamento social radical em várias cidades, inclusive, na sua. Nos Estados Unidos e no Brasil, os números descomunais de mortos refletiam o delírio negacionista de matriz evangélica dos presidentes.

Manuel voltou a remeter-se ao exílio caseiro. Uma grande tristeza ia invadindo o seu olhar, enquanto testemunhava o ermo em que voltara a transformar-se a sua rua.

Por inícios de julho, começou a tossir; tosse seca, persistente, não produtiva. Como se tivesse a garganta arranhada. Não valorizou. Quis acreditar que devia ser outra coisa qualquer. Podia ter apanhado um golpe de frio, ao ir de noite à rua. Ou ser uma irritação ao omnipresente álcool-gel. Mesmo que fosse uma constipação… Com o aparecimento de febre, ligou para a linha dedicada à Covid-19. Uma equipa especializada foi fazer-lhe um teste de despiste. Mandaram-no passar a dormir noutro quarto, e que os cônjuges usassem máscara, nos contactos imprescindíveis. Telefonariam com regularidade, para avaliar a evolução.

Continuou a piorar sensivelmente ao longo da noite. No dia seguinte, uma ambulância foi buscá-lo e levou-o para o hospital público — blocos de Covid-19. O teste dera positivo.

«Como? Onde? Quando?» — perguntava-se, revoltado com a cobardia da besta e a injustiça perante o seu imaculado confinamento. Quiseram saber quem o poderia ter infetado. Como saber? Talvez numa das idas à mercearia, apesar da máscara. Ou daquela vez que encontrou um desgraçado a vasculhar o caixote, quando foi despejar lixo.

Manuel estava sozinho, mas percebeu muitos outros doentes, no bloco. Depois da administração dos fármacos que então se considerava darem resultados, embora incertos, a equipa médica percebeu que ele começava a ter dificuldade em respirar e que, se não fosse ligado a um ventilador, corria risco de vida.

Apesar de envolvido por uma neblina de ansiedade e estupefação, sentiu a atrapalhação de médicos e enfermeiros. «Só há um ventilador» — pareceu-lhe perceber da conversa. Lembrou-se então das palavras recentes de um general que, de peito feito, tinha declarado que, em caso de necessidade, abdicaria de um ventilador a favor de um homem com mulher e filhos. Dando a entender que qualquer idoso devia fazer o mesmo.

Era um gesto bonito, um ato digno de ser o último de uma vida. Decidiu-se por ele; sentiu orgulho de si.

Sem tentar reprimir o alagamento dos olhos, conseguiu chamar uma enfermeira e comunicou-lhe a terrível decisão:

Se tiverem alguém mais jovem… — inspirou duas ou três vezes antes de conseguir completar — deem-lhe o ventilador antes a ele.

E deixou cair a cabeça, derrotado, mas sereno.

Não se preocupe, senhor Manuel. Vamos levá-lo para os Cuidados Intensivos onde será devidamente tratado. Há lá muitos ventiladores, com certeza. Vai ficar tudo bem!

Foram as últimas palavras que ouviu, antes de se apagar. O sentimento de fracasso neste último gesto esvaiu-se com ele. Apesar da respiração assistida por um ventilador, não voltou a dar acordo de si. O óbito foi declarado ao fim de dezoito dias.


Joaquim Bispo

*

Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 14ª edição (dezembro de 2023) da Revista Fluxos, em formato e-book (páginas 63 a 65):

https://www.calameo.com/read/0063543785d5f96354244


*

Imagem:

Simon Vouet, O Tempo derrotado pelas Esperança e Beleza, 1627.

Museu do Prado, Madrid.

* * *


10/11/2016

A Vida Continua


Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm avenidas bordejadas de “palacetes” e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitetura que, ao longo dos tempos, tem refletido a arquitetura dos vivos. E mais bem preservada do que a da cidade dos vivos. É que, nessa cidade dos mortos, não é necessário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros.
Veem-se jazigos de todos os estilos: neogótico, neomanuelino, neoclássico, “casa portuguesa”. Uns, imponentes, a refletir a importância do defunto em vida, outros, discretos, a exaltar a humildade devida ao novo estado. Alguns são autênticas esculturas arquiteturais.
É nos cemitérios que existe, talvez, a maior concentração de escultura por hectare. Alguma, de grande qualidade. Além de chorosos anjos, escondendo a face, encontram-se, também, muitas alegorias da dor e da perda, adequadamente acompanhadas de fustes de colunas partidos ou troncos de árvore decepados precocemente. Lápides verticais ostentam delicados rendilhados florais em alto-relevo ou símbolos adequados à profissão e ao estatuto do finado, em vida.
Uma deambulação por um silencioso cemitério lisboeta é, quase de certeza, mais tranquilizante e culturalmente mais estimulante do que um passeio por muitos dos jardins da cidade.
Estes cemitérios têm ritmos próprios. Cada talhão de enterramento passa por uma fase de alvoroço, com a abertura de novas covas e montões de coroas de flores em cima de montes de terra, que progride, durante umas poucos semanas ou meses, em linhas paralelas ao longo do talhão. Aos poucos, o campo de linhas revoltas vai evoluindo para um prado de aspeto arranjado, pincelado de lajes de mármore e floreiras multicoloridas. Chega um momento em que todo o talhão se arrumou e mantém um aspeto muito estável durante cinco anos, com os mármores alinhados, entremeados por um ou outro simples monte de terra dos defuntos de menos posses, cada um com a sua floreira. Às vezes, com uma ou outra placa de mármore com inscrições prosaicas, ou menos esperadas, como “Grand-maman — Je ne t’oublierais jamais”, a refletir o fado da emigração.
Quase sempre, esses talhões de meio hectare de área estão circunscritos por um muro quadrilátero, de gavetas de cimento embutidas, nas quais, mais tarde, serão depositados os pequenos caixões contendo apenas os ossos lavados e desinfetados dos corpos que tenham atingido o estado necessário ao levantamento.
Estar sozinho num desses talhões, a observar a extensão florida agitada pela aragem e a ouvir o concerto da vibração das centenas de pequenas floreiras metálicas, faz qualquer um sentir-se num universo distinto do nosso. São várzeas artificiais, prados de flores naturais de caules cortados à medida, e de flores de plástico, inseridas em floreiras, numa densidade e numa multiplicidade de cores que nem a Natureza produz.
Depois, passados os cinco anos da curtimenta, os talhões começam a ser escalavrados pelos levantamentos avulsos, que deixam uma paisagem desoladora semeada de crateras retangulares por entre as campas intactas, cujos ocupantes se atrasaram a atingir a decomposição total. Passado algum tempo, tudo recomeça e o talhão recobra a “vida” florida — se de vida podemos falar —, para mais um ciclo de enterramentos.
Aos domingos, na Ajuda, os ciganos instalam-se todo o dia no cemitério a honrar os seus mortos. Pintaram de branco a moldura da gaveta onde está o caixão do familiar falecido e o chão do passeio por baixo da gaveta. Mantêm-se por ali a limpar a gaveta, o caixão, o pano que o tapa e depois ficam simplesmente sentados, de porta da gaveta aberta com várias fotografias do defunto expostas e jarrinhas de flores sobre panos bordados brancos.
Os outros vão menos ao cemitério. E tanto menos quanto maior o inexorável apagamento da dor que a passagem do tempo provoca. As floreiras deixam de ter flores naturais e ficam-se pelas de plástico que “duram mais tempo”. Não muito, que também estas são, às vezes, levadas pelo vento ou tão só carcomidas por chuvas e sol. No fim do verão, a maioria das floreiras está vazia, ou tem uns pedaços de flores ressequidas, quando muito.
Perto do Dia de Finados — 2 de novembro —, os cemitérios enchem-se, numa romaria de mãos carregadas de flores. Cumpre-se a “obrigação” e o ritual. Nessa ocasião, são sobretudo os muros repletos de gavetas que registam uma primavera fora de época. Veem-se pessoas de todas as idades encavalitadas nas escadas metálicas que os cemitérios disponibilizam para aceder às posições mais elevadas.
Por entre o bulício respeitoso dos que levam um rumo determinado, percebe-se que há quem ande perdido e é possível ouvir pelas alamedas discussões em surdina sobre a localização das gavetas que procuram. Quem não visita esquece e há quem deixe passar muito tempo. Até por defesa.
Pode ler-se, aqui e ali, nas portinhas: “O tempo passa — A saudade aumenta”. Ou outra mentirinha parecida, crida com toda a sinceridade. O tempo passa e tudo faz passar, felizmente. Ninguém conseguiria viver, sempre, com a dor dos primeiros dias; ninguém conseguiria aguentar, ano após ano, as saudades sentidas no primeiro.

Joaquim Bispo
* * *
(Esta crónica foi publicada no número 11 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2008.)
* * *