Pouco antes do Natal, ao
levantar-se, Otávio deparou com a seguinte mensagem, colada na porta, escrita com palavras recortadas de jornais e coladas
num pedaço de papel: «/ milhões / anjinhos / visitaram / chefe /
guitarra / servida / niquinhos /».
Incompreensível como parecia,
não lhe ligou grande importância. De qualquer modo, telefonou à mulher. Não tinha visto nada, quando saíra. Teria sido, com
certeza, composta por algum grupo de miúdos desocupados tentando
divertir-se à custa dum vizinho. Espreitou pela janela do quarto a
ver se descortinava os malandrinhos alapados por detrás de algum
arbusto. Ninguém. Atravessou o corredor e espreitou pela janela da
sala. A rua estava deserta, ou antes, com os esporádicos passantes
habituais. Nem sombra dos catraios.
Sentou-se no sofá e atentou
melhor naquele conjunto de palavras alinhadas no papel. Seria algo
para levar a sério? Hum! Parecia tão desconexo, sobretudo a parte
final.
De repente, um sobressalto.
Pareceu-lhe detetar uma ameaça; velada, mas grave. “Anjinhos”
remetia abertamente para a outra vida, ou antes, a morte. E a sua
guitarra escavacada e servida em niquinhos pareceu-lhe uma ameaça
típica da Máfia.
Sentiu-se empalidecer.
O tempo do verbo na primeira
frase — “visitaram” — fez-lhe temer por uma intrusão já
realizada. Levantou-se de um salto e vistoriou a casa. Tudo em ordem.
Aparentemente. Espreitou para o quintal. Rex, o cachorro, também
estava vivo e de boa saúde. Estava entretido a remexer a terra. Nada
parecia indicar que alguém tivesse entrado enquanto dormia. Aliás,
Rex teria dado sinal.
Parou a admirar o seu
dinamismo. Havia alguma coisa de estranho na maneira como se
movimentava. Talvez a sua atitude furtiva. Observou-o melhor.
Foi então que percebeu que a
azáfama em que estava empenhado tinha por objetivo enterrar vários
pedaços de jornal, uma tesoura e um tubo de cola!
Joaquim Bispo
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Imagem: Cruzeiro Seixas (1920–
), Galopando no sonho, escultura em bronze.
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