A
minha interpelação direta não era impertinente, porque eu e a
minha mulher já tínhamos mantido algumas conversas com este casal,
noutras ocasiões da viagem. Na Tunísia, deslumbrados na
contemplação de mosaicos romanos, num dos inúmeros locais onde se
mantêm bem conservados, lembro-me de o marido comentar: «Estas
obras de arte não têm preço! Como eu gostava de viajar no tempo e
ver estes banhos a funcionar com as pessoas da época!», o que foi
pretexto para falarmos um pouco do tema, reconhecidos, que foram,
alguns gostos próximos.
— Já
a visitámos duas vezes — respondeu Renato, o companheiro de
cruzeiro. — Vimos com alguma frequência a Istambul. Como já lhes
disse, sou colecionador e comerciante de arte, e a pintura turca,
especialmente a de alguns artistas mais vanguardistas, está a
crescer na cotação internacional. Ontem, estivemos em casa de um
deles e comprei-lhe uma dúzia de obras de pequeno formato, que não
vimos preparados para levar obras maiores. Se quiserem, depois
podemos vê-las!
— Ah,
adorava! — respondi, cortesmente. — Ontem, vimos algumas telas no
Grande Bazar, mas não faço ideia se são representativas da pintura
que se pratica por aqui.
Estávamos
com as respetivas mulheres, na fila do almoço self-service, e o
paquete deslizava pelas águas do mar Egeu, de regresso a casa.
Sentámo-nos, depois, numa mesa para quatro. Cada um falou daquilo
que mais o tinha impressionado. Eu alonguei-me, sobretudo, nas
emoções de vaguear pelo Bazar das Especiarias — um mundo
assombroso para os olhos ocidentais.
Depois
de um digestivo no bar, que à noite se transmutava em discoteca,
fomos à cabine dos nossos novos amigos. Renato e a mulher, Jennifer,
mostraram-nos, então, as novas aquisições. Eram uns oito pequenos
quadros figurativos de certa ingenuidade e uns cinco abstratos.
Pareciam mais souvenirs baratos, que obras de arte passíveis de
transação de alto preço. Confesso que fiquei desapontado.
— Isto
vende? — perguntei, sem tentar esconder o desconforto.
— Ó
Francisco, já vi que tem dificuldades com a arte contemporânea.
Arte é o que o artista diz que é arte, e torna-se vendável o que o
sistema mundial da arte reconhece como arte. Há um século que
deixou de ser equivalente a belo. As elites anseiam por novidades. O
diferente tem a venda quase garantida.
— Realmente,
esperava outra coisa…
— Este
artista é ainda jovem e, com uma promoção adequada, pode vir a
atingir bons preços no mercado. A arte pode ser encarada como um
investimento, como outro qualquer. Há que estar atento às
tendências, como um especulador vigia os movimentos da Bolsa. O
segredo é «comprar em baixa», se assim me posso exprimir. Neste
caso, antes de o artista ser muito conhecido e a cotação dele
disparar.
Saímos
e dirigimo-nos ao deck da piscina.
— O
que eu faço — continuou Renato — é descobrir, em qualquer parte
do mundo, artistas pouco conhecidos, mas cujas obras se enquadrem
numa tendência que esteja a crescer em aceitação. E invisto. Mais
de metade dos quadros que viu irá parar a uma galeria que temos em
Nova Iorque; os outros, ponho-os na de Lisboa e vou guardar um para a
minha coleção pessoal. Vou ver como o público reage. Creio que
esta expressão pseudoingénua, com evocações exóticas, está a
ter cada vez mais procura.
— Portanto
— retorqui num tom ligeiramente crítico — a arte para si,
afinal, não passa de um negócio!
— Gosto
de arte, mas também vivo dela. É como um jogo — íamos a passar
junto à sala das slot-machines —, mas onde eu controlo alguns dos
aspetos. Já viu estupidez maior que a destas pessoas, que pensam que
podem derrotar uma máquina programada para as vencer? Eu exponho em
feiras de arte e promovo o meu investimento, com notas para a
imprensa especializada e catálogos escritos por especialistas que
sabem encontrar as virtudes de qualquer obra de arte, como faz um
administrador quando anuncia os resultados trimestrais da sua
empresa.
Instalámo-nos
em espreguiçadeiras, na zona da piscina, com as brincadeiras da
juventude na água, dum lado, e o azul profundo das águas de
alto-mar, do outro.
— Ainda
voltando ao jogo — prosseguiu Renato — está muito enraizada a
ideia de que se se lançar uma moeda ao ar vinte vezes e vinte vezes
sair «coroa» — ou que sejam cem! — haveria uma maior
probabilidade de sair «cara», no próximo lançamento. Ora isto é
um erro perigosíssimo, se se estiver a apostar forte. A moeda não
tem qualquer memória dos lançamentos anteriores. Terá, exatamente,
a probabilidade de cinquenta por cento de sair «cara». A mesma que
de sair «coroa».
— Não
estou a perceber!
— O
que eu quero dizer é que o que parece lógico nem sempre é o que na
realidade acontece. Os gostos mudam e há que estar atento aos
movimentos da sociedade. Que pintor lhe faz lembrar esta piscina? A
mim faz-me lembrar David Hockney — continuou sem me dar tempo de
avaliar. — Foi uma sociedade hedonista, onde o corpo era e é
glorificado e a homossexualidade ganhou espaço, que permitiu as
pinturas apolineamente erotizadas de Hockney.
A
conversa já começava a enfadar-me e tratei de a desviar para as
frivolidades das conversas de viagens. Dois dias depois, quando
passámos uma dezena de horas em Roma, fomos os quatro fazer o
passeio sugerido por Renato. Não nos interessava repetir as visitas
aos museus do Vaticano, às catacumbas e quejandos, que tínhamos
feito doutra vez. Levou-nos a ver obras importantes, mas que não
ficam nos roteiros habituais. Vimos o rosto «terrível» do Moisés
de Miguel Ângelo e o inacreditável Êxtase de Santa Teresa
de Bernini, onde não sabemos com o que mais nos surpreender: se com
a inesperada expressão de gozo sensual de Santa Teresa, se com o
facto de tal grupo escultórico erótico estar há séculos num
altar. Renato aproveitou para teorizar sobre os jogos subconscientes
da mentalidade de cada época e a resposta que a arte lhes dá.
Nessa
noite, ainda confraternizámos e dançámos na discoteca do navio,
onde uma pequena, mas estimulante, banda animava os foliões antes de
deitar. Lá pelas cinco da manhã, acordámos com grandes solavancos
do barco. Saí, cambaleante, para o corredor deserto e espreitei o
mar. Estava bastante encapelado, devido a vento forte, mas o barco
não parecia intimidado. Ao pequeno-almoço, pouca gente apareceu. O
mar continuava agitado e o ambiente era deprimente, com gente
amarelada a retirar-se para as cabines. Renato e a mulher foram dos
que preferiram curtir o enjoo longe de olhares.
Chegámos
a Barcelona a meio da tarde, já com bom tempo. Dos nossos amigos,
nem sinal. Atracado o paquete, houve atrasos inesperados, antes de
nos libertarem para as ruas da cidade. Havia movimentações no cais,
pessoas entravam e saíam do barco, até que, estupefactos, vimos
Renato ser levado algemado para fora do navio, com a mulher a
acompanhá-lo. Em vão, tentámos saber o que tinha acontecido. No
dia seguinte, depois de termos visitado o extraordinário parque
Guell, do Gaudí, deparei-me com a fotografia de Renato na capa de um
jornal local. Lemos a notícia, sofregamente, e oscilámos entre o
sentimento de incredulidade, perante as revelações do jornal, e de
desconforto pela nossa ingenuidade. Segundo o jornal, uma longa
investigação tinha descoberto que Renato era um recetador de
inúmeros ícones roubados em pequenas igrejas ortodoxas da Bulgária,
que eram canalizados para agentes, na vizinha Istambul. Os ícones
pintados eram dissimulados por detrás de quadros contemporâneos
vulgares e Renato usava os cruzeiros para os fazer sair do país,
devido ao menor controlo de fronteiras exercido nestas
circunstâncias.
Dei
por mim a pensar como é que Renato enquadraria este desenlace nas
suas teorias dos jogos…
Joaquim
Bispo
Imagem:
Ícone ortodoxo
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(Este
conto integra a coletânea organizada pelo blogue português Ora,
Vejamos…, em 2009.)
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