O
nome de batismo era Armindo,
mas “Rolhas” foi o que passaram a chamar-lhe, desde que a
namorada o deixou e ele começou a pedir rolhas ao senhor Mário do
Estrela
— um restaurante na calçada da Ajuda —, ninguém sabia para quê.
Desde
pequeno, era um rapaz metido consigo, e o facto de ser muito magro e
alto, também não ajudava a fazer amizades. O pai era carregador no
mercado da Ribeira e a mãe vendia hortaliça, de manhã, na praça
da Boa-Hora. Nem para uma coisa nem para a outra arranjaram, os pais,
maneira de o entusiasmar. De vez em quando, a mãe conseguia que lhe
dessem trabalho — carregador em lojas de móveis, moço de fretes
em mercearias — mas rapidamente abandonava o trabalho, quando não
era o patrão a dizer à mãe que o rapaz andava sempre nas nuvens e
não dava conta do recado. Deambulava pelos bairros da Ajuda e
do Caramão ou refugiava-se na mata de Montes Claros. Ou então,
isolava-se na biblioteca do Centro Paroquial a ler poesia. Numa
dessas vezes, escreveu nas costas do cartão de leitor:
Vagueio
por um mundo que me não conhece
A
minha alma anseia o além
Aí
pelos dezanove anos, começou a namorar uma vizinha, a Alcina, que
achava graça ao seu ar
desajeitado. Sentavam-se aos domingos num banco do Jardim Botânico da Ajuda,
debaixo de uma tília. Ele recitava-lhe pequenos poemas de Cesário
Verde e ela sentia que não havia nenhum homem tão sensível como o
Armindo. Numa dessas tardes, à sombra da tília, ele recitou-lhe um
poema de sua autoria, como se fosse de Cesário, para ver se ela
notava a diferença. Começava assim:
Olhaste-me
graciosa e prazenteira
Como
se eu fora de todos o mais nobre…
Ela
não notou diferença, o que muito o envaideceu. Foi um namoro
agradável e alegre, enquanto durou. Passado um ano, Alcina sentiu
que a mesa não se ia guarnecer com poesia e passou-se para o filho
do dono da serralharia do Altinho, com o qual casou pouco depois. Foi
um rude golpe para Armindo. Alguns diziam que o moço desatinara e
apontavam o facto de ter passado a andar sempre com um bolso cheio de
rolhas de cortiça. Por essa altura escreveu numa carteira de
fósforos:
O
poema só brota nos peitos esfacelados
Uns
meses depois, um tio, que trabalhava no Jardim Tropical, puxou-o para
jardineiro. Tratar das plantas e dos canteiros, manter o jardim
limpo, eram tarefas que lhe agradavam. O contacto com as plantas e os
animais, a perceção dos seus ciclos, faziam-no sentir-se em
comunhão com o mistério da Natureza. Escrevia:
Deixa
a palmeira para a algazarra dos pardais
e
a araucária para o bulício dos demais!
Na
paz do dragoeiro faz, melro, o teu poleiro!
Quando
ganhou experiência, encarregaram-no
dos viveiros nas estufas, onde pôde e pode trabalhar sozinho, como
gosta. Prepara as pequenas leiras de terra, semeia e cobre as
sementes, identifica as plantações, rega as pequenas plantas quando
germinam, transfere-as para vasos ou canteiros, quando atingem
tamanho adequado, e cuida delas até serem mudadas para o ar
livre.
Embora
atento ao que faz, a sua mente arquiteta frases, avalia rimas e
sonoridades, sobretudo ausculta o coração. Depois, à hora de
almoço, senta-se num banco e verte, num caderno de papel colorido, o
que o íntimo lhe inspira:
Todo
o caule por minhas mãos tange.
Esgrimo
da mandrágora o alfange,
o
aloendro murmura e range.
Quando
o dia de trabalho termina,
dirige-se para a beira-Tejo, a jusante da estação dos barcos, com
uma bolsa de lona a tiracolo. Senta-se no paredão e fica a
contemplar o rio.
«Para
onde irão todas estas águas? Alguém lhes marca o destino? Algo as
aguarda?», são perguntas que lhe acodem ao espírito. «Como admiro
a serenidade com que seguem, resolutas, na direção do sol-pôr! Lá
longe, outros olhos de outros sonhadores nelas pousarão e delas
colherão a beleza que eu vejo.»
Armindo
tira então da bolsa uma garrafa vazia de vidro transparente, separa
a folha de caderno com o seu pequeno poema, enrola-a, ata-a com um
junco seco e introduz o rolo na garrafa, com cuidado. Num ritual
sempre igual, tira do bolso uma das rolhas e veda a garrafa
meticulosamente. Então, levanta-se e atira a garrafa ao rio, tão
longe quanto a sua força alcança. Solene, fica a observá-la,
primeiro com o gargalo a esbracejar, como se apelasse por socorro,
depois num suave gesto de adeus e, por fim, a deslizar lenta e
impercetivelmente,
em direção ao mar.
À
noite, antes de adormecer, com o “Só” de António Nobre à
cabeceira, sente às vezes algo indefinível, como que uma sintonia
com um espírito desconhecido, mas tão íntimo como si próprio.
Gosta de imaginar que, lá longe, numa praia remota, alguém,
vagueando ao sabor dos seus pensamentos solitários, encontra uma das
suas garrafas e lê:
Penso
em ti,
minha
amiga, alma gémea, minha irmã.
Só
e triste. Anseio por te conhecer.
Pensa
em mim, assim nos vamos encontrar!
E
adormece mansamente.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Júlio
(dos Reis Pereira), Aguarela
da série “Poeta”,
1939.
Coleção
particular.
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Este
conto, com o título “O Apelo”, obteve o 2º lugar na categoria
“Conto de autor maior de 60 anos”, no XIX Concurso de Poesia e
Prosa da Academia de Letras de São João da Boa Vista, de 2011 —
Brasil.
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Com
o título “Como o Melro no Dragoeiro” integra a coletânea
resultante do Concurso Literário Nacional — ANE 50 anos —
comemorativo dos 50 anos da Associação Nacional de Escritores
— Brasil, 2012.
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