— Como acontecia frequentemente, o conselheiro Luís Galhardo almoçava nessa quarta-feira no restaurante Valadares, em Lisboa, com o seu amigo Vasco Corvelo, administrador principal do Banco Nacional de Investimentos. Falavam de negócios e saboreavam um carpaccio de lagosta, antes da chegada do linguado au meunier.
— Se o Governo se decidir, finalmente, pela privatização da Caixa, é fundamental que eu possa subscrever, pelo menos, setenta milhões de ações — enfatizava Galhardo. Aparentava uns cinquenta e tal anos enxutos, o olhar decidido, as sobrancelhas negras fazendo contraste com o cabelo um pouco grisalho. — Quem entrar em força no capital do banco do Estado, fica com uma posição excecional no mercado. E um fluxo de dividendos inigualável. Nem a petrolífera é tão apetecível.
— Eu sei, Luís. É um dos últimos baluartes que o Estado mantém. Todos os funcionários públicos lá têm conta. São valores baixos, mas são milhões de contas. — Corvelo tinha um perfil físico mais arredondado, o rosto rosado, um lábio inferior carnudo. — O teu problema é o aval.
— Se o Estado alienar vinte e cinco por cento, convinha-me atingir uma quota de três por cento, o que deve rondar os setecentos milhões de euros.
— Pode ser que aliene só dez ou quinze… — avançava Corvelo, cuja preocupação parecia ser a segurança dos empréstimos.
— Hmm!, creio que irá bem acima. Repara que a dívida já é maior que o PIB. Só para os juros precisam de uns oito mil milhões.
— Também dependerá da cotação por ação, na oferta pública — ponderava Corvelo, enquanto bebericava mais um pouco de alvarinho.
— Elas devem valer uns dez, dez e meio — racionalizava Galhardo —, mas o Governo vai fixar um preço mais baixo, com certeza, para que a operação seja um êxito. E será tanto mais baixo quanto mais incerta for a procura previsível, claro. Convinha que o mercado desse a entender que não tem um interesse por aí além, para que o preço não suba acima dos dez.
— Mesmo assim, Luís, como é que queres atirar-te para setecentos milhões? Que aval é que podes garantir?
— As ações, Vasco! Só as da petrolífera estão a valer cento e oitenta milhões. Todas juntas valem mais de trezentos milhões. Não é uma garantia a cem por cento, mas, na prática, chega bem.
— Valem trezentos milhões, mas em que dia e em que conjuntura? É um valor virtual, Luís. Ações não são garantia segura e os bancos evitam fazer grandes empréstimos sobre carteiras de ações, como sabes. Preferem valores menos voláteis.
— Também isso da garantia é uma exigência de segurança excessiva. Achas que as ações da Caixa algum dia vão cair abaixo dos cinco euros? Trezentos milhões é mais do que suficiente.
— É chato! Vou ter um trabalhão para convencer os outros administradores.
— Mas, não és tu que mandas? — gracejou Galhardo.
— Não é bem assim; só valho um voto. Tenho é alguma influência... Mas preciso preparar bem a argumentação. Vou ter de apresentar uns gráficos com o teu crescimento económico, e outros com os ativos que já geraste para o banco.
— Vá lá! Tu és capaz. — incitava Galhardo. — E já pensaste quanto é que este negócio vai render para o teu banco, se o empréstimo vier do vosso lado?
— E também tenho de contar uma treta qualquer à comissão de fiscalização da Bolsa!
— A comissão quer é não ter chatices!
— Às vezes, ainda me vêm uns pruridos, ainda acho tudo isto muito pouco ético — confessou Corvelo, enquanto dava mais uma garfada no linguado.
— Ética… A ética não produz dividendos. A nossa missão é ganhar dinheiro para nós e para os nossos — para a nossa família, para os nossos amigos, para os grupos que fazem andar a sociedade. No teu caso, para os acionistas. E nem sempre é barato ganhar dinheiro. Não te digo quanto é que transferi para uma conta da sogra de um secretário de estado. Eu tenho para mim, desde muito novo, que a gorjeta dá-se antes do serviço e tenho-me dado bem com o sistema. Fui sempre bem servido. Tu não queres ganhar dinheiro?
— Eu quero, vou fazer os possíveis para que ambos ganhemos, mas não vais sem resposta; há quem parece que não quer. Tenho um cunhado, que encontrei há dias… É gestor de uma baiuca qualquer, na indústria. Aquele homem deve viver só do trabalho dele, é impressionante. Se visses com que carro ele anda!
— Por que é que não o puxas lá para o banco?
— E tentei! Propus-lhe um lugar de consultor. Nem precisava de lá ir. Não quis. E ainda bem. O tipo é um bocado esquisito. Ainda me criava lá algum problema, alguma contestação, alguma fuga de informações, sei lá? Nem ele se sentia feliz a trabalhar para uma empresa que tem o investimento de risco — a especulação, como ele prefere dizer — como princípio produtor de riqueza. Há pessoas que são felizes assim, o que é que tu queres?!
— Mais razão me dás! A propósito — Galhardo baixou a voz —, foste convocado para logo à noite?
— É secreto… Não, não fui. Aliás, não sou um dos grandes interessados diretos; tu, sim, queres atirar-te de cabeça.
— Não sei quem vai lá estar. Aliás, é indiferente. Só espero que resulte.
— Tu acreditas que aquilo tem alguma influência positiva nos negócios?
— Olha, eu sei é que os que lá vão obtêm graças. É curioso, é como dar gorjeta adiantada.
— Era preciso que Deus, ou lá que entidade é, se deixasse subornar com sacrifícios.
— Na Bíblia, dizem que sim. Deus gosta do cheiro de carne na brasa. Foi por isso que o Caim matou o Abel.
— Como assim, não foi uma briga?
— Ciúme! O problema é que Deus deleitou-se com o sacrifício do borrego assado do Abel; para as frutas e legumes do Caim, nem olhou. A propósito, queres sobremesa?
Corvelo olhou em volta, disfarçadamente, até descortinar o carrinho de sobremesas.
— Noisettes de morango com Porto; é isso. E tu?
Galhardo soltou-se em riso.
— Desculpa, lembrei-me duma coisa. Como será uma sobremesa de carne? — riu-se de novo ao gesto lúbrico de Corvelo. — Não, falo a sério. Uma empada de borrego? Um creme de cabidela? Deus bem podia ter honrado alguma fruta do Caim para a sobremesa!
Após uma pausa para mandarem vir sobremesas, voltou à conversa anterior:
— Para mim, aquilo é importante, sobretudo, pela força que criamos em nós, por sentirmos que estamos certos e que Deus está do nosso lado; e por nos sabermos rodeados por amigos empenhados nos mesmos objetivos, mesmo não lhes vendo a cara, não achas? A Ação ajuda os seus filhos, como nós a ajudamos. Os membros da Ação são como irmãos, não é… irmão? Olha, venham almoçar lá à minha quinta de Sintra, no domingo, está bem? A Matilde está farta de me dizer para vos voltar a convidar. Venham, que damos uma volta pela serra. Nesta altura está toda florida e o cheiro das acácias é sublime.
Conforme ditava a convocação cifrada, Galhardo chegou às onze e meia da noite à Quinta da Dedaleira, ele próprio ao volante de um carro pequeno. Envergava um albornoz negro com uma cruz de Cristo no peito. Recolheu-se uns minutos a interiorizar o ambiente e o espírito adequados à cerimónia em que iria participar. Antes de sair do carro, colocou o capuz bicudo, também negro, onde só duas aberturas ao nível dos olhos permitiam interação com o exterior.
Percorreu uma alameda sinuosa em declive ascendente, iluminada pela lua, ouvindo apenas os próprios passos, e entrou num túnel, disfarçado por detrás da cantaria de uma fonte. Parou a adaptar a retina à escuridão. Em vão. Resolveu ligar a lanterna do telemóvel. Não havia motivo para se arriscar a tropeçar e cair. Pouco depois, ao dobrar o cotovelo existente no túnel, vislumbrou uma luz ténue vinda do poço vertical escavado na encosta e apagou a lanterna.
Desembocou num ponto intermédio da escadaria espiral embutida na parede interna do poço iniciático. Olhou para cima. A uns doze metros, via-se parte da parede do poço iluminada pela lua cheia, enquadrando o círculo de azul profundo do céu. Para baixo, escuridão. Ouviu passos que desciam da parte superior. Estava na hora. Desceu, com cuidado, os sessenta degraus que o separavam do fundo. Aí, o diâmetro do círculo de chão marmóreo não ultrapassava os três metros. Na sombra, percebeu cinco vultos silenciosos, de que só se percebia o símbolo vermelho no peito, dispostos em semicírculo junto à parede. Ocupou o seu lugar e aguardou.
Pouco depois, chegou o irmão de quem ouvira os passos e outro companheiro que surgiu da sua direita, da galeria que dava para o lago. Em breve, os seus olhos estavam adaptados à escuridão e pôde perceber uma banqueta almofadada e uma grande cruz em aspa encostada e fixada quase verticalmente à parede curva. Ali, ocorreria o ritual que — acreditava-se — desencadearia o mistério da ajuda divina para os que a invocavam. Ele tinha algumas dúvidas, algumas reticências íntimas, mas não podia dar-se à ousadia de as deixar emergir demasiado. Não tinha bem a certeza de quem controlava o quê. Havia demasiados mistérios na vida, apesar dos muitos mecanismos de domínio e manipulação que já conhecia.
No alto do poço, surgiu um halo de luz que se deslocava ao longo da escadaria, fazendo as sombras das colunas desta viajar na parede oposta. Era o cordeiro do sacrifício que chegava. Reparou que todos os irmãos olhavam na direção da luz e percebeu uma certa ansiedade. Um irmão, quase à sua frente, começou a cantar, muito baixo e grave, quase em surdina, o Agnus Dei. Galhardo não teve dúvidas de que se tratava de monsenhor Benedito, o responsável pelas aplicações financeiras do santuário. Todos responderam, nas partes “aleluia” e “digno é o cordeiro”. Pareceu-lhe reconhecer as vozes do presidente do Banco Central de Negócios e do rival e vizinho, o milionário Ricardo Van Keizer. Quando já se via que a luz provinha de um grande círio empunhado por um irmão, começou a revelar-se a forma alva que o seguia. Era uma jovem de branco, com um manto que lhe cobria o cabelo. Galhardo pensou reconhecer, no irmão guia e ofertante, o passo oscilante do ministro das finanças. Fazia sentido.
Chegados junto da assembleia, este colocou o círio num suporte elevado da parede e conduziu a jovem até à banqueta, na qual ela se ajoelhou, de mãos postas e cabeça baixa. Monsenhor, seguido por todos, foi baixando o volume da entoação do cântico até se fazer silêncio. O ofertante puxou para trás o manto da rapariga, descobrindo-lhe a cabeça e revelando uma longa cabeleira escura. Envolvendo a cabeça, uma faixa púrpura com o logótipo da Caixa Geral de Depósitos bordado ao nível da testa. Olhando para todos os companheiros encobertos, através das aberturas do seu capuz, o ofertante anunciou:
— Corpo do meu corpo, sangue do meu sangue: eis aqui a escrava do Senhor!
— Avé, Maria, cheia de graça! — saudou monsenhor, postado à frente da donzela. — Glorioso será o fruto do teu ventre, que gerarás para nós, para a glória de Deus.
— Faça-se em mim, segundo o vosso desejo! — acedeu a inocente.
Monsenhor colocou, então, a mão direita sob o queixo da jovem, introduziu a ponta do polegar na boca dela e anunciou baixinho:
— O Senhor entrará a ti e tu produzirás os frutos da tua fertilidade e saciaremos a sede no teu úbere.
O ofertante ajudou a jovem a levantar-se, conduziu-a com doçura e encostou-a à cruz em forma de X. Fez descer a faixa púrpura, de modo a cobrir-lhe os olhos e olhou, de novo, para todos os circunstantes. Num gesto suave, puxou um laço que prendia a longa túnica na zona do pescoço, soltando-a. Esta caiu ao chão, revelando o corpo nu da rapariga. Era uma mulher jovem; “da idade da minha filha” — calculou Galhardo. Os seios eram fartos e estava rapada na zona púbica. Cada um dos dois irmãos que ladeavam a cruz pegou num braço da jovem, amarrou-lhe o pulso com uma fita também púrpura e ergueu-o até ao respetivo braço superior da cruz. Os seios da jovem subiram um pouco e afastaram-se um do outro. Com meia dúzia de pancadas que ecoaram pelo espaço cilíndrico do poço, os dois confrades pregaram as pontas da fita ao madeiro. A seguir, fizeram o mesmo às pernas: afastando-as, prendendo os tornozelos com fitas e pregando estas aos braços inferiores da cruz.
A jovem mulher mostrava-se dócil e submissa. Ofereceu, em voz suave:
— Tomai e comei; este é o meu corpo!
Monsenhor aproximou-se de punhal em riste. Parou junto ao cordeiro da imolação, contemplando o seu corpo indefeso. Ergueu o punhal apontando-o ao pescoço, enquanto a mão esquerda segurava o queixo virado para fora, e susteve-se. Galhardo pensou reconhecer a mesma posição em que já vira representado Abraão sacrificando o seu filho Isaac, no momento em que um anjo interveio e evitou o sacrifício. Parecia que monsenhor estava a dar tempo ao anjo para intervir. A jovem inclinou mais a cabeça para a sua direita, oferecendo o pescoço branco.
Galhardo conhecia a jovem, das suas ligações mecenáticas à arte. Era artista de performance e já trabalhara várias vezes para a Ação. Ela e o marido cobravam uns poucos milhares de euros por uma sessão destas, sigilo incluído. Monsenhor encostou o punhal ao pescoço da jovem. Sob a lâmina surgiu um fio de sangue. Monsenhor fê-la deslizar em torno do pescoço nu, pressionando o botão que expulsava do recipiente do cabo sangue de galinha. Grossos veios vermelhos escorreram do pretenso golpe no pescoço unindo-o ao baixo-ventre e escorrendo pela face interior da perna direita, qual gargantilha de múltiplos pendentes longos e sangrentos. O sacrifício estava consumado. A jovem, em voz baixa, voltou a sussurrar:
— Este é o meu sangue. Tomai e bebei!
Seguiu-se a fecundação ritual, por cada um dos oito comensais. Monsenhor aproximou-se, abriu o albornoz, agarrou os pulsos do cordeiro e encostou o corpo nu ao da vítima. Fez um movimento para a frente com a pélvis, exclamando:
— Abundante seja o fruto do teu ventre!
Galhardo foi o penúltimo. Sentiu a tensão suave do peito da jovem a ceder ao peso do seu, sentiu os sexos encostados, viu à frente dos seus olhos o símbolo de três letras do corpo financeiro desejado. Um início de ereção manifestou-se. Fez o movimento ritual.
— Abundante seja o fruto do teu ventre! — completou monsenhor.
Pouco depois, descia a figura arcangélica, pela escadaria. Era alto, de cabelos louros ondeados. Envergava um longo manto de brocado em tons de amarelo e vermelho. Na mão direita, um cetro da Ação, no ombro esquerdo, uma pomba de rabo de leque branca. Aproximou-se da mulher; a pomba voou para a cabeça da escolhida. O delegado da Ação soltou o manto, revelando o corpo nu, musculado e ginasticado. Adotou a mesma posição que os irmãos, havia pouco, executando suaves enleios das ancas. Monsenhor começou a cantar “Forte, forte é o Senhor”, acompanhado por todos. Pouco depois, o enviado penetrava o corpo exposto da eleita, manifestando ritmadas e enérgicas contrações dos glúteos. A assembleia em semicírculo, arrebatada, mantinha uma atenção intensa. O ato não durou mais de minuto e meio. O corpo cansado quedou-se em comunhão física com o corpo do desejo, o rosto tombado no seu ombro. Monsenhor retirou um círio aceso e, ainda cantando, dirigiu-se para o exterior, pela caverna do lago, seguido pelos outros irmãos, em fila cerimonial.
No dia seguinte, Galhardo tomava o pequeno-almoço no alpendre quando recebeu uma chamada do seu amigo Corvelo:
— O Governo anunciou agora que vai privatizar vinte e cinco por cento da Caixa ao preço de oito e meio cada ação. Parabéns! Sempre vais conseguir levar a tua avante!
— Hurra! — rejubilou Galhardo. — Não vejo a hora de pôr as mãos naquele banco! Agora só dependo de ti para conseguir o empréstimo.
— Fica descansado; já comecei a tratar de tudo. Penso que para a semana já tenho notícias para ti. Boas, com certeza!
— Ótimo! Outra coisa, já falaste com a tua mulher por causa do almoço de domingo?
— Sim, sim! Ficou muito agradada com o convite. No domingo, lá estaremos para o almoço, com todo o gosto. Cumprimentos à Matilde.
O almoço constituiu um ensejo de maior aproximação dos amigos e também das suas esposas. Tantos interesses comuns elas encontraram que combinaram um salto de uma semana a Nova Iorque, para ver umas peças na Broadway, e para compras, claro.
Conforme tinha prometido, Corvelo tinha um empréstimo de setecentos milhões aprovado pela direção do Banco em menos de uma semana. A assinatura do contrato fez-se na sexta-feira, de manhã, na sede do banco de Corvelo, desculpando-se este com a insuficiência da garantia para a taxa de juro ser um ponto mais alta que o esperado pelo amigo. Galhardo compreendeu e aceitou, admitindo para si que até daria mais, desde que isso lhe permitisse aceder a uma fatia da Caixa. Em privado, revelou a Corvelo:
— Quero agradecer-te por este empréstimo e pelo esforço que fizeste para o conseguir. Para te mostrar quanto estou reconhecido, quero convidar-te para uma sessão especial de que vais gostar, tenho a certeza. Eu depois confirmo as datas. Não marques nada para aqueles dias em que a Matilde e a Zizi estiverem para fora!
Na tarde do dia seguinte, um dia quente de princípio de primavera, Galhardo ligou para a rapariga da performance no poço iniciático:
— Como está, menina Paula? Não me conhece, ou antes, nunca nos falámos, mas eu sei que faz performances especiais, para grupos muito selecionados. Foi uma pessoa altamente colocada que me deu o seu número. Estou a ligar-lhe, exatamente, para saber se está disponível para uma performance temática, deste sábado a oito dias, numa quinta em Sintra.
A primavera passou lenta e majestosa pela quinta de Galhardo e por toda a serra de Sintra. Impercetivelmente, os mantos amarelos das acácias deram lugar a matizados de castanho e verde profundo e as brisas de odores adocicados trazem agora cheiros sensuais de feno e madeira.
Correu bem a escapada a Nova Iorque de Matilde e da nova amiga. Voltaram radiantes e dispostas a outras aventuras por outras capitais de compras. Correu bem a escapadela de Galhardo e do amigo na recriação do episódio bíblico de "Susana e os Velhos". Ficaram com vontade de aprofundar o estudo da Bíblia e selecionar outros episódios inspiradores.
Correu bem a privatização parcial da Caixa. O Estado encaixou quase seis mil milhões, o que permitia ao Governo aliviar por algum tempo o garrote inexorável da dívida. Correu bem a Galhardo a aquisição de ações da Caixa, apesar do receio de que os investidores estrangeiros, nomeadamente os fundos de pensões americanos, entrassem em força na operação, mas o Governo reservou dois terços do alienado para os investidores nacionais. Galhardo, sozinho, subscreveu e obteve os setenta milhões de ações que pretendia, pelos quais pagou seiscentos milhões. Nos primeiros quinze dias, o preço por ação manteve-se a subir, confirmando os palpites otimistas de Galhardo que aproveitou para acumular, aplicando os restantes cem milhões do empréstimo que ainda não tinha usado.
A partir daí, não correu tão bem a investida acionista de Galhardo. Devido a investimentos ruinosos do banco que suportava o seu rival Van Keizer, tornou-se claro, ao longo da primavera, que esse banco corria o risco de falência. Dizia-se que os administradores eram apenas homens de mão de Van Keizer para esvaziar o banco, desapossando liminarmente os depositantes. Acontecia que alguns dos maiores depositantes eram organismos do Estado, atraídos por juros muito tentadores e pelo prestígio de sucesso de Van Keizer. Assim sendo, o Estado, na posição desconfortável de perder milhares de milhões se o banco falisse, resolveu nacionalizá-lo, assumindo os prejuízos, mas tomando em mãos a gestão do banco para não perder tudo o que lá tinha metido por interpostos organismos. Argumentou com o perigo de uma derrocada geral do sistema financeiro do país, mas Galhardo pensou que o facto de Van Keizer pertencer à Ação também teria pesado na decisão do Governo, embora nada mais pudesse fazer que conjeturar.
As perdas do banco nacionalizado eram bem maiores do que a princípio se pensou e, aos poucos, todo o encaixe que o Estado tinha realizado com a privatização de parte da Caixa foi metido no banco de Van Keizer. Na verdade, as perdas repercutiram-se nos outros bancos, o que fez cair as cotações das ações de todos. As da Caixa não foram exceção, caindo em três meses para menos de seis euros. Dadas as dificuldades gerais e da Caixa em particular, esta decidiu não distribuir os dividendos previstos para esse ano. O que tinha custado a Galhardo setecentos milhões valia agora menos duzentos e cinquenta, sem qualquer retorno. A sua garantia de trezentos milhões, que tinha parecido ser mais que suficiente, levou um rombo, quando também as ações da petrolífera caíram, devido à instalação próxima, no Alentejo, de uma fábrica de produção em massa de carros elétricos.
Desta vez foi Corvelo que convidou Galhardo para almoçar. Ainda antes de chegar o rosbife à hortelã, Corvelo encetou o assunto quente:
— A tua posição é insustentável, tens de reconhecer. Acho que desta vez arriscaste de mais. Estou a ser pressionado por toda a administração e não há outra volta a dar, senão executar a tua garantia, para cobrir as perdas.
— Eu sei que a coisa está feia, mas não achas que a Ação me podia dar uma mão, como deu ao Van Keizer?
— É também por isso que tinha de falar contigo. O principal diz que tem de haver sacrificados, alguém que possa ser apontado como culpado. Usou especificamente o termo “cordeiro”. Ele acha que deves ser tu, por jogares um bocado fora do grupo.
“Cordeiro!” Galhardo sentiu-se encurralado. O ímpeto predador de há poucos meses estava agora transformado em docilidade impotente.
No dia seguinte, compareceu à reunião convocada pelo banco de Corvelo. Uma dúzia de olhos severos anunciou-lhe que iam executar a garantia e tomar posse das ações da Caixa, que Galhardo subscrevera, dado que, tudo junto, mal dava para cobrir o empréstimo, sem falar nos juros. Que era só assinar um molho de papéis que lhe puseram à frente.
A sala de reuniões do nono andar era grande e estava desagradavelmente fria, devido ao ar condicionado. “Lá fora, o ar está morno”, pensou. Vistas de cima, as árvores do parque fronteiro pareciam colchões, fofos e penugentos. Juntou o maço de papéis que os abutres tinham posto à sua frente, bateu-os, alisou-os, avaliou a sua leveza, o seu volume e dividiu-os em dois molhos iguais, um em cada mão. Estava a poucos metros da janela; podia tornar-se um Ícaro dos tempos modernos, se quisesse. Queria? Teria coragem?
O toque de um telemóvel distraiu-o momentaneamente dos seus pensamentos. Corvelo atendeu, ouviu durante uns segundos e deixou escapar:
— Forte é o Senhor!
Quinze dias depois, na sua quinta de Sintra, Galhardo, reconhecido e já recuperado dos momentos tensos que tinha vivido, oferecia ao ministro uma performance temática — "O rapto de Perséfone". A mitologia grega também era interessante.
Joaquim Bispo
*
Este conto, de 2010, obteve o 7º lugar no Concurso Literário Osório Alves de Castro, da UFOB — Universidade Federal do Oeste da Bahia —, Brasil, em 2016.
*
Imagem: Josefa de Óbidos, Cordeiro Pascal, c. 1680.
Basílica dos Congregados, Braga.
Foto: Didier Rykner
* * *