A
mulher esperou, encoberta, que Abílio saísse, antes de subir as
escadas para o estúdio e tocar. Lucília veio abrir, convencida de
que o modelo, que já não ia para novo, se esquecera de algo, mas
não; era Judite, uma sua ex-empregada doméstica, que ultimamente
usara como modelo, e que já não via há uns quatro meses.
— Entra,
Judite! — convidou, sem reparar no olhar duro da mulher. — Estava
a ver que já não me vinhas visitar.
— Olá,
Dona Lucília — respondeu Judite, fria. — O que cá me traz é do
seu máximo interesse e agradecia que me ouvisse com atenção.
— Que
se passa, Judite?, não me assustes! Senta-te.
Contornaram
uma grande tela, num cavalete a meio da divisão, em que se podia ver
Abílio, de kilt
e olhar sério, meio pintado, reclinado num sofá. No sofá
verdadeiro se sentou a pintora. Judite manteve-se de pé, em atitude
decidida.
— O
que se passa, Dona Lucília, é que a senhora tem ganho bom dinheiro
à minha custa, e eu continuo pobre como dantes — disparou a mulher,
de olhar alterado. — A senhora usou-me para as suas pinturas,
ganhou milhares de contos com elas, e eu não tenho sequer uma casa
minha.
— Ó,
Judite — estranhou a pintora — eu não te reconheço; o que se
passa?
— Ainda
bem que não me reconhece, que eu não sou a mesma. Acabou-se a
boazinha que ficava horas e horas, feita parva, em posições
ridículas, a fazer de urso, ou de galinha — que agora as pessoas
até se riem — e a senhora na lua, a olhar para anteontem. E, no
fim do mês, o que é que eu via? — uns reles contos a mais. Eu já
não tenho idade para continuar a trabalhar. Quero a minha reforma!
— Reforma,
como, Judite? Não sou eu que dou as reformas. Sempre fiz os
descontos a que tinhas direito. Se lá fores, lá devem estar na
Segurança Social.
— Eles
dizem que ainda me faltam doze anos para pedir a reforma. Ora, eu não
aguento mais. Eu vou ser muito direta, Dona Lucília; ou a senhora me
dá vinte mil contos por estes dias, ou o patrão vai ficar a saber
que a senhora anda enrolada com o Abílio. Tenho os mails
todos, sabe? Tanto os que a senhora envia, como os que recebe. Levei
a password
da sua caixa de correio e fiz cópias de ecrã de todos. Agora, a
senhora escolha; quer continuar a sua boa vida de sonsa, com menos
uns trocos, ou quer ver como acaba o seu casamento?
— Eu
não te mereço isto, Judite! Como podes? — desapontava-se Lucília.
— Depois de tudo o que fiz por ti, que eras uma rústica… E que
história é essa do Abílio? Enrolada? Tu não estás bem. O Abílio
é um bom amigo e um bom modelo, tal qual como tu. Só isso!
— Sim,
sim! Pensa que eu não via o seu olhar a lambê-lo de alto a baixo?
Depois, quando li os mails,
descobri tudo. Agora está tramada, minha santa!
— Estás
louca, mulher! Nunca hás de perceber um artista. O pintor olha, com
olhos de ver. Mira, sim, completa e exaustivamente o corpo do seu
modelo. Conhece-lhe cada centímetro, melhor que ele próprio. E, às
vezes, perturba-se, que a intimidade a tanto chega! Sempre se falou
da relação ambígua entre pintores e modelos: já ouviste falar em
Balthus? Às vezes, mais explícita que ambígua — Rodin,
Toulouse-Lautrec… Mas isso, que te interessa!?; pareceu-te ver
luxúria onde havia apreensão estética. E isso dos mails;
nem quero tentar perceber que bizarros enredos de alcova engendraste.
Só te digo que leste mal. E a desfaçatez de entrares na minha caixa
de correio.
Que cabra me saíste!
— Não
adianta negar, Dona. O Senhor Jorge vai perceber muito bem o que lá
está escrito. Por isso, pense bem.
— Não
percebes nada, mulher! — impacientava-se a artista. — Vieste lá
das berças e pensas que este mundo tem alguma coisa que ver com o
teu. Isto não é um romance do Eça de Queiroz. Aqui não há primos
sabidos, nem eu sou uma cândida esposa imatura. Convence-te, Judite,
o mundo dos artistas é mais solto, mais liberal. Também não
gostamos de ser preteridos, às vezes choramos, mas não entendemos
os maridos e as mulheres como propriedade, nem lhes limitamos
demasiado a liberdade. Mas sempre com transparência. Já estive com
outros homens, sim, mas o Jorge foi sempre o primeiro a saber. E ele
também já teve os seus arrebatamentos. Chegou a viver lá em casa
uma de quem ele gostava muito. Depois de algum tempo, como eu previa,
acabou-se a chama, e ela foi-se embora. Não ando com o meu modelo,
mas se andasse, o Jorge estaria ao corrente. Percebes, Judite? Agora,
vai-te embora, que não me apetece olhar para ti.
Antes
de sair e bater com a porta, Judite, visivelmente confusa, ainda
articulou, sem convicção:
— Se
é assim que quer, assim terá! Vaca!
Dois
dias depois, Judite voltou.
— Que
queres, Judite? — perguntou Lucília, segurando a porta, ao ver o
olhar injetado da outra.
Esta
empurrou Lucília e entrou, fechando a porta sem olhar para trás.
Depois, retirou da malinha uma faca de cozinha e apontou-a à
ex-patroa:
— Não
te vais livrar assim! Deste-me a volta, deram-me a volta, cambada de
badalhocos, mas eu não vou desistir. Se não dás a bem, dás a mal
— vociferava a ex-chantagista convertida à extorsão.
A
pintora hesitou por um momento, ao ver a faca no braço em riste da
outra. Depois, recuou calmamente, de olhar perscrutador. Quem a visse
a avaliar a agressora, não demonstrando medo, antes curiosidade,
suspeitaria de alguma quebra momentânea de siso, provocada pela
situação traumática. Também Judite pareceu surpreendida com a
reação da ex-patroa. Mantinha-se parada a três passos de Lucília,
faca levantada, atitude expectante. Foi a pintora que quebrou a
rigidez da composição:
— Judite,
escuta, se me agredires, estragas a tua vida. Vais presa, deixas de
estar com o teu filho. Deves estar desesperada para fazer isto. Posso
ajudar-te, mas não da maneira que dizes.
— Quero
o meu dinheiro! — insistia Judite.
— Ouve,
estou-te reconhecida pelos trabalhos que fizeste para mim, não o
esqueço. As minhas pinturas vendem-se por muito dinheiro? Nem sempre
foi assim. Mesmo então, cumpri o combinado com os meus modelos;
paguei sempre no dia certo, não foi? Também um construtor vende os
prédios por muito dinheiro, e não é por isso que o pedreiro muda
de carro. Às vezes, lá tem um prémio pelo Natal. Queres
comparticipação? Vamos fazer o seguinte: posas para mim com essa
faca, nessa atitude. Interioriza-a bem: zangada, ressentida,
vingativa. Gostei da imagem, é forte. Acho que dá para uma nova
série de pastéis. Pago-te o mesmo que te pagava, mas, além disso,
quando as obras se venderem, recebes uns três por cento do que eu
receber. Parece-te bem?
Judite
estava confusa e indecisa. Tentava calcular quantos contos
representariam três por cento de, talvez, cem
mil euros, depois de deduzida a parte da galeria. Nesse momento,
ouviu-se uma chave a rodar na fechadura e Abílio entrou.
Surpreendido por ver Judite de faca na mão e face afogueada,
indagou, em prontidão:
— Há
algum problema?
— Não,
Abílio, entra! — contemporizou a pintora. — A Judite veio outra
vez visitar-me e combinámos uma nova série de telas com anjos
justiceiros femininos — uma mistura de Arcanjo São Miguel e
empregada doméstica: numa mão, a espada; na outra, o pano do pó.
Vou-me rir com as interpretações que a crítica vai fazer.
Joaquim
Bispo
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Este
conto obteve uma menção honrosa na edição de 2013 do Concurso
Internacional de Contos Cidade de Araçatuba, Brasil,
categoria
internacional, e
integra a coletânea resultante — páginas 121 a 124:
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Em
2018, este conto foi objeto de interesse por parte da realizadora
Margarida Moreira, que, a partir dele, elaborou um guião e respetiva
story board,
e lançou uma
operação de crowdfunding
para a sua concretização em filme. Operação que, infelizmente, falhou:
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Imagem:
Paula Rego, Anjo,
1998.
Casa
das Histórias Paula Rego, Cascais.
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