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10/10/2024

O desconhecido

 

As nuvens adensam-se, o céu escurece, corre uma brisa fria e desagradável. É meio da tarde, o grupo prossegue pelo caminho rural em passo apressado. A cavaqueira de há bocado deu lugar ao silêncio; só o farfalhar da areia a ser esmagada pelas pisadas enche o ar. Mário segue no fim do grupo de seis pessoas, embrenhado nos seus pensamentos. Está a caminho de Fátima, nem sabe dizer porquê. Talvez porque se sente perdido num mundo que já não reconhece, talvez porque os vizinhos o desafiaram. Lá à frente, a uns trinta metros, segue Adelina, a líder, mulher de uns sessenta anos, rude e vigorosa. Já fez esta viagem muitas vezes; é quase uma rotina sazonal. Desta vez arrastou a sobrinha Vanessa, que anda com problemas com o namorado, e Beatriz, outra vizinha da sua geração, cujo homem está para a França e há quatro meses que não dá notícias. Partiram pelas 5 da manhã da sua aldeia da zona do pinhal, perto de Oleiros. Já devem ter andado mais de trinta quilómetros e começam a dar sinais de cansaço. É muito para o primeiro dia.

Há uns quilómetros que Mário pressente uma névoa no trilho ao lado do seu. Não é uma sombra, só a incerteza de uma miragem. Pouco depois torna-se mais densa e acaba por se materializar, inteira, caminhando. Parece um ancião, de cara esquálida enquadrada por um capuz branco. Será mais um peregrino que alcançou o grupo? Mário repara que todo ele veste de branco. Sem sombra, sem ruído.

Mário já viu muita coisa, está muito recetivo a visões, a ilusões. Caminha e espera. Caminhar, naquele ponto da viagem, já é automático; não se deixa perturbar pelos pensamentos. Os pés caminham, arrastando pó e areia. O desconhecido parece agora uma pessoa como as que o precedem, mas Mário pressente que não. Pressentir, intuir, é uma forma de conhecimento.

Já? — lançou, em tom dorido, ao desconhecido.

Este olhou-o no fundo dos olhos, com um olhar quase meigo.

Em breve!

Lá à frente, Adelina começou a puxar pelo grupo com uma canção de hossanas à virgem. Mário caminhou ainda um quilómetro, antes de ripostar ao estranho:

Podes dizer-me antes o que há do lado de lá?

Nada te posso dizer; sou apenas um arauto, um mensageiro.

Não sabes ou não queres dizer?

Eu nada sei.

Se nada sabes, porque apareceste agora? — impacientou-se o humano.

Eu não sou exterior a ti. Convivo contigo desde sempre.

Mário calou-se a ruminar na resposta. Estava cansado. Nem sequer lhe interessava falar agora. Em breve chegariam à Sertã e poderia descansar.


O trajeto está todo apalavrado. A pensão da Sertã é limpa e agradável. Mário atirou-se para cima da cama e ferrou logo no sono, mas o companheiro de quarto, um madeireiro de uns cinquenta anos, chamou-o e convenceu-o a tomar um banho e a comer qualquer coisa antes de se deitar.

Depois de um jantar ligeiro, o grupo reuniu-se numa pequena sala de convívio, com televisão. Os ânimos tinham melhorado, com o tratamento de bolhas em alguns pés e a previsão de umas horas de sono descansado.

Queres jogar xadrez? — perguntou o desconhecido de branco, ao seu lado, frente a uma mesinha com um tabuleiro e as peças alinhadas.

Não me apetece! — respondeu Mário, sincero. — Não tenho cabeça para isso. Preciso de mais tempo para saber mais. Se tu não me dizes o que há do lado de lá… Ou é só uma escuridão vazia? Existe lá uma entidade que justifique os preceitos éticos e morais que nos são exigidos e faça a triagem lógica entre bons e maus, algo que torne o sistema entendível e aceitável pela nossa mente? Porque se nesse desconhecido não existe mais que o nada, a vida redundou num absurdo trágico. Agora só consigo pensar que preciso de mais tempo.

O tempo não está marcado, mas tem de ser cumprido. Ouve, tenho uma proposta: se me venceres, prorrogamos a concessão por uns dias. Se perderes...

Por uns dias… Isso é de uma grande injustiça! Porque és irrevogável? Porque é que ninguém consegue um prolongamento dos seus anos, ninguém pode acabar o que deixa inacabado, ninguém consegue esconder-se ou furtar-se deste encontro funesto? Porque é que não se pode saber se há algo para lá dessa fronteira? Porque é que ninguém tem respostas, ninguém regressa para contar?

Fazes tantas perguntas...

Porque é que velhos e novos, ricos e pobres, humildes e poderosos, todos são obrigados a submeterem-se a ti? Porque é que nenhum vivente te escapa?

Também se chama mortais aos viventes…


A noite de Mário não foi das melhores. Estava cansado, mas agora não conseguia dormir. Passavam-lhe pela lembrança alguns achaques recentes: incómodos abdominais frequentes, dores de cabeça intensas que duravam pouco, taquicardias e sensações de morte iminente durante a noite. Mário concluiu que já não devia durar muito. Nem os seus 83 anos auguravam outra coisa. Costumava convencer-se de que já não tinha pena de morrer — já cá andava há muito tempo, já tinha o papinho cheio de boas e más experiências, de vida. Custava-lhe, de qualquer modo, não saber muitas coisas do mundo. E, de cada vez que pensava nisso, sempre achava que era uma enorme injustiça. Tantos anos a aprender o funcionamento do mundo e das pessoas e agora… Porquê? Para quê? Que lógica é que havia nisto tudo? Haveria alguma entidade a tomar conta da máquina do mundo? Ou tudo não passava de acaso?

Na outra cama, o seu companheiro de viagem roncava, a sono solto.


A alvorada foi às seis. Os olhos de Mário mantinham-se papudos, mal refeitos com as três ou quatro horas em que o cansaço vencera a sua mente agitada. Daí a meia hora, depois de um pequeno almoço apressado, todo o grupo estava em marcha, agora por estrada de alcatrão. Caminhavam em fila, pelo lado esquerdo da via, por causa dos carros. Mário continuava atrás. Daí a um bocado juntou-se-lhe o peregrino de branco.

Pode ser hoje? — indagou, cortês.

Mário não respondeu logo. Havia um turbilhão de perguntas em disputa.

Deixa-me chegar a Fátima. Talvez a nossa senhora interceda por mim. — Pareceu-lhe que tinha transparecido medo e corou. — Há deus, não há?

Faz diferença?

Deve haver; senão, porque se mantém ele como realidade desconcertante no nosso íntimo, apesar de todos os esforços para o extirparmos em nós?

Eu nunca o vi.

Será possível que esta indelével impressão íntima não passe de um mecanismo mental gerado pela evolução, que se revelou vantajoso, por nos tornar a vida suportável, ao fazer-nos acreditar que uma entidade toda-poderosa comanda o mundo e que a vida tem um sentido?

É possível...

É uma grande ironia, se não há deus. E uma grande maldade se há. A maldade começa com o facto de ele se esconder num misto de promessas meio-formuladas e recompensas improvadas. E de não responder. Se o único juiz que pode ou não confirmar o acerto das nossas escolhas, das nossas ações, não responde, instala-se a dúvida, a suspeita de que pode ser tudo uma gigantesca farsa. Qual seria então a razão disto tudo?

Essa lógica é humana — querer que tudo tenha um sentido.

Como é que pode ser de outra maneira? As pessoas têm de encontrar um sentido no que fazem. É da sua natureza. Esforçam-se por acreditar em deus, mesmo nunca o vendo, nem obtendo qualquer resposta às suas tentativas de comunicação. Sabem por experiência que não é possível acreditar, não acreditando. E mesmo acreditar não satisfaz o nosso entendimento. Gera uma indessedentável vontade de verdade que formule as questões e dê as respostas de maneira leal, sem subterfúgios, sem falsidades. Nessa demanda se vive. Por que não responde ele às nossas perguntas?

Talvez seja surdo ou mudo; talvez esteja noutro lado. Talvez não exista.

Oh, deixa-te de evasivas! Queres fazer-me acreditar que toda esta máquina de ilusão funciona e que tu és a única entidade real nela?

Eu, pelo menos, sou evidente e incontornável.

E se eu não acreditar em ti? Talvez deixes de existir. Alguns velhos teimosos gostam de dizer que nada ainda lhes provou que não são imortais.

Até que nos encontremos…

Oh! Não se pode falar contigo.

Mário sentiu-se, mais uma vez, por sua conta, exclusivamente. Sem apoios físicos, sem bordões ideológicos. Vasculhar os limites das grandes questões do ser e só encontrar silêncio e incerteza trouxe-lhe a mesma angústia da criança que acorda e se encontra só no negrume da noite.


A dureza das jornadas parece que vai deitar abaixo os que se atrevem a enfrentar tantos quilómetros, mas o corpo tem essa capacidade de reação, de adaptação, que o enrijece e o leva a suportar com mais facilidade o esforço. O grupo manteve-se unido e motivado nos dois dias que ainda durou a caminhada.

Então, ti Mário, aguenta-se até Fátima? — brincou Adelina, logo à saída de Ferreira do Zêzere. — Hoje a estrada é melhor!

Então, não havia de aguentar, Adelina? Antes de ser professor primário, fui carteiro. Calcorreei muitos quilómetros de serra.

Vejo-o tão calado...

Também nunca fui muito reinadio!

O velho de branco não deixou de comparecer ao encontro, mas Mário não se atemorizou com a ameaça implícita e o seu corpo enviava-lhe mensagens de satisfação física, cada vez mais encorajadoras. Parecia-lhe que quanto mais andava menos debilitado ficava. Se o desconhecido quisesse apunhalá-lo à traição, era com ele, mas Mário acreditava que até uma entidade destas tem alguma ética.

Os últimos quilómetros foram de andamento frenético. Toda a gente ansiava por concluir a jornada o quanto antes. Só se ouvia o arfar da respiração apressada. O estranho parecia apresentar algumas dificuldades para acompanhar o grupo. O primeiro indício foi um atraso tão ténue como o de uma passada, mas um quilómetro mais à frente já se atrasara uns dez metros. Ao aperceber-se disto, Mário esboçou um sorriso de tal maneira contido que o desconhecido não se teria apercebido dele, mesmo que ainda caminhasse ao seu lado. Quando mais à frente olhou para trás, só vislumbrou uma esparsa névoa, em vez de um ancião esquálido de branco.


A entrada no recinto principal do santuário gerou no grupo um clima de euforia e exaltação. Tinham conseguido, tinham-se superado. Abraçaram-se emocionados, improvisaram mesmo uma dança de roda, num estado potenciado pela grandiosidade do espaço e pela desmesurada multidão ali presente. Até Mário se manifestou falador e sorridente. Sentia-se revigorado e tão confiante como se tivesse ganhado uma segunda vida.

A poucos quilómetros, uma névoa esbranquiçada de forma humana, parecendo sentada sobre uma pedra da berma da estrada, resolvia mentalmente um problema de xadrez, enquanto esperava, como se tivesse todo o tempo do mundo.

Joaquim Bispo

*

Este conto foi apresentado pela primeira vez na Festa do Livro do Centro Artístico Albicastrense uma organização conjunta com a Alma Azul , em 26 de julho de 2018, pela voz de alunas da USALBI (Universidade Sénior Albicastrense).

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Uma versão reduzida do mesmo foi selecionada para a 46ª edição (julho/agosto de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 85 a 88):

https://drive.google.com/file/d/1UQGefU6vzogEa772pS6q2EiAiDTRlSfX/view

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Imagem: André Dinis, Muzinga (capa de livro de banda desenhada), 2024.

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10/10/2021

O Mestre

 


No dia em que comerdes desse fruto,

se abrirão os vossos olhos;

e sereis como deuses,

conhecendo o bem e o mal.

Gn 3,5


Professor, quando é que nos mostra as suas últimas pinturas? ― lançou Gisela, juvenilmente provocadora.

Não as trago para a faculdade, Gisela, que são muito grandes ― gracejou o professor de Pintura III ―, mas terei muito gosto em mostrá-las no ateliê da minha casa de Sintra.

Tinha uma daquelas figuras tutelares que impressionam algumas alunas ― sobre o alto, barba, cabelo grisalho farto e um pouco revolto ― e, sobretudo, dava gosto ouvir as suas aulas. Fora da sala, adornava-lhe as mãos ou o queixo um cachimbo, donde se escapava um aroma de tabaco Mayflower.

E quando é que o professor lá está a pintar? ― avançou a aluna, interessada.

Aproveito todas as tardes de sábado. Apareça! A morada vem na lista ― disse o professor, a despachar.

Então, posso lá passar no próximo sábado, com o meu namorado? Ele também gosta muito de pintura. É de História d’Arte.

Com certeza, Gisela. Terei muito prazer em vos receber. Até lá!


*

O mestre já tinha esquecido a promessa da aluna, quando ouviu a campainha.

Entrem! ― convidou. ― Sejam muito bem-vindos.

É o Januário, o meu namorado; Jorge Ávila, o meu professor de Pintura ― apresentou, Gisela. ― Estou um pouco emocionada. Visitar o ateliê de um pintor como o senhor!

Cumprimentos feitos, Ávila levou os convidados a visitar o pequeno pavilhão onde pintava e lhe servia de armazém.

Aqui já não tenho nenhuma das minhas obras mais antigas. Iam beber bastante ao neorrealismo.

Nós conhecemos, professor. Estão em todas as obras de referência da pintura do século XX.

Depois vieram essas, com influências das colagens de Matisse; e estas, em cujos traços marotos se adivinha alguma inspiração na fase “minotauromáquica” de Picasso, não acham? Não que eu o reconheça, oficialmente ― ironizava o pintor, rindo.

Gosto mais das suas, professor, talvez por serem mais esquemáticas ― avaliava Gisela, em tom aprovador. ― O Picasso é demasiado explícito para o meu gosto.

Olha aquela, Gisela! ― Divertido, Januário apontava para uma tela, onde era evidente um coito sobre um fundo de linhas de projeto de arquitetura.

Nesta zona ― continuou Ávila ― estão as poucas que restaram da fase neoexpressionista, baseada na mancha e na gestualidade da pincelada. A partir daqui, são coisas muito recentes, quase todas neofigurativas.

Tanto nu, professor!

O nu transmite mais facilmente a essência do Homem ainda não contaminado pela civilização. Além disso, a roupa fixa uma época à cena e impede que a sua mensagem seja vista como um valor intemporal.

Aquela paisagem no cavalete é no que está a trabalhar?

Sim, é um esboço de fundo de Éden para uma série sobre a Criação ― uma encomenda de um particular. Nesta tela, em especial, vou representar Adão e Eva, no momento exato em que Eva já deu uma dentada na maçã e Adão inicia a primeira dentada, isto é, o instante em que “toda a humanidade” acede ao conhecimento que lhe estava vedado ― um momento muito especial. A Gisela é que faria uma excelente Eva ― o cabelo liso, comprido e louro, os olhos azuis, um certo ar de pureza primordial.

Fazer de modelo para si?... ― O tom de suave crítica não evitou um lampejo no olhar de Gisela.

Não me interprete mal. Eu só estava a fazer uma avaliação de conformidade estética. Longe de mim pedir-lhe que pose para mim.

Quanto tempo é que demora a pintar uma tela deste tamanho?

Espero acabá-la em duas ou três tardes de sábado.

Mas, tinha de me despir, não?

Claro, é a Eva; mas os olhos de um artista são como os de um médico ― seletivamente focados nas questões técnicas. O que avaliam são perspetivas, linhas de contorno, sombras, tonalidades cromáticas. Mas não quero que se sinta pressionada.

O que achas, Januário? ― perguntou Gisela ao namorado.

Se te sentes à vontade…

Eu estou muito segura do meu corpo e, às vezes, tenho fantasias de posar para um grande artista, cujo nome e mestria valorizassem o modelo. Achava piada dar comigo, um dia, na exposição de uma grande galeria.

O Januário não quer experimentar, também? ― perguntou o pintor. ― Eu preciso de um Adão, e o seu perfil adequa-se ao que eu procuro ― cabelo preto, que podemos desgrenhar um pouco, barba… Deixe-a crescer mais!

Eu? ― surpreendeu-se Januário. ― Eu não sei se tenho coragem.

Não custa nada, é como estar numa praia de nudistas. E ainda ganham uns trocos para a discoteca. A tabela! Mas, como disse à Gisela, estejam à vontade para recusar. Não ficarei contrariado se optarem por não posar para mim. Eu sou pela transparência de processos e pela liberdade de decisão.

Com tal franqueza, os jovens não recearam experimentar uma atividade que, pela peculiaridade e pela aura cultural, os entusiasmava interiormente. Começaram nesse mesmo dia. O pintor colocou-os na posição pretendida: Eva, à direita, estendia o braço e oferecia uma maçã, já mordida, à boca de Adão, que esticava o rosto e lhe ferrava os dentes. O seio direito de Eva mostrava-se generosamente exposto envolvido pelos cabelos; o esquerdo deixava transparecer apenas a sombra rosada da aréola encimada pelo mamilo. Os sexos estavam patentes na sua candura virginal. A cena ressumava uma sensualidade imaculada.


*

No sábado seguinte, o casal chegou cedo e autoconfiante. Tinha gostado da experiência, porque a incomodidade própria da exposição fora atenuada com duas paragens para chá e torradas, em que se trocaram ideias sobre questões de verdade e representação. Surpreenderam-se de encontrar na tela o rosto de Ávila, pintado como Deus, no limiar do jardim do Éden.

Por definição, Deus está presente, embora não seja visto ― explicou o pintor. ― Sabe o que vai acontecer, ou não conhecesse Ele a natureza humana, que espicaçou com a proibição de comer daquele fruto.

A pintura ia adiantada. Acreditava-se que podia ser acabada ainda nesse dia. No regresso do primeiro intervalo, porém, Ávila deu sinais de incomodidade. Soltava monossílabos em surdina e fazia alguns curtos gestos de impaciência.

Algum problema, professor? ― perguntou Gisela, a quem não escapara a perturbação do pintor.

Eu devia ter previsto isto. Não consigo obter o efeito que quero.

Quer que corrijamos alguma posição?

Não, estão muito bem. Esqueçam! Acho que esta pintura não se vai concluir. Eu já sabia!

Não diga isso, professor! Há alguma coisa que possamos fazer?

Poder, podem, mas eu não me atrevo, sequer, a falar nisso. Esqueçam! Vamos terminar.

Diga o que precisa, professor, seja o que for. Sem saber é que não podemos ajudá-lo.

Não, não! É impensável. O que eu precisava é que Eva tivesse um orgasmo comigo.

Gisela e Januário entreolharam-se silenciosos. O pintor continuou:

Pronto, já disse, mas não é um pedido, muito menos uma proposta. Aliás, estou envergonhadíssimo. Desculpem! Acabou. Vamos ficar por aqui.

Ao fim de uns momentos, Gisela quebrou o silêncio só matizado com os sons de Ávila a arrumar os acrílicos e a lavar os pincéis:

Importava-se de explicar, professor?

A questão é de autenticidade, do brilho no olhar, que só se consegue com uma condição física específica, a da excitação sexual orgástica ― começou o mestre, após alguns momentos. ― Eva soube que a maçã era boa, acabou de experimentar esse prazer. O seu rosto deve refletir esse entusiasmo, um empolgamento que convença o seu companheiro. Adão deve ver no olhar de Eva algo melhor do que o Paraíso. Isso deve transparecer no quadro. Eu preciso de apreender esse brilho, essa centelha de divino que se desprende da alma e brota no olhar, no momento do delírio orgástico. E não o posso apreender, na sua incomensurabilidade, se não estiver, eu próprio, a viver em comunhão essa emoção que nos liga ao supra-humano. A sua compreensão é da área do sensível e não do racional. Se não conseguir transmitir para a tela a transcendência do desejo no seu auge, a banalidade da obra está garantida. Não vou mostrá-la.

O mestre calou-se, preparando-se para arrumar a tela. Os jovens olhavam-no, como se esperassem alguma outra conclusão ou estivessem a processar o que tinham ouvido. Depois, Gisela aproximou-se do namorado e conferenciou com ele em surdina:

«O que é que achas? Parece-te sincero? O que havemos de fazer?»

«Não sei.»

«E se eu fosse para a cama com ele?»

«Não sei… Eras capaz?»

«Acho que sim. É apenas sexo… E tu, não te importas?»

«Hum! É chato! Mas o corpo é teu.»

«Não ficas zangado comigo?»

«Não... Vai lá.»

Comunicaram a decisão ao pintor, que recebeu a informação com calma e sisudez. Voltou a colocar a tela no cavalete e pôs os materiais à mão. Ficou um momento a avaliar a tela, depois disse a Januário:

Relaxe um pouco que nós não demoramos. Se quiser, pode voltar a ensaiar a posição e focar-se mentalmente no ato de trincar a maçã.

Foi o que Januário fez. Nu, sozinho no ateliê, aflorou, com os lábios, a superfície suave da maçã, depois os dentes avaliaram a firmeza do fruto, tentando interiorizar o seu simbolismo, como corpo de Eva, e entrar no espírito da cena bíblica, anunciador do conhecimento. A polpa foi cedendo à pressão penetrante, o seu palato foi percebendo o doce e o agre do suco que o fruto ressumava, pareceu-lhe que os seus olhos se reabriam. Revelou-se-lhe, então, na sua estonteante beleza, o engenhoso mecanismo da seleção natural, ao ouvir, não distantes, os gemidos de prazer que Gisela soltava.

Joaquim Bispo

*

Este conto foi a base do roteiro da curta-metragem de animação (técnica de stop motion) executada pela realizadora Margarida Moreira.

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Imagem: Festivais em que a curta-metragem de animação participou e prémios obtidos.

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10/11/2017

Dia do Juízo Final


(Manuscrito encontrado na gaveta de um aspirante a humorista)

Olá, caras amigas, amigos! Acabei de chegar do Juízo Final, e ainda estou meio deslumbrado. Por isso, desculpem alguma inconveniência que eu diga. A propósito, não vos vi lá! Deixem-me adivinhar: nem foram convidados… Não fiquem aborrecidos — continuem a enviar currículos. Mas devem querer saber como decorreu esta edição outono-inverno do Juízo Final. Eu conto:

O Juízo Final estava marcado para 12/12/12, não só para dar tempo de se acabar o Mundo a 21, conforme profetizado, mas também porque Deus gosta destas datas com números repetidos, para não se esquecer. Mesmo assim, deixou passar o especialíssimo dia 11/11/1111. Parece que nessa altura andava distraído a desenvolver a peste negra, que foi um sucesso algum tempo depois. Já em 8/8/1888, a razão do esquecimento foi a azáfama de tentar convencer toda a gente de que Ele é que tinha criado a Evolução.

Desta vez, cumpriu-se a escritura. O cenário, faustosamente iluminado, deslumbrava: em círculos envolvendo a cadeira d’Ele, legiões de anjos, querubins, serafins e arcanjos perfilavam-se em “ombro arma”. Mais abaixo, santos de todas as maleitas e clérigos de todas as patentes esperavam pacientemente a prometida honraria de entrada no Céu, ao som de fanfarras. Por fim, multidões incontáveis entretinham-se a cochichar ou esticavam o pescoço, ao reconhecer esta ou aquela celebridade que só conheciam do catecismo. A entrada de Maria Madalena provocou mesmo uma enorme ovação e alguns assobios de apreço. A chegada conjunta da irmã Lúcia e da madre Teresa de Calcutá suscitou o primeiro “Misericórdia!” da noite.

Os pagãos estavam visivelmente fora do seu meio e olhavam repetidamente para o relógio, temendo perder o último transporte para casa.

Finalmente, aí pelas dez e meia, ouviram-se trombetas estridentes e a voz cavernosa do Diabo anunciou: «Sua Omnipotência: Deus!» Este entrou arrastando os pés sob uma túnica fora de estação, seguido pelo Filho com ar cabisbaixo, e sentou-se de cenho carregado. O Diabo fez-se ouvir pela segunda vez: «Está aberta a sessão.»

Como era evidente, julgar todos os presentes, um a um, seria tarefa para milénios; isto falando em julgamento justo, com concessão de todos os direitos de defesa aos réus. Para evitar o arrastamento do julgamento e previsíveis recursos para o Supremo, Deus anunciou que a sessão seria única e inapelável. Conforme decretado, assim aconteceu: não houve defesa, ninguém pôde justificar-se e as sentenças foram coletivas.

Com ar zangado, Deus começou: «Aí em baixo, toda essa caterva de beatos, místicos, ascetas, e todos esses padres, freiras e mulás vestidos de preto, ou de branco, e todos esses bispos e cardeais de vermelho, vão para a reciclagem — fundir e voltar a moldar. Motivos? Não Me ouvistes dizer “Crescei, multiplicai-vos e povoai a Terra”? E o que fizestes vós?: abstinência, temperança, mortificação da carne, e outras parvoíces. Diabo, toma nota: reciclagem!»
De todos os pontos desse enorme grupo, ergueram-se pedidos de clemência e protestos de inocência: «Desse crime não posso ser acusado. Estão aí os meus filhos para o provar.» Ou: «Eu era o melhor cliente do bordel da cidade». Ou ainda: «Eu não tenho culpa de que as crianças não engravidem!».

A seguir, disse Deus: «Todos os médicos aqui presentes, veterinários, caçadores, desinfestantes, pasteurizadores, farmacêuticos e todos os utilizadores de químicos mortais, em geral: reciclagem! Não andei seis dias a puxar pela cabeça, para criar milhares de espécies diferentes, e depois virem uns racistas e matarem metade da Criação. Diabo, toma nota: reciclagem!»

Depois: «Budistas, maometanos, cristãos, jeovistas, animistas, jupiterianos, mitómanos em geral e outros crentes em milagres — reciclagem! Não conheço gente mais ignorante do funcionamento da Natureza.»
«Diabo, como são quase os mesmos, junta-lhes os que estão sempre a cantar louvores e a azucrinar-Me os ouvidos com rezas, e os pedintes de favores em geral. Põe-nos dez mil anos a atender pedidos num call center; a ver se começam a ter uma ideia de Inferno!»

«Mais: automobilistas, gestores de indústrias, criadores de vacas e outros produtores de gases geradores de efeito de estufa: reciclagem! Diabo, altera-lhes o design oficial para líquenes. Detesto que decidam os dilúvios por Mim!»

A sessão ainda se estendeu por mais um par de horas, até que Deus, visivelmente cansado, adormeceu. O Diabo deu, então, uma sonora marretada na moleirinha de um querubim, anunciando: «A audiência deste tribunal fica suspensa. Recomeça assim que algum amigo meu tencione carregar no botão do Apocalipse. À mesma hora.»

Um indescritível clamor de protesto pelo tempo perdido não se fez esperar e milhões de vozes alteradas exigiram que os Juízos Finais sejam privatizados. Seguiu-se um engarrafamento infernal que durou quase cinco anos. Foi por isso que só cheguei agora.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giorgio Vasari e Federico Zuccari, Juízo Final, afresco, Interior da cúpula de Santa Maria dei Fiore, Florença, séc. XVI.

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10/04/2016

O Primeiro Passo


Não vês que estás a ir por maus caminhos, meu filho? — O anjo adotava uma postura paternal, a face preocupada, o gesto complacente.
Eu nem sei se quero ir por bons caminhos! — retorqui, desafiador.
Quando ele se materializara no meu quarto de solteiro, com ares de arcanjo Gabriel, passava das três da manhã. Estranhei, mais do que me assustei. Tinha estado na comissão de autogestão da fábrica a tratar de problemas deixados pelo patrão fugido e, proposta puxa discussão, tinha bebido umas três ou quatro cervejas. O verão de 75 ia quente em todos os sentidos, a Revolução avançava com autogestões nas fábricas e nos campos e auto-organização das populações em todos os domínios. Havia um sentimento no ar de que, finalmente, tudo era possível. E tanto que havia para fazer! O mais difícil era a mudança das mentalidades. Todos tínhamos sido condicionados para ser engrenagens de uma sociedade de obedientes, castos e tementes. De repente, tinham-se rompido as comportas que mantiveram a multidão calada e quieta, e esta inalava, impertinente, os primeiros aromas da liberdade.
Agora, até de replicar a um anjo eu me sentia capaz:
E, além do mais, o que é que tens com isso?
Não penses que podes viver como queres: lascivo, descrente e subversivo. Tudo está determinado e o teu lugar está muito bem definido.
Eu posso fazer o que quiser! Desde que não restrinja a liberdade de ninguém.
E não achas que roubar a fábrica de alguém é atentar contra a sua liberdade?
Não é roubar, é pôr ao serviço da comunidade — a começar pelos que lá gastaram o seu esforço, o seu tempo, as suas vidas —, o que alguém explorou e abandonou. Não é a sua fábrica, era a sua máquina privada de sacar mais-valias.
Não vês que tudo isto é apenas um remoinho passageiro!? Não vês qual é a ordem natural das coisas? Quando a poeira assentar, volta tudo ao que era. E então, tu estarás perdido.
Não me vão prender por tentar ajudar a pôr a fábrica a funcionar outra vez, está descansado!
Não é dessa perdição que eu estou a falar. — E continuou a pôr água na fervura revolucionária: — Quem me mandou não gosta de rebeldes. Gosta que a hierarquia esteja muito bem definida e que o de baixo não desobedeça ao de cima. Gosta que a moral e a religião sejam o guia das nações e que os seus dirigentes sejam austeros, mas bondosos, como os pais são para os filhos. Agora, tu és um filho pródigo que não respeita o seu pai.
Eu vejo é que o teu ar paternal, de há pouco, está a transformar-se na fúria contida de um mestre-escola autoritário. Por que é que quem te mandou não prefere a liberdade das pessoas e a livre adesão aos seus preceitos? Ou a livre rejeição!? Como é que se pode sentir satisfeito de mandar em autómatos, que se lhe sujeitam apenas pelo medo do castigo? Não repara como são alienadas as pessoas que se lhe submetem, que nem pensamentos de revolta podem ter?
Ele vê é que, com a ordem que instaurou, todos eram felizes. Já viste alguém feliz nesta revolução?
Sim, muitos, loucos de felicidade. Pela primeira vez são donos das suas vidas.
Loucos, dizes bem! A revolução pôs pais contra filhos, filhos contra pais, marido contra mulher, mulher contra marido. Os partidos, de que até o nome é revelador, destroem a harmonia da sociedade.
Os partidos são a expressão, crispada mas necessária, que faz circular na sociedade os vários conceitos da sua própria organização. Vocês não têm partidos? Os anjos dão-se bem com os querubins? E estes com os serafins? Ou também têm interesses de classe?
Lá, donde eu venho, a harmonia não tem ameaças. Todos conhecem e aceitam o seu nível celeste.
Não será bem assim! Tanto quanto eu sei, já houve revoltas. Não foi lá que Lúcifer bateu o pé ao teu patrão?
Sim, há esse episódio…
E essa tal harmonia de que falas não corre o risco de um dia ser alterada pela tomada do poder por Lúcifer?
O anjo, de que não cheguei a saber o nome, riu-se com gosto. Perdeu por momentos o ar, umas vezes pedagógico e protetor, outras tenso e vagamente ameaçador, e riu-se demorada e maliciosamente:
O Lúcifer foi um caso de sucesso. Foi das revoltas melhor recuperadas de que há memória. Achas que se ele fosse antissistema torturava os que lhe mandamos? Pelo contrário, procuraria tratá-los o melhor possível para ganhar aceitação popular. Não; o trabalho dele é um pouco desagradável, porque tem aquela falta cívica para pagar, mas está tão integrado e é tão necessário ao nosso sistema, como é o sistema prisional em qualquer sociedade humana. Aliás, quem me enviou está muito satisfeito com ele. O seu Inferno é a cúpula que completa o edifício teológico arquitetado.
Não era nada de que eu não tivesse já desconfiado, mas a confirmação, assim, de chofre, provocou-me uma náusea de repulsa por um desígnio tão totalitário.
Em vez de me convencer da perfeição do sistema e de me submeter aos argumentos do anjo, fui invadido por uma onda irreprimível de rejeição. Afinal, a oposição não era entre umas entidades sobrenaturais benfazejas, e outras maléficas, mas entre a liberdade de autodeterminação do Homem, e o obscurantismo das superstições e dos mitos, em conluio com as forças da exploração. Abri a janela e aspirei o ar fresco da noite.
Tretas! Andamos há milénios rodeados de tretas, que só servem para a classe exploradora nos manter mansos. Não acredito em nada disso. Nem em demónios, nem em anjos. Não quero. E, mesmo que acreditasse, seria contra! — A minha voz soou com uma tal limpidez, como se eu não tivesse dito nada antes.
Ou fosse porque os últimos vapores de álcool abandonaram os meus pulmões, ou porque os mitos só se instalam na cabeça de quem lhes dá guarida, o certo é que, quando me voltei, não vi anjo algum. Acho que nessa noite dei o meu passo revolucionário mais consequente.

Joaquim Bispo

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Imagem: “Kouros” de Kroisos, Anavyssos, c. 530 a.C., Museu arqueológico de Atenas.

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(Este conto foi publicado no número 18 da revista literária virtual Samizdat, de julho de 2009.)

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