Paulina,
a Castanha, não queria acabar comida por um esquilo. Nem a sua
ambição era ficar ali pela terra e um dia gerar um grande
castanheiro.
― Maior
e mais majestoso que o papá ― chilreavam de entusiasmo as irmãs.
Antes
de tomar qualquer decisão, queria saber o que havia para lá da
curva do caminho.
Um
dia, de manhãzinha, disse adeus às duas irmãs, que se mantinham no
aconchego do ouriço familiar, e partiu em direção a sul. A meio da
manhã, encontrou outra castanha como ela, mas mais anafada.
― Olá!
Quem és tu e para onde vais? ― perguntou Paulina.
― Sou
uma Castanha da Índia e vou para a cidade. Uma prima arranjou-me
trabalho ― respondeu a outra, radiosa nas suas bochechas luzidias.
― Então
vamos as duas!
Mais
à frente, encontraram uma espécie de castanha pequenina e
redondinha.
― Olá!
Quem és tu e para onde vais? ― perguntou a Castanha.
― Sou
a Avelã e vou para a cidade. Quero arranjar trabalho e ganhar
dinheiro.
― Então,
vamos as três!
Por
volta do meio-dia, num cruzamento, encontraram outras duas.
― Olá!
Quem são vocês e para onde é que vão? ― disse a Castanha da
Índia, que já tinha aprendido a senha. A mais encorpada respondeu:
― Eu
sou a Noz e esta minha amiga é a Amêndoa e vamos para a cidade
estudar. Estamos fartas de ser cascas-grossas.
― Então,
vamos todas de companhia! ― Era a vez de a Avelã concluir.
E
lá foram divertidas e tagarelando a tarde inteira. Ao anoitecer,
encontraram uma bolota pilada, toda encarquilhada, que lhes ofereceu
guarida junto a uma azinheira. Aceitaram agradecidas, que a noite
está cheia de roedores; mas apenas começou a haver luz, partiram e
chegaram à cidade ainda de manhã.
Deram
uma volta a apreciar os prédios enormes e o formigueiro dos carros.
Depois, encontraram um jornal de anúncios grátis.
― Olha
este ― disse a Amêndoa. ― «Precisa-se amêndoa para fábrica de
doces conventuais». Vou responder! Se for um part-time,
posso ganhar uns dinheirinhos e ter tempo para estudar.
― Boa,
este é para mim! ― entusiasmou-se a Avelã ― «Chocolataria
procura avelã grada. Paga bem». Se ganhar muito dinheiro, compro um
pulverizador à minha mãe.
― Hum,
não sei o que este é ― disse a Castanha carregando o sobrolho ―
«Castanhas nacionais e estrangeiras. Quentes e boas!». É capaz de
ser uma empresa de trabalho temporário. Mas não há mais nada! Acho
que vou tentar.
Combinaram
que cada uma iria responder ao seu anúncio e que voltariam a
juntar-se de tarde. Paulina resolveu esperar pela Castanha da Índia, na esperança de
que esta lhe arranjasse vaga.
À
hora aprazada chegou a Noz muito zangada. Tinha ido responder a um
anúncio para Segurança num armazém e tinham-lhe dito que era um
estágio não remunerado.
― Lá
na terra, muito ou pouco, sempre pagam a quem trabalha. Nunca me
fizeram uma proposta tão desavergonhada!
― Eu
cá estou contente com o trabalho ― chegava a Castanha da Índia. ― Fiquei a trabalhar em casa de uma velhota simpática e o que tenho de fazer é só ficar numa gaveta de roupa a afugentar as
traças. ― O sorriso de orgulho que lhe assomara à casca fechou-se
logo a seguir. ― Mas não é trabalho para vocês, meninas! Não têm este cheiro que afasta os insetos. Agora,
tenho de ir. Adeus. Vemo-nos por aí.
Da
Amêndoa e da Avelã, nem sinal. A Noz e a Castanha esperaram ainda
um par de horas, e, como as outras não vinham, foram responder ao
anúncio para a Paulina.
Era
numa rua estreita e o local de trabalho, envolto em fumo, não
passava despercebido. Aproximaram-se, sem dizer nada, e ficaram à
espreita, para descobrir qual era o ramo de negócio do patrão.
Este, de bigodinho e cabelo oleoso,
pegava nas castanhas, rasgava-lhes a casca de um golpe e atirava-as
para um pote esburacado que tinha sobre brasas.
Só
então, horrorizadas, se aperceberam do cheiro a castanhas assadas
que enchia o ar; e as viram amontoadas num grande tabuleiro. Estavam
irreconhecíveis. A casca golpeada encanecera como noiva adiada e
abrira-se pela ação do calor, deixando ver o delicado véu
interior, que separando-se do miolo, expunha o corpo dourado das castanhas. «Que degradante! Porque faz esta atrocidade, porquê?» ― perguntavam-se. Observaram então como os
homens se aproximavam de olhos lúbricos, pagavam o preço combinado
e, apossando-se dos objetos do seu apetite, esmigalhavam com mãos
papudas o resto de casca e de película que parcamente
ainda vestia as castanhas. E depois de completamente
descascadas ― oh, horror! ― de uma só dentada comiam-nas. Inteiras.
Escapou-se-lhes
um «Oh!» involuntário. O homem das castanhas viu-as e baixou-se
para as apanhar. Estava quase a agarrar Paulina quando a Noz,
ginasticada e enraivecida pela repulsa, saltou. Apontou uma cabeçada
aos dentes do homem. O lábio superior deste interpôs-se e ficou
esmagado entre os próprios dentes e a cabeça dura da Noz. O homem
gritou agarrado ao lábio a sangrar. Várias cabeças de homens se
voltaram. A Castanha e a Noz sentiram aquelas dezenas de olhos sobre
si. Um medo imenso apoderou-se delas.
Fugiram
dali, tão depressa quanto conseguiram, sem olhar para trás. Ao
virarem uma esquina, quase foram esmagadas por um carro. Atiraram-se
para o lado às cegas e caíram numa sarjeta. No escuro, húmido e
fétido, olharam em volta, tentando enxergar o que quer que fosse. Só
três pares de olhos brilhantes guinchavam.
Joaquim
Bispo
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(Este
conto
foi
publicado no número 11
da revista literária virtual Samizdat, de dezembro
de 2008, com o título “Paulette
na cidade”.)
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