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10/12/2022

Do lado de fora

 

Com o passar do tempo, perdemos a localização temporal exata de certo facto. Desta personagem, lembro-me que apareceu de súbito a dormir por baixo das arcadas do meu prédio, mas perdi a memória sobre a estação do ano em que tal aconteceu. É provável que fosse outono.

A princípio, todos pensámos que ficaria por ali umas noites e partiria, tanto mais que não acumulava muitos cobertores e agasalhos, como outros sem-abrigo. Limitava-se a deitar-se sobre um cartão grande, daqueles que acondicionam eletrodomésticos, para se proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava um cobertor. De dia, desaparecia durante a maior parte do tempo, talvez por se envergonhar da maior exposição a que se sujeitaria. Era alto, um pouco curvado, barba e cabelo grandes, olhos encovados sempre baixos, vestia um eterno sobretudo e parecia ter bem mais de cinquenta anos, mas nestas situações de fragilidade social é um pouco difícil fazer uma avaliação etária rigorosa.

Nunca soubemos de onde viera, porque estava ali, porque dormia na rua. Habituámo-nos à sua presença e quase nos passava despercebido. O incómodo inicial por ter ali um sem-abrigo desvaneceu-se aos poucos, porque o homem não sujava, não pedia dinheiro, não pedia comida, não dizia nada — literalmente. Nas várias tentativas que os vizinhos mais piedosos fizeram, perguntando-lhe se tinha família, se precisava de alguma coisa, obtiveram sempre a mesma reação. Ele virava a cara, mudo, e chegava a afastar-se do local, mas sem ares de rudeza. Mas não recusava o que lhe trouxessem. Várias vizinhas lhe levavam comida, de vez em quando. A mais admirável era a velhota indiana que trazia do minimercado um saquinho de plástico, já com víveres separados, que entregava ao homem. Ele recebia, fazia um gesto de agradecimento com a cabeça e recolhia-se.

Certa vez, tendo eu achado uma chave junto à porta, achei que tinha um bom pretexto para interagir com ele e, eventualmente, pô-lo a falar. Abordei-o e pedi-lhe que a desse a quem a tivesse perdido. Aceitou. Um ou dois dias depois, apontou-me umas palavras a lápis no mármore, informando que a chave era da mulher da limpeza, escritas com uma excelente caligrafia. Fiquei a suspeitar que o homem tinha a sua instrução e já teria tido uma vida bem mais confortável.

Esta recusa em comunicar foi talvez um obstáculo a que alguém conseguisse aliviar-lhe o mal-viver. A sua atitude asceta dava a impressão de querer castigar-se, sabe-se lá porquê. Lembro-me de muitas noites, de vários invernos, em que eu, chegando do trabalho pelas duas ou três da madrugada, o via a contorcer-se em cima do cartão, talvez com fome ou frio, talvez com dores de alguma mazela que se desconhecia. Algumas vezes acreditámos que um dia acordaríamos com a notícia de que fora encontrado morto na sua cama de cartão.

Certo dia de folga, resolvi seguir-lhe o deambular diurno, para saber por onde gastava o tempo. Levantei-me com o raiar do dia, mas quase se me escapava. Com a sua carga de sacos às costas, foi percorrendo o caminho para Loures, através da Quinta Nova. Ali, sentou-se uma boa hora à sombra de uma figueira, mastigando algo indefinível. Perto do meio-dia, atravessou para o Olival e, numa rua interior, aproximou-se da porta de uma tasca e esperou. Pouco depois, um homem saiu e entregou-lhe um pequeno embrulho, que ele guardou no bolso direito do sobretudo. Sem dizer nada, como sempre, acenou com a cabeça e afastou-se em direção ao Vale do Forno. Um pouco antes, subiu uma vereda na encosta até uma antiga fonte, com vista sobre o vale de Odivelas. Nesta parte, foi difícil segui-lo sem me expor, apesar de estar disfarçado com um boné e uns óculos escuros. Dei uma volta larga e aproximei-me do local numa posição sobranceira. Libertara-se da carga de sacos e estava sentado num banco de pedra, a olhar o vale. Tirou o embrulho do bolso e começou a comer, pausadamente, como quem não tem apetite. Devia ser uma sandes qualquer que o taberneiro lhe dera. Eu próprio já sentia o estômago a reclamar, pelo que desci o monte e comi uma sandes de ovo e chouriço, numa cervejaria, mas voltei rapidamente ao meu posto, com medo de lhe perder o rasto.

Não havia pressa. O almoço tinha acabado, mas não a digestão. O meu vizinho circunstancial estendera-se ao comprido no banco de pedra e parecia dormir a sono solto. Nada mais me restava que esperar. Ou ir-me embora. Resolvi ficar. Durante umas duas horas, entretive-me, eu próprio, a contemplar o vale, com a ribeira e as pequenas hortas clandestinas, rodeadas por prédios a perder de vista. Sem dúvida, era uma vista esplêndida. Era de estranhar que os prédios ainda não tivessem invadido as hortas.

Feita a sesta e reposta a carga, o meu vizinho (como seria o nome dele? É incrível como nos interessamos tão pouco pelos outros) atravessou novamente a ribeira e dali subiu o Bairro dos Pombais. Sentou-se num ponto estratégico, um pouco encoberto com umas árvores, e ficou-se a espreitar longamente algo lá longe, do outro lado do riacho. Passado um bocado, percebi que se agitava com o que estaria a ver. Lá em baixo, nada de especial acontecia: a mesma fila de casinhotos toscos, com arremedos de quintal nas traseiras, em que alguns tinham improvisado galinheiros e outros procuravam ganhar terreno à ribeira para fazer horta. Ao voltar os binóculos para o meu vizinho, para apurar a direção em que olhava, fui surpreendido pelas lágrimas que lhe rolavam macias pelo rosto barbado. Quase saltei de curiosidade. O que havia lá em baixo que lhe provocava esta comoção? Concentrando a atenção, julguei descobrir a causa de tanta emoção: duas crianças de uns quatro ou cinco anos brincavam despreocupadas num dos quintalecos, correndo atrás de uma galinha.

Estava descoberta uma ponta do segredo do vizinho. Apostaria que havia ali família dele. Seriam as crianças seus filhos? Ou netos? Ou, tão só, sobrinhos? Alguma ligação profunda existia entre o estranho vizinho e aquelas crianças. E, claro, as crianças teriam pais ou avós dentro de casa. Ou que chegariam mais tarde. Porque não se aproximava mais era, certamente, a chave do enigma.

Meditando sobre o assunto e congeminando das mais simples às mais abstrusas hipóteses, segui-o o resto do dia, só para cumprimento do plano decidido. Regressou placidamente às arcadas do meu prédio. E eu a casa, embrenhado nos mais piedosos pensamentos e imbuído das mais caritativas intenções.

No silêncio da noite, sentindo a presença dorida do pobre diabo deitado lá fora num chão rijo, decidi-me a procurar soluções junto da autarquia, assim que amanhecesse. Mas de manhã estava frio, eu tinha dormido pouco e tinha sono. Nem sabia muito bem aonde me devia dirigir. De tarde fui trabalhar e adiei a diligência. Mais dias passaram, há muitas coisas para fazer, as anteriores preocupações são substituídas por outras mais frescas e tudo passa.

Aparentemente, terá havido pessoas e entidades que quiseram tirá-lo dali, mas ele sempre recusou. Uma vez, já no fim dos cinco anos que ali passou, vi uma mulher, acompanhada de uma assistente social da autarquia, a tentar convencê-lo a ir com elas. Sem êxito. No entanto, talvez um mês depois, aceitou relutantemente sair dali com a tal mulher. Correu o boato de que era filha. Que dramas escondia ele, que misérias estavam por detrás daquela situação, nunca o soubemos. Ou nem quisemos saber.

Joaquim Bispo

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Por uma daquelas coincidências significativas tão comuns nas Ciências e nas Artes, como se as ideias “andassem no ar”, foi criado em dezembro de 2022, no Porto, um grupo de teatro empenhado em puxar para esta atividade inclusiva e socializante pessoas sem-abrigo, a que foi dado exatamente o nome de “Do lado de fora”. Ao seu dinamizador, Rui Spranger, o meu voto de bom sucesso!

https://portocanal.sapo.pt/noticia/319918?fbclid=IwAR1JF5rnOImzqxTfffayg4hYpgATMqjvhkKuK-9BBWJBWoo4mY8f0nE3p6o

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Imagem:

Dominguez Alvarez, Louco, 1934.

Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, Lisboa.

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10/11/2021

O passeante invisível

 

Nunca ninguém o viu. Nunca ninguém se deparou com ele ao dobrar uma esquina, fosse noite ou dia. Mas nunca ninguém duvidou que ele se passeava invisível por toda a cidade. Alguns afirmavam ter entrevisto sombras que eram, indubitavelmente, projeções da figura fantástica do passeante invisível. Outros garantiam ter ouvido sons abafados, momentâneos arrastamentos como de passos, que comprovavam que ele se passeava por ali.

A cidade é feita de muitas estruturas artificiais. Físicas e organizativas. Os homens precisam de um lugar coletivo para viver. Estarem juntos dá conforto e segurança, mas demasiada proximidade torna-se inquietante. Estar a sós com outro homem numa rua deserta, noite alta, é tão ou mais assustador do que enfrentar os silêncios e os ruídos da noite na floresta, na serra, no campo. Os homens precisam de estruturas, muros que os separem dos outros homens.

O passeante invisível construíra a cidade, mantinha as estruturas fortes, escorraçava os inimigos, assegurava os fornecimentos. Ele é forte e destemido; passeia-se por toda a cidade, sobretudo no ermo da noite. Dizem. Porque veem sombras, ouvem certos sons reveladores, porque só pode andar por lá, invisível.

Olhem, lá vai a sombra dele, por entre os pilares daquelas arcadas — grita um.

Olhem, é ele, no reflexo do vidro daquela montra — clama outro.

Ninguém punha em dúvida estes avistamentos fantasmáticos. Toda a gente sabia que o passeante invisível andava por lá. Nalgum sítio havia de estar: nas arcadas, nos vãos das portas, nas gares rodoviárias ou marítimas. Os seus sinais vislumbravam-se sempre a desaparecer por detrás de alguma estrutura da cidade. Ele andava lá, mas invisível.

Conta-se que, em tempos que ninguém já recorda, um jovem, irreverente como todos os jovens, ao ouvir alguém asseverar, pela milésima vez, que acabara de avistar a silhueta do passeante invisível, não se conteve, como seria prudente:

O passeante invisível é uma invenção das vossas mentes sedentas de graça e do deslumbramento mitómano da primeira infância!

Um grande burburinho se gerou entre os que ouviram tal dislate. Quiseram bater-lhe, ou então que retirasse o que tinha dito, que pedisse desculpa.

Quem achas tu que construiu a nossa cidade, mantém as estruturas fortes, afasta os nossos inimigos e assegura os fornecimentos de que a cidade precisa? — confrontaram-no.

Fomos nós e os nossos avós que assim a moldaram; somos nós que a mantemos a funcionar com a eficácia possível. “Passeante invisível” é só uma expressão que reflete toda a nossa incapacidade de assumir que, em conjunto, conseguimos gerar obra com qualidades maravilhosas.

O jovem persistia no erro, mas, em breve, compreendeu que estava isolado e desacreditado. Pediu desculpa.

O alcaide, no entanto, não hesitou em tomar medidas que devolvessem à população toda a confiança eventualmente perdida e até a reforçassem. Emitiu um edital anunciando que, como, representante do passeante invisível, iria tornar possível e incontestável a identificação do protetor da cidade. Quem quisesse ver a roupa por ele usada, bastaria dirigir-se à alcaidaria, onde estaria exposta numa câmara junto à entrada.

Os muitos cidadãos que lá acorreram viram o que parecia andrajos de mendigo, dado o seu aspeto miserável, mas todos compreenderam que eram os mais adequados para alguém tão humilde que evitava mostrar-se. A confiança de todos fortaleceu-se. O passeante invisível continuava a proteger a cidade e agora podia ser visto. E mais frequentemente passaram a avistá-lo nas arcadas, nos vãos das portas, em outros abrigos precários. Se não era ele, parecia, pelos trajes.


Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos selecionados para a 29ª edição (setembro/outubro de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 93 a 94).

https://drive.google.com/file/d/1ep-dEpKzatqGxEec-M-ag8pVvyNn2QIC/view

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Imagem:

Maria Helena Vieira da Silva (1908–1992), O passeante invisível, 1949–51.

Museum of Modern Art, San Francisco, EUA.

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10/01/2016

Sem abrigo


O dia começou-me mal. Não ouvi o despertador e cheguei atrasado ao emprego. Isto numa sexta-feira, o dia em que saio mais cedo para ir à consulta do psicanalista a Lisboa.
Parti de Castelo Branco às quatro da tarde e às seis já estava a chegar ao aeroporto mas, a partir daí, o trânsito estava complicado. Perto das sete, a hora da consulta, telefonei do Campo Grande ao doutor, a pedir desculpa pelo atraso. Às sete e vinte, já desvairado, encostei o carro como pude, a meio da 5 de Outubro, e apressei o passo para o consultório, que é junto ao Saldanha.
A consulta foi pouco produtiva. Não consegui soltar-me e verbalizar todas as queixas que tenho da vida, desde que a Noémia me deixou. Quando ia para pagar, dei-me conta que tinha deixado a carteira no compartimento da porta do carro, onde a meti ao pagar a portagem. Fiquei a dever a consulta.
Voltei ao carro, mas não o encontrei. No café em frente, confirmaram-me que tinha sido rebocado. Na pressa, tinha-o posto num espaço reservado a deficientes.
De repente, vi-me numa situação muito desconfortável: só tinha um porta-moedas com 4 euros e 40, eram nove da noite, estava a duzentos quilómetros de casa e não tinha onde dormir. Enquanto pensava o que havia de fazer, comi uma sandes de queijo com uma imperial e um café. Fiquei com 1 euro e 70.
Lembrei-me de um amigo da tropa, o Marques, que, quando me encontra, insiste para o ir visitar a Campo de Ourique. Liguei-lhe, mas, assim que começou a chamar, acabou-se a bateria do telemóvel. Numa lista telefónica, por exclusão de partes, encontrei a morada. Meti-me no Metro até ao Rato e depois fui a pé. Quando dei com a rua Tomás da Anunciação, eram já quase onze da noite. Toquei, toquei à campainha, mas ninguém respondeu. Se calhar tinham saído de fim-de-semana.
Voltei para trás, meio acabrunhado. Sem saber para onde ir, segui a linha do elétrico por S. Bento até ao Chiado. Já não cirandava pela cidade desde os tempos de tropa, há uns vinte e tal anos. Aqui e ali, vi pessoas a dormir enroladas em cobertores e metidas em caixas de cartão. Como se teriam deixado chegar àquilo? Um despedimento inesperado? Um endividamento incontrolável? Uma desistência abismal? Um indivíduo de barba hirsuta veio pedir-me «uma ajuda». Apeteceu-me dizer-lhe «hoje não pode ser», como habitualmente, mas acabei por lhe dar vinte e cinco cêntimos. Pela primeira vez, sentia uma identificação estranha com aquelas pessoas. Deambulei pela Baixa a ver as iluminações de Natal. Era minha intenção continuar a andar até que amanhecesse mas, ao contrário do que esperava, comecei a sentir-me cansado. Subi a Almirante Reis e toquei em três pensões. Uma estava cheia e as outras duas não me aceitaram sem identificação ou sem pagar adiantado.
Pela primeira vez, também não tinha onde dormir. Para piorar as coisas, começou a chuviscar. Estive um bocado debaixo do toldo de uma montra de móveis. Depois, encostado às paredes, meti por uma transversal da Morais Soares e entrei na porta de um prédio que estava encostada.
Fiquei parado na penumbra, atento a todos os ruídos. Do alto das escadas ouvia-se, de vez em quando, um ruído indefinido. Cheirava a mofo. Sentei-me nos degraus de madeira e aos poucos a fadiga invadiu-me. Estive ali muito tempo de pernas encolhidas, dobrado sobre os joelhos, com o rosto apoiado nas mãos abertas, enquanto o frio se espalhava por todo o corpo. Apesar de estar cheio de sono, só conseguia adormecer por curtos períodos, devido ao frio e à posição. Apetecia esticar-me. A meio da noite, reclinei-me de lado nos degraus, mas as arestas magoavam. Fui mudando amiúde de posição. Tiritava. Os pés estavam gelados. Ansiava pela manhã.
De repente, meio estremunhado, ouvi ruídos de passos a descer as escadas. Em poucos segundos, estava confrontado com um cão grande a ladrar furiosamente e a fazer avanços para me morder. O que me valeu foi o dono e a trela com que o segurava. Envergonhado, saí.
Tinha parado de chover. Subi a rua até ao alto da Penha de França. O casario acinzentado começava a ganhar cor. Do lado de Xabregas, o céu tingia-se de fortes tons de vermelho. Em breve, a enorme bola solar fez a sua entrada triunfal. Há quanto tempo não via um nascer de Sol! Fiquei um bocado a saborear essa extraordinária visão e a sentir o corpo a deleitar-se com o pouco calor que transmitia.
Depois, comecei a encaminhar-me para o parque de carros rebocados de Sete Rios. Na Duque de Ávila, encontrei um café aberto. Perguntei quanto custava um galão.
Oitenta!
E se for setenta? ― murmurei eu, de porta-moedas aberto.
O homem mirou-me e começou a preparar o galão. Deve ter reparado na barba por fazer, nos olhos remelados, na roupa amarrotada e empoeirada de roçar nas escadas. Fui à casa de banho, aliviei a bexiga, lavei os olhos e passei as mãos molhadas pelo cabelo. Daí a pouco, com o calor do galão a inundar-me o estômago, sentia-me pronto para outra. Salvo seja! Espero que nunca mais volte a não ter onde dormir. Nem imagino pelo que passa quem vive anos sem abrigo.
Ao resgatar o carro, fiquei a saber que passei uma noite horrível sem necessidade: afinal, o parque de rebocados só fecha à meia-noite. Nesse início de 2009, apeteceu-me gritar uns palavrões.

Joaquim Bispo

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(Este conto foi publicado no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009.)

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