Era
uma vez um cavalo que vivia em Pádua. Servia como montada de um
capitão do exército, e o que se vai contar passou-se há muitos
anos, quando as guerras eram feitas com cavalos e espadas.
Certo
dia, quando o cavalo estava no tronco para ser ferrado, entrou um
ladrão no recinto. O meliante, que vinha armado, levantou um ferro
para bater na cabeça do ferrador. O cavalo assustou-se, e, como
ainda não estava com as patas presas, pregou um valente coice no
assaltante, que foi abater-se contra um muro. O ferrador ficou muito
agradecido e disse ao cavalo:
— Vou
cravar-te, no casco da pata direita, uma ferradura, que me deu um
génio, há muitos anos, por serviços prestados. Quando estiveres em
perigo, raspa com ela no chão e diz três vezes: Hihihipoho.
O
cavalo foi-se embora e quase que se esqueceu do assunto, mas um dia,
em grande galope numa batalha, tropeçou e estatelou-se com uma pata
partida. Lembrou-se logo da ferradura mágica do ferrador; escarvou o
chão e disse três vezes “Hihihipoho”.
Encontrou-se, de repente, numa clareira duma floresta de carvalhos e
viu um génio, que era homem da cintura para cima e cavalo da cintura
para baixo, que lhe disse:
— Que
ajuda precisas, cavalo?
— Parti
uma pata e quero que me salves de ser abatido. Um cavalo de pata
partida já não serve para montada de ninguém.
O
génio deu três sacudidelas com a cauda e o cavalo ficou curado.
— Ainda
tens dois pedidos — disse o génio esfumando-se. — Usa-os bem!
Ora,
uns tempos depois, passou o “nosso” cavalo no adro da basílica
de Santo António e, como o seu dono encontrou outros cavaleiros e se
pôs a conversar, pôde admirar a estátua equestre ali erguida. O
cavalo de bronze era tão possante, que parecia ser ele que dirigia o
cavaleiro. Perguntou aos outros cavalos, quem era aquele da estátua,
mas nenhum soube dizer. Então, interrogou um pombo que por ali
andava e este respondeu:
— O
cavalo, não sei, mas o cavaleiro é o grande comandante veneziano
Gattamelata, esculpido pelo, não menos famoso, Donatello. É o que
ouço dizer.
O
cavalo ficou tão impressionado pela majestade da estátua que, após
muito meditar, resolveu que ia dedicar o resto da vida a servir
alguém famoso, para ser retratado com ele para a posteridade e
também ficar famoso. Quando ficou a salvo dos olhares humanos,
raspou com a ferradura mágica no chão e disse três vezes
“Hihihipoho”.
Viu-se logo na clareira do génio-centauro, e este perguntou:
— Que
ajuda precisas, cavalo?
— Não
estou em perigo, génio, desculpa — explicou o cavalo —, mas
preciso que me arranjes um dono famoso, para ser retratado para a
posteridade, como o cavalo de Gattamelata.
— Tu
é que sabes! — ralhou o génio. — Olha que este pedido te pode
fazer falta mais tarde!
— Eu
quero ser retratado em bronze, nada mais me interessa!
Então,
o génio, vendo a decisão resoluta que o cavalo tinha tomado,
disse-lhe:
— É
pena não teres pensado nisso um pouco mais cedo. Está a ser
erigida, em Veneza, uma estátua equestre maravilhosa, a do
comandante veneziano Bartolommeo Colleoni. Mas é melhor veres.
Dito
isto, apareceu no centro da clareira uma estátua equestre. O cavalo
parecia mais pequeno que o de Pádua, mas estava esculpido com tal
garbo e com tal realismo de pormenores, que parecia vivo.
— É
assim mesmo que eu quero! — emocionou-se o cavalo.
— Infelizmente,
quem fez este já não faz mais; foi esculpido por mestre Verrochio,
que morreu há pouco. Mas, sempre te digo, que o seu discípulo
Leonardo é um artista prometedor a quem muitos poderosos já
recorrem. Queres ficar ao seu serviço?
O
cavalo relinchou agradecido e pouco depois achou-se em Milão, na
cavalariça usada por Leonardo da Vinci. Estava este a arquitetar uma
estátua equestre gigantesca, de mais de sete metros atuais, para a
corte de Milão, pelo que observava e desenhava cavalos, anotava a
medida de cada parte do seu corpo, para encontrar a proporção
ideal, e tentava arranjar maneira de fundir uma peça tão grande.
Também o nosso cavalo foi sujeito a medidas rigorosas, o que muito o
alegrava, imaginando já, retratada em escala monumental, alguma
parte do seu corpo, se não o todo. Ao longo de dois ou três anos,
viu multiplicarem-se os esboços, e crescer o modelo em barro.
Infelizmente, antes de a estátua final estar acabada, o bronze foi
necessário para fazer canhões e o projeto foi abandonado.
Muito
triste com o malogro, o nosso cavalo escarvou, outra vez, o chão e
disse três vezes “Hihihipoho”.
— Que
ajuda precisas, cavalo? — perguntou o centauro na clareira de
carvalhos.
— O
projeto de Milão fracassou. Estou desesperado, não sei o que fazer
— choramingou o cavalo.
— Não
te prometo nada, mas se te mantiveres sempre perto de Leonardo, estou
convencido que acabarás por ter êxito.
E,
assim, foi o nosso cavalo parar a Florença, onde Leonardo veio a ter
a encomenda da pintura mural de uma batalha, para o salão nobre do
palácio do governo da República. Foi escolhida a de Anghiari —
uma batalha entre florentinos e milaneses — cujo motivo central
Leonardo resumiu ao choque selvático entre quatro cavaleiros.
Durante longas horas, o nosso cavalo posou, pacientemente, nas
cavalariças de Santa Maria Novella, onde Leonardo preparava um
enorme esquiço, que depois transferia para a parede do palácio.
Jurava, para si próprio, que a cabeça do cavalo mais à direita,
embora em esgar de furor, era tal qual a sua. Infelizmente, Leonardo
era lento a trabalhar e começou a ser solicitado por trabalhos mais
bem pagos, de modo que a pintura da batalha não chegou a ser
concluída.
O
nosso cavalo ficou muito desanimado, mas, quando pensava que era o
mais infeliz dos cavalos, sobreveio o pior: o seu artista, o homem a
quem tinha dedicado tantos anos de sacrifício, em poses longas e
difíceis, tencionava abatê-lo para lhe estudar o esqueleto, os
nervos e os músculos. Entrou em pânico. Assim que pôde, raspou com
a ferradura mágica no chão e gritou:
— Hihihipoho.
Hihihipoho.
Hihihipoho.
— Por
que me chamas, cavalo? — perguntou o génio.
— Salva-me,
por favor, que Leonardo quer abater-me para me estudar os ossos.
— Ó
cavalo, tenho muita pena, mas já esgotaste os pedidos! Eu avisei-te!
— respondeu o génio, com um ar muito contristado. — Não posso
fazer nada. E, além do mais, já tens que idade!?; mais de vinte
anos! Eu, se fosse a ti, continuava com Leonardo. Dizem que os
desenhos que faz, de ossos e músculos de homens e animais, são tão
admiráveis como as suas pinturas e as suas máquinas de guerra.
Assim, como assim, a que é que querias dedicar-te nessa idade?
O
nosso cavalo voltou para casa, resignado. Umas semanas depois,
Leonardo dissecou-o, examinou e mediu todos os elementos, e
desenhou-os com todo o rigor. Nessa altura, andava empenhado em
comparar o esqueleto e os músculos dos membros do Cavalo e do Homem.
Assim
acaba a história do cavalo que queria ser retratado como os famosos,
o que, de certa maneira, conseguiu. Ninguém pode dizer que os
rascunhos de Da Vinci para o grande monumento de Milão ou para o
salão de Florença tenham elementos de um único cavalo, mas alguns
investigadores estão convencidos de que os esboços anatómicos de
um cavalo que são comparados com os de um homem são de um só
animal, um que nós sabemos!
Joaquim
Bispo
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Este
conto foi
publicado no nº 10 da Revista de Artes e Ideias, Alma Azul, Coimbra,
2014
e,
por
seleção em concurso literário, integra — páginas 54 a 58 — a
antologia “Zoonarrativas Zooopoéticas” da Editora Jogo de
Palavras, de março de 2019:
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Imagem:
Maria Leal da Costa, Luís Valadares, Cavalo
Alter Real,
2005.
Alter
do Chão
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