Quando Crpt se religou,
encontrou-se sentado na zona de acesso às partidas aéreas da cidade
arqueológica de Ur. De imediato, detetou o imperativo de entregar
uma mensagem, impregnada na área encriptada, dirigida ao arqueólogo
“Gilgamexe”. A instrução de ação era clara — “A mensagem
deve chegar à Casa Branca na véspera de Natal do ano 2899” —,
mas o que isso significava era um completo enigma. Por enquanto.
Tratou de consultar
mentalmente a enciclopédia interna de acesso expedito. Ficou a saber
que Natal era uma primitiva data religiosa, que se transformara numa
festividade frívola, realizada pelo solstício de inverno do
hemisfério norte, e que o significado principal de Casa Branca era o
de um antigo edifício de comando mundial situado numa das zonas
irradiadas na última Guerra do Petróleo. A escavação arqueológica
do local iniciara-se havia uns vinte anos e era uma das mais
prometedoras da Zona Oriental.
Para o esclarecimento de data
tão bizarra, não havia qualquer pista. Decorria o ano 643 da era de
Wu Wang e, seguindo a instrução à risca, tinha mais que tempo de a
cumprir — 2256 anos e dois dias, mais precisamente. Isso era uma
eternidade. Provavelmente, nem o seu corpo duraria tanto, apesar de
ser fabricado com as mais dúcteis e resistentes ligas biometálicas
e com tratamentos autorregeneradores. O seu trabalho quase permanente
nas zonas irradiadas expunha-o a corrosões intensas. «Para quê,
enviar uma mensagem com um prazo de entrega de milénios?»,
perguntava-se. Havia, com certeza, um erro na data indicada. Ou,
quiçá, uma charada a resolver na própria instrução de ação, o
que o destinatário sob pseudónimo prenunciava. Qualquer das
hipóteses era pouco verosímil, dado o rigor normativo habitual das
comunicações. Quando acontecia um erro, era invariavelmente da
responsabilidade de um Homem.
Uma pergunta começou a
dominá-lo: «o que esperaria dele o comando da Delegação de
Kandahar, numa situação como esta?» Enviou um pedido mental de
iluminação ao Conselho Central, mas, mais uma vez, o silêncio foi
a resposta. Dantes, acreditava obter revelação, quando pedia ajuda
em momentos de incerteza, mas havia muito tempo que uma ausência
absoluta de sinal era a norma. Sentiu-se abandonado por um momento,
mas depois reagiu, confiando no permanente controlo da Delegação,
ainda que silencioso, sobre o seu livre-arbítrio.
O melhor a fazer seria
entregar a mensagem sem demora. Mas, interrogava-se: «por que
levar uma mensagem a uma zona irradiada, proveniente de outra zona
irradiada, mas com escavações apontando para épocas tão
diferentes? Porquê tanto enigma na instrução de entrega da
mensagem?» É certo que não lhe competia questionar, mas obedecer.
Devia fazê-lo, embora sentisse que, apesar do imperativo subjacente,
tinha autonomia para desobedecer. Mas, se contrariasse este, podia
correr o risco de fazer algo pernicioso para o Homem. E isso era o
pecado máximo. Por outro lado, a mensagem saía muito da rotina, a
começar por não conseguir identificar a entidade que inculcara a
mensagem encriptada no seu âmago.
O seu trabalho, nos últimos
meses, era transportar informação classificada entre o centro
arqueológico de Ur e a Central. Já havia levado várias mensagens à
capital terrestre, com resultados das escavações arqueológicas nos
níveis sumérios e, uma ou outra vez, sobre os progressos da
descontaminação na região. Lembrava-se de todas essas viagens,
mas, desta vez, só se recordava da preparação da viagem para a
Região do Meio e de se religar já na estação aérea, com
instruções para se dirigir à Zona Oriental.
Obedecendo à imposição
imanente, cuja origem desconhecia, estaria a servir o Conselho
Central dos 21 sábios de Wuhan ou a ser usado para fins proibidos,
talvez por uma entidade revoltosa? Esta última intuição do seu
intelecto perturbou-o. O que menos queria era ser manipulado por
entidades perniciosas para os Homens.
Pensou, computou algumas das
hipóteses prováveis para a explicação da situação e decidiu-se.
Não seguiria para a Zona Oriental sem ter algumas pistas sobre o
teor da mensagem que transportava, ou a entidade de origem; também
não iria a Kandahar revelar as suas hesitações sobre a missão de
que estava incumbido; nem voltaria à escavação de Ur a queixar-se
de angústia e a tentar obter respostas. A existir uma hipotética
alteração da sua estrutura inconsciente, provavelmente, fora lá
feita.
Como que respondendo a esta
intenção de desobediência, uma angústia asfixiante invadiu-o.
Olhou em volta à procura de ajuda, mas apenas ao longe divisou
outras unidades cibernéticas autónomas. Com dificuldade, ligou
mentalmente a unidade de energia sobressalente e moveu-se para o
exterior. O sol atingiu inúmeras das nanocélulas fotovoltaicas
embebidas no revestimento, o que lhe transmitiu um novo ânimo, e a
angústia desvaneceu-se.
Iria a Bagdad pedir ajuda e
conselho a uma unidade cibernética de pesquisa e deteção, a única
a quem alguma vez se afeiçoara, quando ela prestara serviço em Ur,
uns dois anos antes. Era muito estimada na escavação e um
arqueólogo Homem chegou a apaixonar-se por ela. A Delegação agiu
sem demora e os amantes foram deslocados para escavações separadas.
Agora, dedicava-se à descoberta, identificação e recuperação dos
objetos do antigo museu de Bagdad, dispersos aquando de uma invasão
oriental, numa das primeiras Guerras do Petróleo, especialização
com que fora entretanto impregnada.
A consciência cibernética
dele proibia que lhe fizesse uma revelação integral das instruções
recebidas, mas avaliou que era baixa a probabilidade de a divulgação
restrita da instrução comprometer a missão. Aliás, sem ajuda, o
desempenho da missão podia estar em risco. O máximo que podia
acontecer — acreditava — era reeducarem-lhe o processador central
e mergulhar temporariamente na ausência de computação e mesmo de
funcionamento elementar. O máximo era demasiado, mas estava disposto
a sacrificar-se por um límpido serviço pelo Conselho, que por fim
reconheceria os seus bons serviços e lhe devolveria a ligação.
Psqs recebeu Crpt com algumas
manifestações de agrado, o que o reconfortou. Analisaram ambos a
situação deste e também Psqs estranhou a instrução que Crpt
recebera. O protocolo de origem parecia regular, mas vago — Base Ur
—, e os dados individualizados do emissor estavam encriptados.
Ela lembrou-se, então, de
calcular a que ano, da era em vigor na época das guerras do
petróleo, corresponderia o ano em curso. Intuição certeira: 2899.
O que poderia denotar uma instrução, toda ela codificada com
referências de mais de 600 anos? Seita cultora do passado?
Brincadeira de técnicos cibernéticos? Casa Branca seria uma
metáfora para o atual edifício das decisões mundiais em Wuhan?
Porquê Natal?
Psqs ficou silenciosa e
introspetiva durante uns momentos. Depois, revelou que tinha acesso a
um descodificador de mensagens encriptadas pelo método Ling; que se
ele quisesse, podiam tentar abrir a mensagem. Entre o pecado
cibernético e o perigo de estar a ser usado para trair o Conselho,
Crpt optou pela transgressão.
O descodificador era adequado.
Cautelosamente, começaram por aceder à identidade do emissor: “Arq.
Lalit Chandra”. Ambos reconheceram o nome do vaidoso arqueólogo de
Ur, especialista da civilização suméria, que denunciara o
envolvimento do arqueólogo Gellert com Psqs. Dizia-se que,
secretamente, realizava rituais de religiões antigas. A seguir,
descodificaram a mensagem encriptada:
“Gilgamexe”!
Soube que foste instalado
nessa base de elite, depois daquele episódio lamentável, com a
nossa “amiga” cibernética. Se estás a ler esta mensagem é
sinal de que a lata eletrónica onde segue é tão arguta como eu
suspeitava. Tive de criar uns enigmas na instrução, para contornar
o controlo de comunicações.
“Gilgamexe”, grande
amigo! “Enkidu” não te esqueceu. Como podia? Fazíamos uma
equipe imbatível, coesa em todos os aspetos, que ainda hoje é
lembrada em Ur. Andávamos sempre juntos, adorávamos estar juntos,
por isso nos deram estes epítetos mitológicos que adotámos com
gosto. Éramos tão felizes!
Não, “Gilgamexe”,
“Enkidu” não te esqueceu. Nem te perdoou. Como pudeste
rejeitar-me, envolver-te com… Nem sequer era uma pessoa! Não
passava de uma criação de engenheiros cibernéticos, uma escavadora
com mamas. Nunca aceitei a rejeição, nunca a aceitarei.
Presumo que estejas bem
instalado, se calhar bem acompanhado. Eu? Chafurdo na lama
mesopotâmica. Sozinho. Terrivelmente triste. Sem um carinho. Não
aguento mais. Por isso te envio esta lata, com um voto de sonhos
felizes. Bye!
Os amigos perceberam de
imediato o que estava prestes a acontecer e só puderam abraçar-se,
antes que a explosão levasse metade do edifício onde se localizava
o alojamento de Psqs.
Na Delegação de controlo
cibernético de Kandahar, perdeu-se, de repente, o sinal de duas
unidades em Bagdad.
Joaquim Bispo
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Este conto integra — páginas
118 a 123 — a coletânea “Mirage vol. 02 — Miscelânea de
Narrativas Irreais” da Editorial Coverge, disponível na Amazon.
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Imagem: Possível
representação de Enkidu como homem-touro, lutando contra um leão,
selo do Império Acádico, cerca de 2200 aC.
Coleções
do Museu
de
Aleppo, Síria.
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