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10/11/2024

Cadeias

 

Em todos os tempos, ostentar ouro concedia estatuto, demonstrava sofisticação. O ouro de uma mulher do interior há 80, 70, 60 anos valorizava-lhe a beleza, conferia-lhe estatuto social, dava-lhe segurança, como a outra de qualquer época, mas também concedia a quase sempre ignorada liberdade económica da própria. O ouro de uma mulher, sobretudo aquele que ela trouxe de dote, era dela, era um bem a que podia recorrer, em último caso, para um desígnio pessoal. Um cordão podia ajudar um filho, às escondidas do marido; uns brincos de que já não gostasse podiam comprar uma peça de vestuário para levar a um casamento.

O ouro acompanhava-a, compondo uma imagem de si. Tendo-o por testemunha, vinham os filhos, vinha a labuta, passavam os bons e os maus momentos. O cabelo branqueava, vinham os netos, chegavam as doenças. Por fim, já nada interessava, nem o ouro. Só a viagem sem retorno ganhava o centro da angústia conformada.

Passam dias, passam meses, os filhos fazem as partilhas. Tentam equilibrar os valores, mesmo nas pequenas coisas. Dividem-se as roupas aproveitáveis, as loiças, os bibelôs. Muita coisa não tem préstimo, muita coisa se guarda por valor sentimental. A vida vai-se recompondo, sem a ausente. Ainda vem muitas vezes à ideia, enquanto viva; lembram-se os tempos penosos do hospital; quem foi prestável e atento, a tia mais nova que foi lá todos os dias e até ajudava a dar-lhe o jantar. Um deles põe a hipótese de presenteá-la com algo que pertenceu à morta, algo de algum valor, mas que seja sobretudo evocativo. Aquela pulseira dela, que lhe era característica, que aparece nas fotografias de solteira? Sim, sem dúvida; parece bem, parece mais que justo; resolvem dar-lha.

Inesperadamente, a tia não quer a pulseira, faz muita resistência a recebê-la. Começa a parecer exagerada tanta cortesia, a parecer estranho não querer ficar com uma lembrança da irmã. Finalmente, explica-se, conta uma história; a pulseira tem uma história secreta.

Não te lembras que eu era muito enfermiça desde pequena? Qualquer corrente de ar me deitava à cama. Desde a minha terceira classe até ser já quase adulta, eu era muito fraca dos brônquios. Quase que não podia sair de casa. Então a tua mãe, a ver-me assim, e a ver a tua avó a ficar cada vez mais velha — algum dia a não poder dar-me proteção —, acho que fez uma promessa a Nossa Senhora: que, se eu ficasse boa, lhe dava uma pulseira de ouro, esta mesma.

O sobrinho surpreende-se, não sabe desta história. Parece-lhe que tem um resquício de memória, uma miragem incerta, mas foi há muito tempo: a maior parte das recordações desvaneceu-se. Quer saber mais, os “quandos”, os “comos” e os porquês. A tia não se retrai:

Não sei que idade é que eu tinha quando ela fez a promessa, mas o que é certo é que aí pelos dezanove anos passei a andar sempre boa, tanto que fui fazer o segundo ano, nas freiras, e depois o Liceu, quase sempre dois anos num. Então a tua mãe, vendo que eu estava boa de vez, dispôs-se a pagar a promessa. E deve ter falado disso numa matança do porco. Então a tia Ana disse que o ouro é do melhor que uma mulher tem e que não deve desfazer-se dele. Que, se calhar, a tua mãe podia pagar a promessa em dinheiro. «Vais ao ourives, perguntas-lhe quanto é que vale a pulseira — podes mesmo explicar-lhe o caso — e dás esse valor à Nossa Senhora.» Ora a tua mãe ficou a pensar naquilo, mas tinha medo que a promessa não ficasse paga. Então foi-se confessar e perguntou ao padre se podia fazer assim, como a tia Ana tinha dito. E o padre disse que sim, que o que contava era o valor da promessa e a vontade de a pagar. E foi isso que a tua mãe fez. Portanto, estás a ver, eu não posso ficar com esta pulseira, não quero.

Mas porquê, tia? A promessa foi paga; é como se tivesse sido dada a própria pulseira. Outra como esta.

Mas eu sei que esta é que foi prometida. É como se eu estivesse a aceitar o pagamento devido à Nossa Senhora.

O sobrinho calcula que ela terá medo de voltar a ter os achaques da juventude, por via da pulseira recebida: ela tinha sido beneficiária uma vez; ser beneficiária duas vezes deve parecer-lhe um abuso, quase uma blasfémia ou um pecado.

Tia, não é como se estivesse a usar o que lhe não pertence; seria antes honrar a memória da sua irmã — argumenta.

Ela acaba por aceitá-la, mas passados uns dois anos volta a tentar devolvê-la. Com tanta veemência que o sobrinho a recebe de volta.

Que fará ele com aquela pulseira, aquele objeto mediador do amor fraternal de sua mãe pela irmã dela? Não precisa do dinheiro, felizmente, mas, mesmo que precisasse… Pergunta-se qual o significado profundo da pulseira de ouro. Lembra-se, então, da ideia tradicional: o ouro de uma mulher é a sua liberdade económica pessoal. Pensa: “a pulseira é da mãe, sempre foi; ela que decida qual o caso ou o momento adequado para ser usada. E por quem”.

Manda escavar um estreito sulco na parte posterior da moldura com o retrato da mãe, que tem na sala, e esconde lá a pulseira. Um dia, ele ou alguém decidirá retirá-la. Para o que decidir. Ou que pensar que decidiu.

Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos selecionados no concurso literário da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo) de 2018 para integrar uma coletânea literária.

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Imagem:

Topa Topera (Tiago Estrelinha), Mural dedicado à mulher da Nazaré, 2022.

in Jornal das Caldas, 24 de Fevereiro, 2022.

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10/10/2024

O desconhecido

 

As nuvens adensam-se, o céu escurece, corre uma brisa fria e desagradável. É meio da tarde, o grupo prossegue pelo caminho rural em passo apressado. A cavaqueira de há bocado deu lugar ao silêncio; só o farfalhar da areia a ser esmagada pelas pisadas enche o ar. Mário segue no fim do grupo de seis pessoas, embrenhado nos seus pensamentos. Está a caminho de Fátima, nem sabe dizer porquê. Talvez porque se sente perdido num mundo que já não reconhece, talvez porque os vizinhos o desafiaram. Lá à frente, a uns trinta metros, segue Adelina, a líder, mulher de uns sessenta anos, rude e vigorosa. Já fez esta viagem muitas vezes; é quase uma rotina sazonal. Desta vez arrastou a sobrinha Vanessa, que anda com problemas com o namorado, e Beatriz, outra vizinha da sua geração, cujo homem está para a França e há quatro meses que não dá notícias. Partiram pelas 5 da manhã da sua aldeia da zona do pinhal, perto de Oleiros. Já devem ter andado mais de trinta quilómetros e começam a dar sinais de cansaço. É muito para o primeiro dia.

Há uns quilómetros que Mário pressente uma névoa no trilho ao lado do seu. Não é uma sombra, só a incerteza de uma miragem. Pouco depois torna-se mais densa e acaba por se materializar, inteira, caminhando. Parece um ancião, de cara esquálida enquadrada por um capuz branco. Será mais um peregrino que alcançou o grupo? Mário repara que todo ele veste de branco. Sem sombra, sem ruído.

Mário já viu muita coisa, está muito recetivo a visões, a ilusões. Caminha e espera. Caminhar, naquele ponto da viagem, já é automático; não se deixa perturbar pelos pensamentos. Os pés caminham, arrastando pó e areia. O desconhecido parece agora uma pessoa como as que o precedem, mas Mário pressente que não. Pressentir, intuir, é uma forma de conhecimento.

Já? — lançou, em tom dorido, ao desconhecido.

Este olhou-o no fundo dos olhos, com um olhar quase meigo.

Em breve!

Lá à frente, Adelina começou a puxar pelo grupo com uma canção de hossanas à virgem. Mário caminhou ainda um quilómetro, antes de ripostar ao estranho:

Podes dizer-me antes o que há do lado de lá?

Nada te posso dizer; sou apenas um arauto, um mensageiro.

Não sabes ou não queres dizer?

Eu nada sei.

Se nada sabes, porque apareceste agora? — impacientou-se o humano.

Eu não sou exterior a ti. Convivo contigo desde sempre.

Mário calou-se a ruminar na resposta. Estava cansado. Nem sequer lhe interessava falar agora. Em breve chegariam à Sertã e poderia descansar.


O trajeto está todo apalavrado. A pensão da Sertã é limpa e agradável. Mário atirou-se para cima da cama e ferrou logo no sono, mas o companheiro de quarto, um madeireiro de uns cinquenta anos, chamou-o e convenceu-o a tomar um banho e a comer qualquer coisa antes de se deitar.

Depois de um jantar ligeiro, o grupo reuniu-se numa pequena sala de convívio, com televisão. Os ânimos tinham melhorado, com o tratamento de bolhas em alguns pés e a previsão de umas horas de sono descansado.

Queres jogar xadrez? — perguntou o desconhecido de branco, ao seu lado, frente a uma mesinha com um tabuleiro e as peças alinhadas.

Não me apetece! — respondeu Mário, sincero. — Não tenho cabeça para isso. Preciso de mais tempo para saber mais. Se tu não me dizes o que há do lado de lá… Ou é só uma escuridão vazia? Existe lá uma entidade que justifique os preceitos éticos e morais que nos são exigidos e faça a triagem lógica entre bons e maus, algo que torne o sistema entendível e aceitável pela nossa mente? Porque se nesse desconhecido não existe mais que o nada, a vida redundou num absurdo trágico. Agora só consigo pensar que preciso de mais tempo.

O tempo não está marcado, mas tem de ser cumprido. Ouve, tenho uma proposta: se me venceres, prorrogamos a concessão por uns dias. Se perderes...

Por uns dias… Isso é de uma grande injustiça! Porque és irrevogável? Porque é que ninguém consegue um prolongamento dos seus anos, ninguém pode acabar o que deixa inacabado, ninguém consegue esconder-se ou furtar-se deste encontro funesto? Porque é que não se pode saber se há algo para lá dessa fronteira? Porque é que ninguém tem respostas, ninguém regressa para contar?

Fazes tantas perguntas...

Porque é que velhos e novos, ricos e pobres, humildes e poderosos, todos são obrigados a submeterem-se a ti? Porque é que nenhum vivente te escapa?

Também se chama mortais aos viventes…


A noite de Mário não foi das melhores. Estava cansado, mas agora não conseguia dormir. Passavam-lhe pela lembrança alguns achaques recentes: incómodos abdominais frequentes, dores de cabeça intensas que duravam pouco, taquicardias e sensações de morte iminente durante a noite. Mário concluiu que já não devia durar muito. Nem os seus 83 anos auguravam outra coisa. Costumava convencer-se de que já não tinha pena de morrer — já cá andava há muito tempo, já tinha o papinho cheio de boas e más experiências, de vida. Custava-lhe, de qualquer modo, não saber muitas coisas do mundo. E, de cada vez que pensava nisso, sempre achava que era uma enorme injustiça. Tantos anos a aprender o funcionamento do mundo e das pessoas e agora… Porquê? Para quê? Que lógica é que havia nisto tudo? Haveria alguma entidade a tomar conta da máquina do mundo? Ou tudo não passava de acaso?

Na outra cama, o seu companheiro de viagem roncava, a sono solto.


A alvorada foi às seis. Os olhos de Mário mantinham-se papudos, mal refeitos com as três ou quatro horas em que o cansaço vencera a sua mente agitada. Daí a meia hora, depois de um pequeno almoço apressado, todo o grupo estava em marcha, agora por estrada de alcatrão. Caminhavam em fila, pelo lado esquerdo da via, por causa dos carros. Mário continuava atrás. Daí a um bocado juntou-se-lhe o peregrino de branco.

Pode ser hoje? — indagou, cortês.

Mário não respondeu logo. Havia um turbilhão de perguntas em disputa.

Deixa-me chegar a Fátima. Talvez a nossa senhora interceda por mim. — Pareceu-lhe que tinha transparecido medo e corou. — Há deus, não há?

Faz diferença?

Deve haver; senão, porque se mantém ele como realidade desconcertante no nosso íntimo, apesar de todos os esforços para o extirparmos em nós?

Eu nunca o vi.

Será possível que esta indelével impressão íntima não passe de um mecanismo mental gerado pela evolução, que se revelou vantajoso, por nos tornar a vida suportável, ao fazer-nos acreditar que uma entidade toda-poderosa comanda o mundo e que a vida tem um sentido?

É possível...

É uma grande ironia, se não há deus. E uma grande maldade se há. A maldade começa com o facto de ele se esconder num misto de promessas meio-formuladas e recompensas improvadas. E de não responder. Se o único juiz que pode ou não confirmar o acerto das nossas escolhas, das nossas ações, não responde, instala-se a dúvida, a suspeita de que pode ser tudo uma gigantesca farsa. Qual seria então a razão disto tudo?

Essa lógica é humana — querer que tudo tenha um sentido.

Como é que pode ser de outra maneira? As pessoas têm de encontrar um sentido no que fazem. É da sua natureza. Esforçam-se por acreditar em deus, mesmo nunca o vendo, nem obtendo qualquer resposta às suas tentativas de comunicação. Sabem por experiência que não é possível acreditar, não acreditando. E mesmo acreditar não satisfaz o nosso entendimento. Gera uma indessedentável vontade de verdade que formule as questões e dê as respostas de maneira leal, sem subterfúgios, sem falsidades. Nessa demanda se vive. Por que não responde ele às nossas perguntas?

Talvez seja surdo ou mudo; talvez esteja noutro lado. Talvez não exista.

Oh, deixa-te de evasivas! Queres fazer-me acreditar que toda esta máquina de ilusão funciona e que tu és a única entidade real nela?

Eu, pelo menos, sou evidente e incontornável.

E se eu não acreditar em ti? Talvez deixes de existir. Alguns velhos teimosos gostam de dizer que nada ainda lhes provou que não são imortais.

Até que nos encontremos…

Oh! Não se pode falar contigo.

Mário sentiu-se, mais uma vez, por sua conta, exclusivamente. Sem apoios físicos, sem bordões ideológicos. Vasculhar os limites das grandes questões do ser e só encontrar silêncio e incerteza trouxe-lhe a mesma angústia da criança que acorda e se encontra só no negrume da noite.


A dureza das jornadas parece que vai deitar abaixo os que se atrevem a enfrentar tantos quilómetros, mas o corpo tem essa capacidade de reação, de adaptação, que o enrijece e o leva a suportar com mais facilidade o esforço. O grupo manteve-se unido e motivado nos dois dias que ainda durou a caminhada.

Então, ti Mário, aguenta-se até Fátima? — brincou Adelina, logo à saída de Ferreira do Zêzere. — Hoje a estrada é melhor!

Então, não havia de aguentar, Adelina? Antes de ser professor primário, fui carteiro. Calcorreei muitos quilómetros de serra.

Vejo-o tão calado...

Também nunca fui muito reinadio!

O velho de branco não deixou de comparecer ao encontro, mas Mário não se atemorizou com a ameaça implícita e o seu corpo enviava-lhe mensagens de satisfação física, cada vez mais encorajadoras. Parecia-lhe que quanto mais andava menos debilitado ficava. Se o desconhecido quisesse apunhalá-lo à traição, era com ele, mas Mário acreditava que até uma entidade destas tem alguma ética.

Os últimos quilómetros foram de andamento frenético. Toda a gente ansiava por concluir a jornada o quanto antes. Só se ouvia o arfar da respiração apressada. O estranho parecia apresentar algumas dificuldades para acompanhar o grupo. O primeiro indício foi um atraso tão ténue como o de uma passada, mas um quilómetro mais à frente já se atrasara uns dez metros. Ao aperceber-se disto, Mário esboçou um sorriso de tal maneira contido que o desconhecido não se teria apercebido dele, mesmo que ainda caminhasse ao seu lado. Quando mais à frente olhou para trás, só vislumbrou uma esparsa névoa, em vez de um ancião esquálido de branco.


A entrada no recinto principal do santuário gerou no grupo um clima de euforia e exaltação. Tinham conseguido, tinham-se superado. Abraçaram-se emocionados, improvisaram mesmo uma dança de roda, num estado potenciado pela grandiosidade do espaço e pela desmesurada multidão ali presente. Até Mário se manifestou falador e sorridente. Sentia-se revigorado e tão confiante como se tivesse ganhado uma segunda vida.

A poucos quilómetros, uma névoa esbranquiçada de forma humana, parecendo sentada sobre uma pedra da berma da estrada, resolvia mentalmente um problema de xadrez, enquanto esperava, como se tivesse todo o tempo do mundo.

Joaquim Bispo

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Este conto foi apresentado pela primeira vez na Festa do Livro do Centro Artístico Albicastrense uma organização conjunta com a Alma Azul , em 26 de julho de 2018, pela voz de alunas da USALBI (Universidade Sénior Albicastrense).

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Uma versão reduzida do mesmo foi selecionada para a 46ª edição (julho/agosto de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 85 a 88):

https://drive.google.com/file/d/1UQGefU6vzogEa772pS6q2EiAiDTRlSfX/view

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Imagem: André Dinis, Muzinga (capa de livro de banda desenhada), 2024.

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10/09/2024

A culpa

 

Quando preparava a torrada do pequeno almoço, no primeiro dia de férias na terra, o homem cortou-se. Aquele golpe trouxe-lhe à memória um longínquo episódio que estava enterrado sob camadas de esquecimento: devia ter já vinte anos quando ele e um dos melhores amigos de então, tinham pela última vez marcado a canivete os respetivos símbolos tribais numa árvore junto à ribeira. Era então a zona de banhos da juventude, sobretudo estudantil, à falta de uma piscina municipal, só construída trinta anos depois. Recorda que, por aqueles dias, alguma coisa se quebrou naquela amizade, mas tem ideia de que nunca chegou a saber o porquê. O que não impediu um sentimento de culpa que permaneceu. Teria sido uma palavra infeliz?; um ato mal-entendido? Talvez uma questão de saias. Lembrava-se que o amigo catrapiscava uma jovem, mas que não levou o intento adiante.

A tropa chegara abruptamente para toda a gente. Cada um seguiu rumos diferentes e nunca mais se viram, nem souberam um do outro.

O homem decide que nessa mesma manhã irá à ribeira, nesta fase de balanços de vida que atravessa.


Há muito que o homem não se aventura sozinho por aquele ermo. Vai contemplando as formas imperfeitas que um falcão desenha no céu luminoso da manhã de agosto, enquanto caminha. Um ténue halo de poeira, que só o falcão vê, sobe do antigo caminho dos moleiros. O caminhante avança resoluto por aquele trilho rural entre muros baixos, alguns derrubados. Passa muito das dez horas e o calor já promete torrar cada vivente. Aqui e ali, giestas e sargaços secos comprimem aquela senda abandonada, até restar quase só uma vereda. Em tempos, passavam por ali carroças e carros de bois; agora, talvez só pequenos rebanhos e algum caminhante desavisado.

O temerário tenciona passar as horas de maior calor no Pego da Azenha, um troço pitoresco da ribeira que desliza, relutante, a uns três ou quatro quilómetros da sua terra. Em adolescente gostava de se refrescar ali, banhar-se, brincar na água. Há quarenta anos, a corrente estava represada e criava uma piscina natural, com a graça de estar pontilhada de rochas arredondadas pela correnteza.

Avista ao longe o vulto de uma criatura que vem na sua direção. Estranha a presença, sente alguma apreensão. A agricultura está extinta na zona, a pastorícia está reduzida a cercados onde o gado fica por sua conta. Quem mais se aventurou por aquele percurso solitário com o calor a tornar-se já desconfortável?

O homem toma consciência do total isolamento em que está mergulhado. Não estava à espera. Apesar de ter sido criado no campo, desde a partida para a tropa que se tornou um urbano-dependente. Já não tem familiaridade com o espaço rural, muito menos com os seus habitantes. Recorda a navalha que todos usam.

Porque foi lembrar-se disso? Não há nenhuma razão para temer outro homem que ande por ali. Em alguns bairros arredados dos centros das cidades, aí, sim, acredita que há que ser cuidadoso. A figura, de ar envelhecido, talvez devido à barba grisalha, caminha com calma, mas determinação, ajudada por um pau tosco.

O visitante abranda o passo, para fazer coincidir o cruzamento com uma zona mais larga do caminho, em que terá havido um charco no inverno. Controla o outro de olhar baixo. Avança pelo carreiro que contorna pela direita a terra seca gretada; o desconhecido pelo outro lado. No ponto em que estão mais afastados, o homem levanta o olhar, sem levantar o rosto; o outro para, mirando o oponente, sem se voltar.

O homem sente um incómodo, um presságio de perigo; parece-lhe reconhecer aquele rosto carrancudo escondido pela barba. Diria que, se fosse mais novo, poderia ser ele próprio. Um arrepio surpreende-o. O olhar do outro é intenso e acusador. Sem palavras, sem ameaças, aquela presença domina-o com as maiores acusações, as mais fundas imputações de culpa. Luta para afirmar, garantir, convencer-se da sua inocência. Em vão. O olhar duro do estranho não lhe dá oportunidades de fuga.

Desculpa! — acaba por articular.

O olhar do outro desarma, acalma, adoça. Baixa por momentos o rosto, depois encara o caminho e recomeça a andar, no mesmo ritmo calmo de antes.

O homem desaba em si. Sente um grande cansaço. Retira-se para debaixo de uma azinheira raquítica que por ali está, senta-se encostado ao tronco e nem dá pelo passar das horas de calor intenso desse dia.

Joaquim Bispo

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Este conto foi lido no programa de rádio de António Serra "Sebenta do Tempo", do passado dia 4 de Outubro de 2024, pelas 11:00 h. Poderá ser escutado na RLX-Rádio Lisboa em: https://rlx-radiolisboa.pt/

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Imagem: Cruzeiro Seixas, Vencedores e vencidos dos combates cerimoniais, não datado.

Proveniência: Coleção Prof. Doutor Rui-Mário Gonçalves.

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10/07/2024

A pedra

 


No verão, Damião passava o dia na ribeira. Um fio de água, um charco aqui outro acolá; para os seus quinze anos, era o paraíso na Terra. Caçar pássaros com a fisga não passava de pretexto para andar descalço pelas areias sussurrantes, sob a sombra de amieiros e salgueiros. Raios de sol penetravam nas densas ramagens, mas não conseguiam alterar o frescor da proximidade da água.

Silêncio não havia, tampouco ruído. Sons naturais eram a melodia do local: rumorejos das copas verdes, cicios do fio de água em algum socalco entre pedras, um ou outro chilreio. Ao longe, o som cristalino das campainhas dos rebanhos e os cantos de ranchos de mulheres, em trabalhos campestres.

Naquele dia, esta sinfonia em surdina foi alterada por um chape-chape. Damião afastara-se ribeira abaixo para uma zona aonde ia poucas vezes. A uns duzentos metros, havia um pego com uma dimensão que permitia nadar. Era de lá que o ruído vinha. Aproximou-se furtivamente, não deixando que a areia pisada o denunciasse.

O inesperado afogueou-o. Era Delfina, a filha do rendeiro da quinta contígua, um ano mais nova do que Damião, e que ele já não encontrava havia bastante tempo. Espreitada dali, parecia nua, e muito entretida a nadar.

«Caramba! Como está bonita! E nua?»

A curiosidade era bem mais potente do que o respeito devido. Decidiu ficar à espreita até vê-la sair da água. A catraia, no entanto, alongava o tempo de banho. Com o coração a bater, farto de conter o entusiasmo, Damião resolveu acelerar o processo.

Pôs um seixo na fisga, sentiu-lhe a dureza, apontou para uma rocha do outro lado do pego e disparou. A pedra ressaltou no penedo e caiu na água. A miúda parou de nadar, olhou a toda a volta, em alerta. Damião meteu a mão ao bolso e atirou segunda pedra. Desta vez, a menina nadou rapidamente para a margem, apanhou as roupas e correu para casa.

Atento, sem pestanejar, Damião não obteve mais do que um vislumbre fugidio do que queria contemplar, mas que o exaltou até ao êxtase. E nunca mais o abandonou. Anos depois, ao recordá-lo, mete a mão ao bolso e ainda encontra lá a dureza da primeira pedra.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve o 1º lugar, na categoria Conto, no IV Concurso Literário Internacional Palavradeiros, de Boa Vista, Roraima, Brasil, e integra a coletânea resultante — páginas 24 a 25:

http://arteleituras.blogspot.com/2019/12/antologia-do-iv-concurso-literario.html

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Imagem: Menir do Outeiro, c. 4000–2500 a.C.

Altura: c. 5,6 metros. Diâmetro: c. 1 metro. Peso: c. 8 toneladas.

Reguengos de Monsaraz.

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10/06/2024

O acaso

 


Marco não admitia que tinha um problema de jogo. É certo que sempre estivera envolvido em ambiências de fortuna e azar, quer na adolescência, em que começara por jogar King a meio centavo o ponto, depois “abafa” e “lerpa” na tropa, com incursões cada vez mais frequentes na zona de máquinas do Casino do Estoril, até às posteriores dependências da roleta e aos seus mais recentes empolgamentos com o póquer on line.

Na tropa, apostava o vencimento de oficial miliciano. Quando as sucessivas noites de jogatina corriam mal e o vencimento se ia, iam-se também as saídas do quartel. Felizmente, havia a messe e o preço das refeições era descontado no fim do mês. E não parava de jogar: ficava a dever, apoiado na garantia do vencimento seguinte.

A fase da roleta foi das piores, em termos de perdas. Muitas noites saiu do casino de bolsos vazios, mas convencido que estivera perto de ganhar. E na noite seguinte estava de volta. A adrenalina de ver a bolinha a saltar e a perspetiva de ganho só era equivalente à da perspetiva de uma conquista galante. Pediu muito dinheiro emprestado.

Então, era o póquer. Sentia que visualizava com rapidez as várias variantes possíveis, e era agressivo nas apostas, mas continuava a perder “algum” dinheiro.

Tens um problema de jogo! — disse-lhe Jacinto, um amigo que encontrou por acaso e se apercebeu de alguns aspetos menos simpáticos desta maneira de estar.

Depois de meia hora de disputa — ele a negar, com argumentos de “nada de mais”, o amigo a insistir, com argumentos de “sê sincero contigo próprio” —, aceitou acompanhá-lo a uma sessão dos Jogadores Anónimos:

É só porque já não te posso ouvir…

Era mais ou menos o que esperava: uma sala com cadeiras a formar um círculo; um psicólogo a tentar que as pessoas se abrissem e assumissem o seu problema de jogo. A primeira experiência não foi especialmente interessante, mas acabou por voltar várias outras vezes para acompanhar o amigo, que, por sinal, frequentava o grupo como manutenção do combate à dependência do jogo on line.

Aos poucos, foi ouvindo histórias extraordinárias de vício de jogo — perdas gigantescas numa só noite, endividamentos extremos, roubos a familiares para jogo, autoestimas destruídas, tentativas de suicídio:

«Atolada em dívidas e incapaz de parar de jogar, tentei suicidar-me à frente dos meus quatro filhos.» «Os problemas com o jogo levaram-me a desviar milhares de euros do local de trabalho.» «Vivi durante quatro anos praticamente sem comer nem dormir. Quase enlouqueci.» «No espaço de poucos meses, acabei com os plafonds de três cartões de crédito e o ordenado de economista deixou de chegar para pagar as dívidas ao banco.» «Acumulei seis créditos em bancos diferentes e uma dívida de mais de sessenta mil euros.» «Cheguei a roubar dinheiro do mealheiro dos meus filhos.» «Em desespero, vendi um aquecedor a óleo na feira, por cinco euros.» «Todas as noites acabavam da mesma maneira: sem dinheiro no bolso e a braços com crises de choro, ansiedade e insónias.» «Em 2009, gastei o ordenado de dois mil euros em apenas meia hora.» «Cheguei a estar doze horas seguidas à frente de uma slot machine.» «Cheguei a remexer em gavetas em casa à procura de moedas, para poder comprar uma lata de atum para matar a fome.»

Com exceção de algumas diferenças de escala, havia semelhanças com a sua história. Quase todos falavam de um ganho importante, no início, referiam o gosto pelo ganho fácil, pelo poder, as sensações fortes, a novidade, culpavam a vontade de ganhar mais, quando ganhavam, e a premência de tentar recuperar, quando perdiam.

Para além dos casos pessoais, foi apanhando uma ou outra máxima, difíceis de aceitar, a princípio, verdades sábias, depois: “A dependência do jogo é uma doença que não tem cura”; “Um jogador compulsivo nunca deixa de o ser”.

Só no terceiro mês percebeu que tinha de “abrir o jogo” e parar de jogar. Foi quase insuportável a sensação seguinte de tédio, de vazio, de carência de qualquer coisa. Felizmente, o amigo Jacinto, indivíduo curioso, sempre a tentar perceber melhor alguns fenómenos, deu-lhe apoio e foi desmistificando alguns dos mitos que perdem o jogador.

— “Não jogue nunca!”, dizia Dale Carnegie num livro que li há muitos anos. Porquê? Porque todos os sistemas de jogo estão construídos para vencerem o jogador e lhe ficarem com o dinheiro. É de uma grande ingenuidade ele pensar que pode derrotar uma máquina que está programada para o vencer. Ela até pode dar-lhe prémios chorudos, que o deslumbram com esse ganho esporádico. Ao fim de muitas jogadas, a máquina ganha sempre. A máquina ou qualquer sistema. Porque o número de possibilidades de ganho do jogador é sempre inferior ao número de possibilidades de ganho do organizador do jogo. Seja roleta, slot machine, lotaria, raspadinha, concurso televisivo. O casino e os outros organizadores de jogos são os únicos que estão do lado certo do jogo. Como organizadores, dispõem de vantagens em relação aos jogadores: na roleta do casino, há 37 números — do 0 ao 36, como sabes; 18 são vermelhos e 18 são pretos; se jogares nos vermelhos e sair vermelho ganhas o dobro, se sair preto, perdes. Quando sai 0, ganha o casino. Portanto, apostas em 18 números, mas o Casino dispõe de 19 números. A longo prazo ganha sempre. Sempre!

Sim, claro, mas é possível derrotar o casino — ripostou Marco, certo do que dizia. — É preciso é contar bem as saídas de pretos e vermelhos e apostar no que tenha saído menos vezes. O que tenha saído menos vezes tem maior probabilidade de sair, claro!

Então, Jacinto disse o que ele não esperava ouvir e que mudou radicalmente a sua conceção dos jogos aleatórios:

A bola não tem memória das jogadas anteriores. A probabilidade de sair vermelho é a mesma de sair preto. Em todas as circunstâncias. Mesmo que tenham saído 500 vermelhos contra 20 pretos, a probabilidade de sair preto na jogada seguinte é igual à de sair vermelho.

Mas, como assim? — revoltou-se Marco. — Sei bem que a média em lançamentos aleatórios de duas possibilidades é de 50% de resultados para cada uma… Como é isto possível, se a cor que saiu menos vezes não passar a sair mais vezes?

É. Repara!

Puxando do telemóvel para fazer os cálculos, mostrou-lhe, então, com números, como a média se aproxima de 50–50%, sim, mas, geralmente, só à medida que o número de lançamentos sobe para os milhares.

No exemplo anterior dos 500–20, a média era de mais de 96% vermelhos contra menos de 4% pretos. Se continuarmos a fazer lançamentos e obtivermos, por exemplo, totais de 5000 vermelhos contra 4000 pretos, a média passou para cerca de 55% vermelhos contra cerca de 44% pretos, que é muito mais próxima de 50–50, sim, apesar de os vermelhos terem continuado a sair mais — 4500 contra 3980 pretos. Os tais pretos que “obrigatoriamente” teriam de sair mais vezes...

Manteve-se em silêncio, mais para não lhe dar a vitória, apesar da clareza da explicação. Engoliu em seco despercebidamente. Não estava a ser fácil dar de barato o que lhe pareciam verdades inquestionáveis.

Eu era um maluquinho das simulações — continuou Jacinto. — Com programas informáticos simples que eu próprio elaborava, fiz todo o tipo de experiências. Posso garantir-te: não se consegue ganhar à roleta. O zero a favor do casino é a vantagem que lhe garante a vitória final contra qualquer jogador, se ele não parar de jogar.

Desculpa lá… — tentou Marco levantar-se —, jogando o dobro de cada vez que perco, acabo por recuperar…

Essa é outra ilusão. Nem os milionários têm dinheiro para isso. Já foram registadas séries de 22 resultados da mesma cor, seguidos — esmagou Jacinto, voltando à calculadora do telemóvel. — Isso significa que um jogador que estivesse a fazer apostas de um euro com essa estratégia, se perdesse um euro e continuasse a apostar o dobro, ao fim de 22 jogadas teria já perdido 4.194.303 euros e teria de ainda pôr 4.194.304 euros na mesa da roleta para conseguir recuperar as perdas na 23ª aposta. E ganhar um euro... Apostar mais de oito milhões para ganhar um euro? Há investimentos mais acessíveis e mais seguros! E úteis.

Mas, então... — estava sem palavras. — Nem “à moedinha”, para o café?

É isso mesmo, Marco! “Não jogues nunca!” O jogo só é inofensivo e prazeroso quando não se tem em vista um ganho. Claro que eu jogo duas apostas de euromilhões por semana, não mais. O suficiente para uma vivência social normal. E podemos jogar à moedinha. Três, para as que vierem — vaticinou ele, estendendo a mão fechada, que podia trazer 1, 2, 3 moedas, ou nenhuma.

Ok, já percebi. Eu pago-te o café!

Entraram num café, com Marco numa espécie de estado de graça. Sentia que a sua vida de jogo — já não tinha medo das palavras — iria mudar radicalmente. Passaria a ser muito racional sempre que fosse confrontado com solicitações de ganhos miríficos, em acasos de jogo.

Acho que agora vejo as coisas duma maneira muito mais clara. Nem sei como te agradecer!

Para que servem os amigos?

Uma semana depois, voltaram a tomar café.

Marco estava pouco falador, cabisbaixo mesmo. Mexeu o café, pensativo, muito mais do que o necessário. Por fim, falou.

Jacinto, há alguns anos que não nos víamos e, em pouco tempo, temos convivido bastante. Só por isso é que me atrevo a pedir-te um favor — começou ele de rosto muito constrangido. — Só o faço porque as coisas não vão nada bem. Espero que não leves a mal.

Que se passa? — estranhou Jacinto. — Se eu puder ajudar… Não me esqueço dos amigos de longa data.

Marco fez um compasso de espera, cabeça baixa, como se não soubesse bem o que dizer.

Ainda são sequelas do jogo. Na altura, pedi bastante dinheiro ao banco e não consigo dar conta dos compromissos. Há dias penhoraram-me o ordenado. Dois terços já não me chegam às mãos. Fico só com um terço para as despesas todas. Preciso que me emprestes dois mil euros.

Com o desenrolar da conversa, percebia-se o que vinha aí, mas o número…

Eh, pá, dois mil euros… Estás mesmo a precisar de tanto? É que isso é mais do que eu recebo.

A sério? Estás a ganhar pouco! Ó Jacinto, eu não te pedia se não estivesse a precisar. Eu depois pago-te quando as coisas melhorarem.

Ainda tentou descartar a hipótese que entretanto o assaltara:

Por acaso não voltaste a jogar, não?

Ó pá, agora magoaste-me. Então eu ia pedir-te dinheiro para jogar?

Jacinto aceitou fazer a transferência, mas no mês seguinte o amigo voltou à carga:

Mil euros, Jacinto! É que a Belise ficou desempregada...

Continuaram a encontrar-se semanalmente nos Jogadores Anónimos, mas a situação estava a tornar-se pungente. Um dia Marco pedia um carregamento de telemóvel; noutro o passe do metro. E ia dizendo que era a última vez, que não pedia mais, mas na semana seguinte voltava ao mesmo. Jacinto já começava a não achar graça nenhuma àquela amizade.

Marco, isto assim não pode ser! Ainda não me pagaste nada do que te emprestei. Como é que achas que vais pagar?

Amigo, ainda não foi possível, mas eu vou pagar-te, está descansado. Anda lá a casa jantar amanhã para falarmos disso, pode ser?

Jacinto não queria ser indelicado, apesar da situação que se vinha a criar. Acabou por aceitar. Marco morava com a mulher na Pontinha, na zona antiga, e não tinham filhos. Receberam-no com muito carinho e Belise apresentou um esparguete com um molho realmente saboroso. Naquele momento, Jacinto invejou-o. Aquele tipo, com enormes problemas económicos, tinha um aconchego familiar apetecível: comidinha caseira e uma mulher que, não sendo esplendorosa, era muito bonita e atraente. O jantar foi amigável, mesmo afável e não se tocou no assunto dinheiro durante toda a refeição, apesar de Jacinto vir à espera disso. Depois do café, ficaram os dois a conversar nos sofás da sala, enquanto a mulher se retirara para a cozinha.

Quero realmente pagar-te — começou Marco — mas não está fácil. O dinheiro que entra é pouco e acaba-se depressa. A Belise vai fazendo uns biscates, que é o que vai valendo. Estivemos a pensar e lembrámo-nos que talvez não te importes de receber alguma coisa que precises, mesmo sem ser dinheiro. Espero que não leves a mal.

Não respondeu logo; não lhe agradava deixar de receber em dinheiro vivo, tal como emprestara. Por outro lado, não se vislumbrando outra maneira, talvez Marco tivesse objetos de que se quisesse desfazer e lhe dessem jeito. Do mal o menos.

Não sei, Marco! Tens coisas para vender? Eu já tenho a casa cheia de tralhas. Sem ofensa!

Sim, temos bens que te podem convir. Depende do teu interesse. Estarias disposto a receber, sem ser dinheiro mesmo? É que nós queríamos pagar esta dívida, mas dinheiro não temos.

Não é preciso eu receber já. Se achas que dentro de algum tempo me consegues pagar… — descaiu-se Jacinto, arrependendo-me logo de seguida. Estava a abrir a porta para receber daí a muitos anos ou no “dia de São Nunca”. — Mas diz lá o que tinhas em mente. Pode ser que me interesse.

Jacinto, só te vou propor isto porque sei que és um tipo sério a quem estou muito agradecido. Devo algum dinheiro a outras pessoas — pouco — mas a esses não proponho pagamentos destes; não me merecem respeito, apesar de me terem emprestado dinheiro. Pensa bem antes de responderes.

Ok, ok, diz lá!

Jacinto, estamos com cinquenta e tal anos, já nos conhecemos há uns tempos, já vamos percebendo os pontos positivos e os negativos de cada um. Sei que também tiveste problemas de jogo, mas que estás a ultrapassar; sei que não vives mal economicamente, mas que vives sozinho desde que te separaste da tua mulher — fez uma pausa neste ponto. — Um homem não vive bem sem uma mulher. Mesmo que o dia corra bem no emprego. À noite vai beber um copo com os amigos, sem que ninguém o chateie? Sim, é verdade, mas quando chega a casa também não tem ninguém que lhe dê um aconchego. Percebo bem as tuas carências nesse ponto. Nós não temos muito mais para te oferecer… O que me dizes? Não leves a mal!

«Quê? O que é que ele está a querer dizer? Será o que parece?» — pensou Jacinto. «Não, não pode ser… assim, com esta desfaçatez? Com a mulher ali na cozinha? Este tipo está parvo ou sou eu que tenho uma mente perversa?»

Marco, não sei se estou a compreender. Estás a dizer o que eu estou a pensar?

Não te sintas constrangido. Se não quiseres, nós compreendemos. Mas isso ia magoar a Belise. Ia ver isso como uma rejeição pessoal.

Mas, quê? Diz, diz tu!

Uma vez ou duas por semana vinhas cá a casa. Ou a Belise ia à tua. Até pode viver contigo uma semana por mês. Como quiseres. Acho que é uma maneira de te compensar, já que não temos meios de te pagar de outro modo.

Estás maluco! Eu não posso aceitar isso — reclamou Jacinto, numa atitude genuína de respeito pela dignidade humana.

Marco hesitou. De repente, pareceu apanhado de surpresa.

Gostas de mulheres, não? Não achas a Belise interessante?

Sim, sim! Quero dizer... não. Isto é, acho-a muito bonita e interessante, mas não quero pensar nela dessa maneira. É a tua mulher… — atrapalhava-se Jacinto, em pressupostos. — E a Belise? Não tem voto na matéria? — atirou ainda, mas já temendo que o argumento pegasse…

Claro que tem! Já falámos muito, já pusemos muitas hipóteses. Ela está disposta a tentar; deu-me há pouco o aval. Estamos nisto juntos.

Mas, não é penoso para ela?; não é humilhante para ti? — contrapôs Jacinto, de regresso a uma posição mais ética, menos egoísta.

A Belise gostou de ti. Achou-te interessante e, além disso, também está muito reconhecida pela ajuda que nos tens dado. Por mim, é bem melhor que fique entre amigos.

Mesmo assim, parece que estou a pagar por sexo. A ela, a ti. É… desconfortável.

Era bom que esta proposta não passasse de uma espécie de ilustração teórica dos perigos do jogo. Infelizmente, é a realidade de muita gente. Há quem venda o corpo na rua. Nós, até agora, temos conseguido não chegar aí. Esta solução não nos traz constrangimentos; estamos decididos.

Perante o silêncio do amigo, continuou:

Mas, se preferes, podemos deixar a decisão à sorte — sugeriu, tirando uma moeda de 20 cêntimos e colocando-a sobre a unha do polegar direito, pronto a dar-lhe um piparote. — Se sair coroa, recusas a proposta, mas ficas à espera do dinheiro; se sair cara… aceitas a Belise.

Não, não. Não me tentes com jogos — declarou numa meia verdade.

Jacinto aceitou a proposta, com sentimentos mistos. Uma luta entre respeito humano e egoísmo lúbrico não deixou de se travar no seu íntimo, durante os seis meses que durou o “pagamento da dívida”. À medida que se aproximava o fim do período previsto, crescia nele um certo sentimento de angústia. Não queria perder aquele mimo feminino que tão bem lhe fazia. Quando, esporadicamente, Marco voltou a pedir-lhe dinheiro emprestado, facultou-lho sem reservas. Até com um sentimento de satisfação. Perto do fim do mais recente prazo, foi o próprio Marco que o libertou mais uma vez da ansiedade.

Jacinto, estamos contentes não só por conseguirmos pagar a dívida, como por nos teres permitido fazê-lo deste modo. Estivemos a falar e resolvemos propor-te… uma extensão do acordo. Dava-nos jeito uma entrada extra de dinheiro. Mas só se tu quiseres.

Jacinto manteve o rosto impassível, mas por dentro rejubilava. Não era coisa que não lhe tivesse já passado pela cabeça, mas não tinha tido coragem de ser ele a propô-lo. Envergonhava-se.

Cerca de dois anos mais mantiveram o acordo de dama e cavalheiros, se é que algum merecia esse galanteio. Uma vez por outra, que Jacinto visitou o casal, percebeu pelo ecrã esquecido em jogos on line que o jogo nunca tinha abandonado verdadeiramente aquela casa. Há certos apelos que nem conhecimentos teóricos nem sofrimentos conseguem ultrapassar. E foi sabendo pela Belise antigas penas passadas, como as de ter feito hotéis e apartamentos em certos períodos extremos. Fizera-o com espírito de sacrifício pela família, com esperanças de redenção. Aos poucos, foi ficando cada vez mais desesperançada. Por fim, tomou uma decisão — ficar de vez com Jacinto. Para ela, foi a libertação; para ele, um momento de jackpot. Quem diria que seria pelos caminhos do acaso dos jogos que encontraria a mulher da sua vida?

Continua a frequentar os Jogadores Anónimos, porque bem sabe que “a dependência do jogo é uma doença que não tem cura”. Encontra lá o amigo, que agora anda a “tentar jogar pouco” e a “viver um dia de cada vez”. Falam dos velhos tempos, com o muito em comum que os acasos da vida favoreceram. Marco pergunta pela Belise, mas esse é um ganho que Jacinto já não arrisca perder.

Joaquim Bispo


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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 45ª edição (maio/junho de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 85 a 88):

https://drive.google.com/file/d/1sJH6wduc-nSa11gMQBaiPQ2WMfUffDMa/view

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Imagem:

J. Haudry (?), Cena de Casino.

Da Internet.

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10/05/2024

Abraão e o GPS

 


Abraão nunca aceitara bem aquele filho nascido fora de tempo. Quando o Senhor lhe anunciou que ia ser pai, Sara já tinha alguma idade. Como podia ainda gerar descendência?

Sara tivera uma série de abortos espontâneos. O ambiente insalubre em que toda a gente vivia no século XXI, não ajudava. A carne estava carregada de hormonas, o peixe, de mercúrio e outros venenos, as verduras, de agrotóxicos e chumbo dos fumos de escape. Aquela estada em terra estrangeira também fora traumática. Fora vítima de violação e sabe-se lá se apanhara alguma doença. Depois de todas as provações, e já sem esperanças, veio aquela voz pausada e grave anunciar-lhe o que parecia impossível:

«Corta o teu prepúcio e daqui a um ano serás pai» — ordenara a voz do Senhor, em tom assertivo, vinda do telemóvel desligado.

Abraão não percebeu porque é que o prepúcio vinha ao caso — embora tivesse lido umas coisas sobre DST na Internet —, mas obedeceu e nasceu Isaac. Inacreditável; o Senhor prometera e cumprira, não havia dúvidas. Quase tão inacreditável foi a criança nascer com aqueles caracóis ruivos que não existiam na família. Por isso, Abraão sempre olhou o filho de través. «Crê e viverás!» — ameaçou Ele, certa vez, em voz austera vinda do robô de cozinha. Isso foi fácil. Abraão tinha vontade de acreditar.

A psicologia já vai tentando explicar — sem grande aceitação —, como é que o imaginado toma conta do racional e docilmente o conduz pelos meandros de efabulações puramente mentais, como se fossem eventos acontecidos. O pensamento desejoso, que entretanto foi dominando Abraão, teria talvez origem na sua convicção de que Isaac não era seu filho, e aliciava-o com a possibilidade de ele ser filho do Senhor. Mais valia que Isaac fosse filho de um ser sobrenatural, do que de algum vizinho dissimulado. Ser trapaceado nesta matéria por alguém próximo ou amigo de casa era intolerável.

Com o tempo, nem tal estratagema mental concedia ainda descanso. Já andava Isaac pelos onze anos quando o Senhor, usando a voz modulada de Celestino, na aplicação de GPS do telemóvel, comunicou a ordem fatídica:

«Vai à Peninha, constrói um altar sobre a Pedra da Visão e imola o teu filho Isaac.»

Abraão não resistiu muito, nem perguntou porquê. Se era o Senhor que mandava… Como sempre, a ordem não o constrangia e até vinha ao encontro de um pensamento acarinhado, mas mantido íntimo, e explicável talvez por essa animosidade escondida para com Isaac. Mas não deixava de ser uma ordem. Mandava-o matar o filho, num ritual de adoração comandado pelo próprio Senhor e não iria contra ela. Nem contra essa, nem contra nenhuma outra.

Dias depois, muito cedo, Abraão obrigou o filho a sair da cama e a acompanhá-lo. Numa mochila, meteu uma faca de cozinha, um isqueiro piezoelétrico e uma caixa de acendalhas ecológicas. Na bagageira do Jeep, já tinha uma saca de lenha do Aki.

Meio ensonado, Isaac demorou a estranhar a excursão matinal, até porque o pai, não sendo madrugador, de vez em quando tinha assim repentes inesperados.

«A 400 metros, entre na rotunda e saia na segunda saída» — dirigia Celestino, do telemóvel que Abraão fixara no interior do para-brisas.

Aonde vamos, pai?

Abraão não respondeu. Não gostava de ter de se explicar.

Pai! — insistiu Isaac.

Tá calado! Vamos ver o teu avô ao lar da Azóia. Mas primeiro passamos na Peninha, para ver a vista.

A esta hora? Com este nevoeiro? Porque é que a mãe não veio?

Seguiam então pela estrada secundária junto a Barcarena, quando Isaac deu um grito:

Cuidado! Pai!

O que foi? — assustou-se Abraão.

A ponte não está lá… Para, pai!

«A 200 metros vire à esquerda e entre na ponte!» — comandava impávido Celestino.

Estás parvo? É do nevoeiro! Não ouviste o que o Senhor disse? — ralhou Abraão, abrandando.

E tu não viste as placas? Para!

Arre, que é chato! Queres saber mais do que o Senhor?

Para, já! — gritou o miúdo, muito mais alto do que alguma vez gritara com o pai.

Abraão parou. Através da neblina matinal, nada de anormal parecia haver com a ponte. Saíram do carro e aproximaram-se do que devia ser a balaustrada. Afinal, era só um resto. Antes, uma grande placa horizontal, derrubada por algum carro por sobre uns blocos de cimento esbranquiçado pela geada, avisava: “Ponte destruída. Utilize a variante de Leceia”. Aproximaram-se mais. Lá em baixo a água rosnava irada e inquietante.

Tás a ver pai, eu não te disse? Havia placas de perigo desde lá atrás.

Mas o Senhor…

O GPS? É uma máquina, pai! Nem sequer está online. E há quanto tempo não o atualizas? Queres que eu te ensine a tirar isso da net?

Está atualizado — resmungou Abraão, desconfortável. — Tem-me dado bons conselhos. Confio mais no Celestino, como lhe chamas, do que nos mapas.

Ia-nos tramando de vez...

«Vire à esquerda e entre na ponte!» — continuava Celestino.

Ajustado o itinerário e ultrapassado o conflito motivado pelas condições rodoviárias, pai e filho seguiram o seu destino, sob o conselho sábio de Celestino:

«O abate deve ser rápido e a sangria total, conforme o procedimento ritual». Abraão atrapalhou-se, mas Isaac não pareceu aperceber-se. Ia entretido com o seu próprio smartphone, mas atento a se o pai não se enganava no caminho.

Em menos de meia hora, passaram a Malveira da Serra e chegaram à Peninha. O tempo continuava encoberto, mas já se avistavam pedaços da costa e do Cabo da Roca. Abraão pegou na mochila e na saca de lenha e chamou Isaac. Sobre uma rocha que culminava um esporão do barrocal, e depois de uns gestos rituais que aprendera, Abraão dispôs os cavacos sobre as acendalhas e começou a acender o lume.

Pai, o que estás a fazer? Uma fogueira aqui, sem a mãe, à hora do pequeno almoço... E o entrecosto? O que se passa contigo? — disparou Isaac, apreensivo.

É um sacrifício, uma ordem do Senhor. Não posso desobedecer.

Pai, foste outra vez aos saca-dízimos?

Não, rapaz, foi o Senhor mesmo que me disse para te imolar — anunciou Abraão em voz grave, enquanto tirava a faca da mochila.

Embora aterrorizado, Isaac acionou as três teclas de emergência-criança do seu smartphone, que ele sabia que enviavam um pedido de socorro e as coordenadas do aparelho.

Vais-me matar? O teu filho? — choramingou.

Tu não és meu filho. Basta olhar para essas melenas vermelhas!

Em estupefação, Isaac hesitava entre tentar fugir e argumentar. Nesse momento, o seu telemóvel começou a vibrar. Abraão arrancou-lho das mãos e atirou-o para a ribanceira de penedos.

Isaac nunca tinha visto o pai assim. Virou-se para fugir, mas a manápula do pai agarrou-o.

Larga-me, pai! Larga-me!

Já disse que não sou teu pai. Tá quieto! Eu tenho de oferecer este sacrifício ao Senhor, para que eu encontre graça diante d’Ele, me proteja e me torne feliz.

Tás louco, pai. HELP! Que conversa é essa? Essa voz do telemóvel são só gravações. Não é nenhum sábio, nenhum deus — gritava Isaac, tentando ganhar tempo como única saída do labirinto do medo. — Os primitivos é que sacrificavam animais e pessoas. Pensavam que assim tinham mais caça ou colheitas. Estamos no século XXI, pai!

Não quero ouvir mais tretas desta sociedade que não respeita os valores da tradição e da família — ripostou Abraão, enquanto arrastava o filho para junto da fogueira que já ardia bem. Tolheu-lhe os movimentos e dobrou-lhe o pescoço sobre a parte mais lisa da pedra.

Nesse momento, ouviu-se o sibilar característico de um drone, que deu uma volta larga, mas rápida, sobre os penhascos da Peninha. Era de tipo octogonal, tinha envergadura de um metro e apresentava câmaras e vários outros instrumentos apontados para baixo. Um altifalante berrou:

«Largue a criança. Já!»

Abraão não esperava esta interferência. Tentou prosseguir. O altifalante do drone, que agora pairava a uns quinze metros sobre o grupo, voltou à carga:

«Pare já ou disparamos!»

Larga-me, pai! Cuidado! Eles disparam! — gritou Isaac.

Abraão levantou a faca, mas, antes de desferir o golpe fatal no pescoço de Isaac, foi atingido por um dardo junto à clavícula. O efeito do entorpecente foi imediato. Deixou cair a faca, oscilou uns segundos e afundou-se no chão pedregoso. Isaac afastou-se do volume do pai, aliviado, mas meio confuso. Chegou-se à beira do rochedo e espreitou lá para baixo, tentando localizar o smartphone. Quinze minutos depois, chegou a Polícia e o Socorro médico. Duas estações televisivas de atualidade criminal chegaram logo a seguir.


Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 104 a 107 — a 18ª edição (novembro/dezembro de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_18__edi__o


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Imagem: Javier López Molano, Sacrifício de Isaac, 2011.

Saatchi Art

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