Mostrar mensagens com a etiqueta natal. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta natal. Mostrar todas as mensagens

10/05/2021

A insuspeita sensualidade da massa

 


A razão porque os homens não são vistos mais vezes na cozinha a preparar rissóis, pastéis de massa tenra, filhós, pizas, folhados é, provavelmente, porque ainda não descobriram as virtualidades sensuais da manipulação das massas.


Roberto não acolheu com muito entusiasmo a determinação da mulher de que nesse ano iriam passar o Natal com os pais dela, numa aldeia perdida das Beiras, mas um par de horas antes do almoço de dia 24 já estavam junto da mãe de Vanda a vê-la amassar as filhós.

Juntava o fermento dissolvido em água morna à farinha peneirada, que formava um grande monte a um lado da masseira, e ia misturando pouco a pouco o azeite morno e as três dúzias de ovos batidos. Quando a massa parecia muito lassa, juntava mais umas mancheias de farinha; se começava a ficar pesada e difícil de manipular, acrescentava mais líquidos ― ovos, azeite, sumo de laranja, aguardente. Por fim, vinho do Porto.

Dona Rosália metia os punhos fechados dentro da massa, com energia, ora um ora outro, pegava numa ponta esparramada de um lado e dobrava-a por cima do resto, voltava a empurrar e a esmurrar, voltava a repuxar pontas para o meio, num sovar diligente e enérgico.

Os seios fartos dançavam-lhe por dentro das roupas grossas, cobertas pela eterna bata de florinhas, num ondear marcado pelas marés da massa a que Roberto não era indiferente.

A operação parecia uma luta deleitosa, sem fim nem propósito utilitário, mas aos poucos a pasta lisa, carnal e maleável como barriga de mulher, ia crescendo a um lado da masseira. Mais um pouco de azeite sobre aquela nudez macia recordou-o de um jogo erótico com a mulher, que uns anos antes acrescentara um pico de excitação ao momento.

«Havemos de experimentar com ovos batidos…», decidiu, sugestionado.

Por fim, misturados todos os ingredientes nas quantidades intuídas, o bolo, polvilhado com uma última capa de farinha, rotundo, alvo e sensual como nádega de mulher, foi acomodado a um lado por Dona Rosália, coberto com panos e um cobertor, para manter a tepidez necessária para a massa levedar. Por baixo da masseira, uma braseira acesa.

A irmã de Vanda e o marido só chegaram depois de almoço. Roberto gostava deles, por razões diversas: Miguel era um companheirão, sempre disponível para uma piada picante; Cláudia, um doce.

Ao fim da tarde, com a massa das filhós quase a transbordar da masseira, reuniram-se todos na cozinha velha ― um espaço que mantinha uma lareira antiga semicoberta por uma chaminé de grande tiragem. Na pedra do lar, vários cavacos acesos a aquecer uma caldeira de cobre, meia de óleo, sobre uma trempe.

Curioso por experimentar, Roberto ofereceu-se para tender as filhós. Sentado num banquinho baixo perto da caldeira, com uma tábua de cozinha sobre os joelhos, separava um punhado de massa, de um alguidar para onde tinha sido transferida, rolava-o nas mãos a formar uma bola e esticava-o com os dedos sobre a tábua até conseguir obter um círculo de uma grossura uniforme de menos de um dedo e um palmo de largura. Então, com uma serrilha, aplicava ao interior uns cortes em ziguezague, para uma fritura eficaz, como era tradição, e largava a filhó suavemente no óleo fervente.

Do outro lado do alguidar, a cunhada também tendia. Miguel com um espeto geria a fritura e tirava do óleo as filhós já fritas. Vanda distribuía-as por cestinhos e caixas, enquanto Dona Rosália as polvilhava com açúcar e mantinha as crianças longe do lume e do óleo quente, deixando-as também pôr o açúcar. O Senhor José, o patriarca, ia administrando o fluxo de lenha, para manter uma chama contínua, mas não excessiva.

O primeiro contacto de Roberto com a massa foi uma surpresa. Não estava habituado àquela deliquescência oleosa e a sensação de mãos sujas retraiu-o. A maleabilidade sugestiva foi a primeira sensação estimulante. Depois, a textura e a densidade carnais tomaram conta dos seus sentidos. A massa macia e moldável transmitia às terminações nervosas das suas mãos sensações de grande carga sensual. A ilusão de tocar e manipular partes de um corpo feminino era muito real e perturbadora. Como bola, a massa dava a ilusão de seio, macio e deformável; como superfície, lembrava pescoço, barriga, interior de coxa. Os sentidos sabiam-se enganados, mas rejubilavam, alucinados.

Enquanto manipulava a bola de massa entre as mãos, permitiu-se imaginar que metia as mãos por dentro das roupas da cunhada, ali mesmo ao lado, e tocava, agarrava, apertava-lhe os seios, fiado na incapacidade de ela e os circunstantes lerem o pensamento. Esta impunidade furtiva acrescentava um patamar de excitação ao seu desatino. Alguma coisa no seu corpo se inteiriçou. Felizmente, a tábua de estender as filhós protegia-o de maiores embaraços.

As pessoas não conseguem ler os pensamentos umas das outras, mas estão muito habituadas a ler os pequenos sinais da linguagem corporal. Talvez o cunhado de Roberto lhe tivesse notado a respiração mais apressada ou algum esgar mais libidinoso no rosto, ou talvez já conhecesse as delícias da manipulação da massa. Ao vê-lo entretido com a bola de massa entre mãos, provocou, irónico e risonho:

Essas são boas, mas eu gosto mais das outras!

Roberto sentiu que fora descoberto e temeu corar, mas logo resolveu assumir:

Claro, as outras é que enchem a alma. Mas mais vale uma destas nas mãos que duas das outras... na caixa… ― concluiu, rindo.

Todos pareceram perceber e riram animadamente, exceto as crianças, sempre atentas:

Eu também quero das outras ― clamaram ambas.

Ah, vocês querem das outras filhós com aguardente? Ainda não têm idade ― trapaceou Dona Rosália. ― Mas arranjo-vos algumas com canela.

Estava lançada a brincadeira brejeira. Pouco depois, Cláudia, com uma expressão maliciosa, produzia com a massa um rolo, em vez de uma bola. As chalaças marotas não se fizeram esperar, a que não faltou a clássica demonstração da flacidez, sempre risível, que a massa ilustrava na perfeição.

Esta não vai lá, nem que lhe faça umas festinhas ― gracejava, enquanto elevava e exibia a evidente “disfunção erétil crónica” do pedaço cilíndrico de massa.

Então, meninos! Hoje é noite de Natal… ― reclamava a matriarca, pouco à-vontade com tanta brejeirice à frente dos genros e das crianças.

Mas o ambiente era de pândega descontraída. Roberto prosseguiu, sugerindo carícias preliminares, ao estender as filhós. A frequente necessidade de abrandar a massa, molhando as pontas dos dedos em azeite, acrescentava realismo às manobras lascivas. Em crescendo, encontrou relações sugestivas entre os cortes da serrilha e alguns aspetos da anatomia íntima feminina:

Esta tem os lábios em ziguezague. Se calhar, dá dentadas. Agora, morde; agora grita! Agora, morde; agora grita... ― ria, visivelmente divertido, espicaçando o cunhado.

Mostra, tio, mostra! ― pediam as crianças, curiosas.

Roberto correspondeu, mimando uma bocarra, com a filhó aberta a meio:

Fujam, que esta é das famintas e vai-vos comer!

Miguel, entretanto, aceitou o repto malicioso de há pouco, retirando da caldeira uma filhó suspensa do espeto pela “anatomia íntima”.

Esta até ficou tesa, quando viu um espeto de meio metro!

A brincadeira e a correspondente risota prosseguiram até que a massa no alguidar se esgotou. Era altura de lavar e arrumar tudo e de saborear as filhós com calma. Estavam divinais!

Depois do bacalhau e das couves do jantar, foram ver a fogueira ao largo da igreja e voltaram para distribuir as prendas, pois já ninguém aguentava as crianças. Antes do deitar, aconchegaram o estômago com mais umas filhós e uns copinhos de jeropiga. Era um remate perfeito.

O patriarca da família estava intimamente feliz. Não era todos os anos que conseguia ter toda a família junta. Já deitado, percebeu gemidos abafados vindos de dois pontos distintos do casarão familiar. Música para os seus ouvidos. Chegou-se a Dona Rosália, amoroso, insinuante, atiçado.

O que é que te deu hoje, Zé? ― fingiu reclamar ela.

Acho que é das filhós! ― sussurrou vaidoso, mentindo com toda a sonsice que a ocasião exigia. ― As tuas são as melhores ― acrescentou, fazendo deslizar os dedos ávidos pelas sinuosidades da massa que tão bem conhecia, pronta a ser amassada.


Joaquim Bispo

*

Imagem: Moniz Pereira (1920–1989) [pintor; cenógrafo na RTP], [Título ainda não encontrado], 1980.

Sindicato dos Trabalhadores das Telecomunicações, Lisboa.

*

Este conto integra a coletânea Boas Festas — Antologia de Natal, Silkskin Editora, Lisboa, 2015, coordenada por Isidro Sousa [falecido há poucos meses].

* * *

10/12/2018

— Natal é todo o ano!



Todo o ano? Qual Natal, pai, o dos nascimentos ou o das prendas?
O nosso, que não fazemos outra coisa senão presépios, anjinhos e outras figurinhas alusivas, em barro.
Estas meias-pinhas não têm muito que ver com o Natal…
Meias, não, Tiago. As metades de baixo que estás a moldar… Pressiona bem esse barro no molde, para não ficar com falhas! Dizia eu, as tuas metades mais as de cima, ali da tua mãe, unidas e retocadas por mim, fazem pinhas inteirinhas e, depois de irem ao forno, ficam bem pitorescas.
Hum!
É uma peça de preço acessível, para oferecer como gentileza nesta época. Não é um presente de marido para mulher ou de avô para neto, mas é uma boa ideia para oferecer entre colegas de trabalho, ou entre amigas. Como sabes, há até empresas que as compram às dezenas para acompanhar outras prendas aos empregados.
Sim, eu sei, não é a primeira vez que venho ajudar; mas o que é que têm que ver com o Natal?
Tiago, o Natal reteve muitas das práticas das festas pagãs dos antigos, para festejar o solstício do inverno. Mantém uma grande ligação ao campo, à floresta. E pinha lembra floresta. Não é, Teresa?
Com certeza. E fogo. Sequinha, é a melhor acendalha que há. Nas aldeias, ainda hoje se acendem grandes madeiros, no adro da igreja. Já viste, lá na Amieira, o povo todo à volta da fogueira na noite de Natal! Pinha, fogueira e Natal andam associados.
E essas bolinhas?
Azevinho. Algumas pessoas também ornamentam as casas com ele, quer as ombreiras das portas, quer as lareiras e as mesas. Estas bagas, que hão de ser pintadas de vermelho, e estas folhas, aqui em cima da pinha, são de azevinho.
Salvo seja, mãe!
Olha que não estão nada más! Zé, tens aqui mais seis.
Aonde é que vamos passar o Natal, este ano?
Então, vamos à Amieira! O ano passado foram os tios que vieram cá…
À Amieira?! Ganda seca! Porque é que não vamos Algarve?
O Natal é a festa da família, Tiago. Se não estivermos reunidos nesta altura, só nos vemos nos enterros.
Tiago, esvazia bem essa metade! Se o barro ficar muito grosso, estala na cozedura.
Fogo! Os tios só me oferecem livros com histórias que não interessam nem ao Menino Jesus.
Se calhar não te fazia mal nenhum lê-los, em vez de estares sempre agarrado à consola de jogos.
Bela consola, esta! Estou todo consolado! Já deito pinhas pelos olhos!
Tiago Manuel! Não menosprezes este trabalho. Cada uma rende pouco, mas se vendermos seiscentas, como no ano passado… Dão mais do que meia dúzia de presépios como aquele ali, que já me leva uns cinco dias de trabalho. Ali, debaixo daquele pano húmido! A propósito, lembras-te de a tua mãe dizer que não era muito lógico o pastor, que vai oferecer o seu presente ao Menino, levar uma lebre no braço?
Sim, até apostaste com ela um lanche na pastelaria. As apostas forretas do costume! O que é que tu dizias, mãe?
Que fazia mais sentido ser um cabrito ou um borrego. Se é um pastor…
Pois! Mas o que me parecia ver na estampa da Adoração dos pastores era uma lebre. No domingo de tarde, enquanto estavas para o cinema, eu e a tua mãe fomos de propósito ao Museu de Arte Antiga tirar as teimas. Perdi! Sempre me tinha parecido uma lebre. Realmente, ver o quadro do Gregório Lopes, ali mesmo à nossa frente, é outra coisa! Fiquei convencido de que é um cabrito. Mas deve ser de uma raça que agora não é vulgar.
Não ganhei grande coisa nessa aposta. Se fosse o Euromilhões! Zé, o que é que tu gostavas que eu te desse, agora no Natal, se me tivesse saído muito dinheiro?
Uma autocaravana.
Assim, levas uma camisola, oh-oh!
Eu quero uma viola elétrica.
Para quê? Tu não sabes tocar!
Como é que eu posso aprender? A ver telediscos?
Já tens uma acústica, de madeira.
E toco! Mas a música agora tem de ter amplificação e encher o espaço.
Era só o que nos faltava — barulheira. Eu gosto pouco de barulho.
Então um leitor de mp4. Com auscultadores.
O que é que achas, Teresa?
Eu não me importo. Só tenho medo que ele fique surdo como o filho do vizinho. Andava sempre com aquilo nos ouvidos; nem dava por ninguém. E ao teu irmão, o que é que havemos de dar?
Isso é que é mais difícil! Ele já tem tudo. Também não lhe vamos dar uma moto de água, para andar na barragem, que é só no que ele fala agora!
Tem de ser uma coisa boa!
Mesmo que ele já tenha, mãe?
Uma camisola faz sempre falta. Mas das boas, que lá o frio até corta. Fancaria é que não. Como uns brincos de pechisbeque que o teu pai me deu uma vez.
Gostaste deles, confessa!
Eh! Estávamos casados só há um ano. Não ia dizer que não gostava ou que não queria. Estão para ali... Passa-me essa espátula, Tiago!
Já estou cansado…
E se fizéssemos uma pausa para lanchar, Zé?
Sabem o que me apetecia agora, com esta conversa? Uma filhó.
Ainda bem que falas nisso. Este ano, estamos a atrasar-nos. A ver se amanhã vou comprar farinha. No sábado que vem, amasso-as, e à noite fritamo-las.
Eu viro-as.
E eu espalho o açúcar por cima, posso?
Vai parecer o presépio.
Falta o burro e a vaca. Não querem convidar os vizinhos do rés-do-chão?
Tiago Manuel!
Tiago Manuel…

Joaquim Bispo
*
Imagem: Gregório Lopes, Adoração dos pastores, 1541.
Museu Nacional de Arte Antiga — Lisboa.

* * *


10/12/2015

Colo


Deolinda obrigava-se a sair de casa, nem que fosse para comprar um pacotinho de biscoitos ou mais uma lata de ervilhas, de que não precisava para já. Estava reformada havia quatro anos e aborrecia-se em casa. Talvez inconscientemente, fracionava as tarefas no exterior, em vez de as aviar todas de uma vez, de modo a ter pretextos para sair de casa. Ia ao centro da Póvoa comprar fruta ― umas boas centenas de metros ―, ainda que tivesse um minimercado do outro lado da rua. Era uma maneira de pôr em prática a caminhada que o médico recomendava, além de aproveitar para espreitar umas montras e, sobretudo, ver gente. O regresso, a subir, tornava-se um pouco penoso, sobretudo se exagerava no peso.
Falava a todas as vizinhas, mas demasiada proximidade incomodava-a, de modo que não frequentava a casa de nenhuma, nem convidava ninguém para a sua. Encontrava umas com os netos, outras a passear os cães. Rejubilava sinceramente com os progressos das crianças, cada uma já com personalidade própria, desde pequenas. À baila vinham sempre as queixas das descuidadas noras ou dos cabeças-no-ar dos filhos, mas sempre lhe parecia que todos os trabalhos que os netos exigiam eram largamente compensados pela alegria de os mostrarem e se envaidecerem com o êxito dessa exibição. A ela restava esperar ― já que o filho casara havia meses ―, mas também desesperar, porque ele e a jovem mulher tinham ido viver para os Estados Unidos.
Duas ou três vizinhas ― todas viúvas, como ela, por sinal ― enganavam a solidão com a companhia de um cão, mesmo que também recebessem a visita esporádica dos netos.
A Dona Ludovina “herdara” o cão do marido. Ele é que gostava de animais e durante anos passeou um caniche preto. Um dia o dono não acordou e ela assumiu a responsabilidade do bicho, que, coitado, durante meses, em vez da azáfama habitual na espécie de cheirar e marcar território no passeio, manteve uma atenção angustiada a todos os homens com que se cruzava, na expectativa de reencontrar o dono. A exigência de tratar do animal e de o levar à rua três vezes por dia ajudaram-na, possivelmente, a seguir em frente na nova condição de viúva.
Outra passeadora de cão ― a Dona Clara ―, viúva há mais de vinte anos, executava apenas a rígida rotina de casa–trabalho–casa, cinco dias por semana, desde que o filho casou e saiu de casa. Mulher austera, amiga do rigor e da franqueza, tornou-se ainda mais antipática quando se reformou. Era uma administradora do prédio eficiente, que não descuidava reparações e limpeza, mas condómino que se atrasasse no pagamento da respetiva comparticipação podia estar certo de ouvir um remoque. O filho, percebendo talvez o problema, ofereceu-lhe um pequeno cão de pelo curto, tipo podengo. Foi remédio santo. A exigência de levar o bicho à rua, o incontornável contacto com outros passeadores de cães e, certamente, o adoçamento que um animal de companhia traz a um ser humano transformaram-na, visivelmente. O “bicho de mato” que tinha sido transmutou-se numa pessoa que se permitia ficar no passeio a conversar com outras, a rir até, revelando uma simpatia simples, desconhecida nela, até então.
Foi Dona Clara que primeiro lhe sugeriu um cão para companhia. Deolinda, porém, não se via a ficar dependente de um animal, a ter de o levar à rua, quando lhe apetecia ficar simplesmente a ler ou a ver televisão. E depois o cheiro! Ela até gostava de animais, pois fora criada na província, com pai caçador, mas em sua casa sempre os cães tinham sido confinados ao amplo quintal. Todas as casas que conhecia com cães tinham um indisfarçável cheiro a covil.
Durante algum tempo, depois de se reformar, Deolinda ainda manteve contacto com as antigas colegas. Uma vez por mês, em média, saía com uma das outras reformadas e, de longe em longe, acedia ao convite de um almoço conjunto. Infelizmente, duas delas morreram e o grupo acabou por espaçar cada vez mais os encontros.
Chegou a inscrever-se na universidade sénior, para manter algum fluxo de aquisição de saber, mas desiludiu-se. O mulherio parece que só lá ia pela conversa e mantinha um zunzum no ar durante as aulas, quando não chegava a atender telemóveis. Assim, não! Preferia ficar em casa a ler.
Lia muito, tanto que as estantes de casa estavam a abarrotar, mesmo depois de levar caixas com livros para a terra. Começou a frequentar a biblioteca municipal, que era uma alternativa quase perfeita. Tinha um acervo extenso e variado, tanto de diversos livros recentes, como dos clássicos, que muitas livrarias se abstêm de ter.
Nas últimas férias ― se se pode falar de férias em relação a uma reformada ―, além de uma semana na terra, tentou umas surtidas às praias de Lisboa, mas a confusão que tais multidões causavam, incomodavam-na, sem falar das angustiantes filas do trânsito no regresso. Nos anos anteriores ainda passara uns dias numa praia sossegada, com o filho, mas agora...
Fazia-lhe falta a proximidade do filho. Estava muito constrangida pela perspetiva de passar o Natal sozinha. Era o primeiro Natal sem ninguém. O marido morrera havia oito anos e agora também o filho se afastara. As férias, enfim, mas o Natal! Onde o passar? Como? Com quem?
Em cima da data, resolveu passá-lo na terra ― uma aldeia do interior beirão. Em vez de levar o carro, preferiu meter-se num autocarro Expresso e ir tranquilamente sentada a ver a paisagem e a recordar os tempos de faculdade, quando ia à terra todos os quinze dias. Sentia-se um pouco triste e resolvera aceitar esse estado de espírito, interiorizando-o e cultivando-o com recordações dos tempos felizes. Por isso decidira passar o Natal na terra.
A casa que ali mantinha, e aonde ia umas três ou quatro vezes por ano, pareceu-lhe mais silenciosa que habitualmente. Arejou-a, varreu-a e deu-lhe uma arrumadela. Cada móvel, cada divisão, traziam-lhe à memória um episódio conjugal, uma piada do filho. Fez um chá, comeu umas tostas com compota e deitou-se. A cama parecia molhada, de tão fria. Embrulhou os pés num xaile velho e demorou ainda um bom bocado a adormecer.
O dia seguinte, véspera de Natal, amanheceu escuro e frio. Deolinda foi à mercearia comprar leite, pão e umas coisas para o jantar. O almoço foi frugal e saiu a seguir, para tomar um descafeinado. Não encontrou ninguém conhecido, só gente nova. Em tempos, não dava um passo sem encontrar alguém de família.
Voltou para casa, sem saber como ocupar o tempo. Se calhar, não tinha sido boa ideia vir este ano à terra! Deambulou pelas divisões silenciosas, a olhar as fotografias cinzentas: aqui, jovem, com o marido, no casamento de um primo; ali sorridente com “os seus homens”, numa visita a Cáceres; mais além, o pai aprumado numa farda do tempo da tropa.
Lá fora, começara a cair uma chuvinha miúda. Deolinda ficou um bocado a olhar a rua vazia e a ver as gotículas de chuva a formarem pequenos veios na vidraça. Assim eram os seus dias a escorrerem, não sabia para onde.
Cozeu umas batatas com grelos e uma posta de corvina. Há dez, quinze anos, teria feito também uma boa sopa de feijão com hortaliça, uma perna de borrego e umas rabanadas. Agora, tudo lhe fazia mal. Comeu o peixe com pouca vontade. Não lhe sabia a nada. Deixou metade da posta.
Acendeu o lume na lareira da cozinha e sentou-se a olhar as línguas das chamas que consumiam mansamente os cavacos com que as ia alimentando. Assim a sua vida se ia consumindo, placidamente, sem dramas, sem objetivo. Aguentou-se por ali a cabecear, a fazer horas para a missa do galo.
Junto ao adro, o cheiro a madeira queimada, tão familiar, fê-la lembrar-se dos antigos natais, quando ir conviver e aquecer-se junto à fogueira de Natal era uma festa. Passou pelo bando de rapazes que, indiferentes à chuva miudinha e gelada, mantinham uma algazarra regada a vinho, junto aos madeiros em chamas, entrou na igreja, logo reconhecida, e sentou-se junto à coxia.
Lá estavam, parados no tempo, os santos da sua meninice ― Santo António, a Senhora das Dores, São Sebastião, o Coração de Jesus. Durante toda a missa foi recordando alguns episódios ligados a esta igreja da sua terra ― o crisma, o casamento da tia Matilde, o batizado do primeiro sobrinho, um dos primeiros afogueamentos, quando reparou que um rapaz mais velho olhava para ela de uma forma especial.
Quando o celebrante levantou a hóstia, Deolinda sentiu-se muito desamparada. Intimamente, implorou:
«Sejas Tu quem fores, ajuda-me; ajuda-me, por favor!»
A missa acabou. Deolinda ficou ainda um pouco, ajoelhada, em recolhimento. Aproveitando a porta aberta pelas pessoas que iam saindo, entrou na igreja um gatinho ainda pequeno, molhado e enregelado, a abrigar-se do tempo hostil. Era malhado de preto e branco, parecia confuso e miava debilmente, entre o receio e o queixume. Foi caminhando pela coxia central, enquanto o seu miado se tornava mais suplicante, sobressaindo por cima da vozearia lá de fora. Deolinda ouviu-o, mas, muito imersa no seu espírito, demorou a surpreender-se. Quando olhou, o gatinho parara a olhar para ela e a miar. Deolinda ficou paralisada a olhar para aqueles olhos azulados e vítreos, como se lhe custasse a perceber o que via. Depois, pegando no gatinho, aconchegou-o contra o peito, por dentro do sobretudo, e desatou a soluçar convulsivamente. As lágrimas rebentaram incontroladamente, como se estivessem há muito represadas.
Pouco depois, o gatinho, confortado pelo calor do corpo de Deolinda, começou a ronronar. Deolinda olhou em volta. Cristo crucificado estava desfalecido no seu martírio, a Senhora das Dores e São Sebastião olhavam os céus. Deu com os olhos nos olhos do Menino Jesus, que estava ao colo de Santo António e sorria. Pareceu-lhe que afastou o olhar, quando ela o fixou, e que a olhava, se ela desviava o olhar.
Entretanto, alguém tocou no braço de Deolinda:
Então, vizinha, deixe lá as tristezas, que hoje já é dia de Natal. Venha comigo, que eu também vou para os seus lados.
Lá foi Deolinda, sem ouvir a conversa da vizinha, com o gatinho junto ao peito, tão apaziguada como nos dias felizes, tão realizada como quando regressara a casa com o seu filho acabado de nascer, ao colo.

Joaquim Bispo

* * *

(Este conto obteve um 7º lugar no Concurso de Contos e Crónicas da Universidade Metodista de Piracicaba, em 2011, e foi publicado, em versão mais pequena, no número 24 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2010, com o título “O Natal de Josefa”.)

* * *