10/08/2020

Querida mãezinha!


Compreendo quem se lamenta da sua triste sina e não para de tecer teorias da conspiração sobre a própria sogra, embora eu não tenha razões de queixa. Mal vejo a minha.
É claro que antes sofri muito. Nos primeiros meses de casado, perdi dez quilos. Dormia mal, tinha pesadelos em que era atacado por matronas rotundas armadas de panelões de feijoada, que tocavam à porta às seis da manhã e me lambuzavam a cara de batom encarnado. Fiz terapia, voltei a frequentar a igreja, mas só o estudo me salvou — um mestrado em Estudos Militares.
Uma das disciplinas parecia delineada especialmente para o meu caso: “Como evitar dar o flanco e recuperar a iniciativa”. Textos obrigatórios: os de Maquiavel e A Arte da Guerra de Sun Tzu. Percebi rapidamente que qualquer dos autores transmite ensinamentos muito úteis para a sobrevivência de um genro, bastando substituir, em qualquer dos aforismos, a palavra “inimigo” por “sogra”. Vejamos alguns exemplos de A Arte da Guerra:
O guerreiro superior ataca enquanto o inimigo está projetando os seus planos.” Isto é, quando perceberes que a tua sogra está a pensar ir lá a casa mostrar os álbuns de fotografias das férias, deves ligar-lhe anunciando quão pesaroso ficas por não poderes recebê-la, porque vais em serviço para a Austrália.
Sê completamente misterioso e confidencial, até ao ponto de seres silencioso.” Isto é, não dês qualquer pista à tua sogra sobre os teus passos, os teus trabalhos, os teus horários. Responde com evasivas, de modo que nada lhe permita saber onde estás, seguir-te, espiar-te. Se fores encurralado, finge que perdeste a voz ou transmite informações falsas, e assim “o adversário não pode combater contigo porque lhe dás uma falsa pista.”
Suspeito que A Arte da Guerra tenha sido escrito como estudo prévio para um projeto mais grandioso sob o tema: “Táticas para sobreviver à própria sogra”. Infelizmente, essa obra não chegou até nós, talvez por algum equívoco estratégico. As sogras não brincam. No entanto, um outro preceito revelou-se inestimável:
Faz algo por ele, para lhe captares a atenção, de maneira que possas atraí-lo, descobrir os seus hábitos de comportamento, de ataque e de defesa.” Isto é, se quiseres viver em paz, procura conhecer a tua sogra, como costuma atacar, o que pode desencorajar esses ataques; mantém-na constantemente sob vigilância e faz com que ela confie em ti.
Um dos grandes problemas das sogras é sentirem-se isoladas e inúteis. Arranja-lhe atividades que a entretenham: apresenta-a a um grupo de canasta; inscreve-a em grupos excursionistas; matricula-a em aulas de danças de salão; convence-a a ser escritora e a enviar textos para concursos literários. Se, mesmo assim, lhe sobrar tempo para azucrinar a tua vida, interessa-a em projetos relevantes de grande fôlego, daqueles que ocupam uma vida inteira: acabar com a fome no mundo, descobrir a cura da estupidez; encontrar um sistema político sem governantes corruptos. É praticamente impossível? Eu sei — é essa a ideia.
Felizmente, após muitas diligências pouco frutuosas, encontrei a solução, o que me trouxe, outra vez, calma e esperança no futuro: inscrevi-a em vários sites de corações solitários, com o nome “Gostosa carente”. Quando eu já desesperava e acreditava que o coração dela estava irremediavelmente empedernido, apaixonou-se por um idoso folgazão, e já não quer saber da filha nem do genro para nada. Anda alegre como um passarinho.
Agora, fiquem bem, que tenho uma genuína gostosa à minha espera, para uma batalha sem quartel, sem medo de sermos interrompidos por invasões de panelões de feijoada.

Joaquim Bispo

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Esta crónica foi uma das 50 selecionadas para compor o e-book “Crónicas humorísticas” do coletivo Covil da Discórdia:
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Esta crónica foi também selecionada para a 20ª edição (março/abril de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book, que integra — páginas 109 a 110.
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Imagem: James Whistler, Retrato da mãe do artista [Whistler's Mother], 1871.
Museu de Orsay, Paris.

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