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10/04/2024

O Apocalipse de Atouguia

 


Atouguia era uma sibila neandertal que vivia na zona mais ocidental da atual Península Ibérica, 29 mil anos antes do presente. A sua vivência simples de recoletora, adaptada às condições climáticas de então, foi certo dia marcada pelo terror de um feroz ataque de esguios e sanguinários invasores. Fugiu, escondeu-se numa loca rochosa, ouviu os gritos desesperados dos seus irmãos. Assistiu em agonia à morte de todos os membros do seu clã, que, depois de esquartejados pelas lâminas de sílex dos atacantes, foram comidos, numa orgia de sangue e ferocidade, que durou vários dias. Obrigada pela fome a tentar escapar, foi descoberta, apanhada e tornada alvo da turba cro-magnon. Violada repetidamente em festim da carne viva, acabou por ser poupada, não devido à alvura da pele da sua raça, mas à intensidade rubra dos cabelos. Os recém-chegados passaram a ser os seus donos e os novos senhores do seu mundo esfacelado. Tornou-se mãe de uma criança mista, calada e estranha.

A sua cria ainda durou quatro anos, mas, mais frágil do que as da sua antiga tribo, acabou por morrer aninhada nos seus braços. Atouguia sepultou-a na reentrância de uma falésia calcária, na zona do Lapedo, com alguns mimos de conchas e ossos pintados de ocre e, entre os joelhos, um coelho acabado de sacrificar. Depois, enlouquecida de dor e desesperança, retirou-se para um monte chamado Berlenga e pôs-se a profetizar desgraças para os seus captores e para a mãe Terra, em grandes lamentos que lhe eram revelados — dizia. Este é o rol das suas visões:


1 — Sentada no mais alto dos penedos da Berlenga e embrenhada na minha dor, lastimava a lonjura infinita do mar, quando ouvi uma voz potente atrás de mim. Voltei-me mas só vi uma névoa que parecia o meu pai. Ele falou lenta, mas profundamente, em frases cortadas por silêncios:

2 — Eu vejo o mal que vai assolar o mundo. Vejo turbas em fúria, vejo grandes tribos ser dizimadas, vejo a mãe Terra negar o alimento aos famintos. Aqueles que agora se banqueteiam com as nossas carnes amargarão a crueza da sua violência. Esta Terra que foi sempre mãe solícita e generosa, vai negar-lhes o úbere.

3 — Durante muito tempo, andarão enganados, iludidos pela sua própria expansão. Crescerão, invadirão campos e mares, expulsarão os seres irmãos dos territórios que cobiçam. Serão tantos que a Terra será incapaz de os alimentar. Apertarão o úbere da Terra até o esmagar, mas ele não verterá uma gota.

4 — Pragas envolverão as suas aldeias e tornarão arenosas as planuras. Querendo mais comida para si, espalharão venenos para debelar as pragas que lhes roubarão um resto de sustento. Matarão assim também os insetos úteis e não haverá pólenes a passar de flor em flor. Não haverá mais frutos, nem mais árvores novas, nem mais comida para os animais.

5 — Grandes incêndios engolirão florestas e matos e não restarão animais que eles possam caçar. Quando pensarem descansar, não terão sombras em que se refrescar, o sol queimará as suas peles e não terão descanso. Doenças e maleitas corroerão as suas entranhas e vomitarão os fígados, os bofes e as tripas. Fugirão para lá dos mares, mas o panorama será igualmente desolador.

6 — Vão-se arrastar nas campinas, tentando roer as ervas esparsas, mas elas serão amargas e envenenarão os seus ventres; em vão, percorrerão as margens dos rios e do mar, em busca de vermes e bolores, mas nada haverá que lhes mate a fome, nem água sã que lhes mate a sede.

7 — Os mananciais envenenados serão aterrados e secarão. Alucinados por pestes e epidemias deitarão as culpas aos seus semelhantes e eles próprios se dizimarão. As tribos famélicas e enlouquecidas enfrentarão outras tribos e os cadáveres insepultos secarão ao sol. Nem os abutres lhes quererão arrancar qualquer pedaço das carnes venenosas.

8 — As hecatombes serão diárias. Por fim, será tão evidente a insensata vida que escolheram que muitos se arrependerão, mas será tarde. A mãe Terra será um local morto. E terá de voltar a esforçar-se sozinha para recuperar do cataclismo que esta vil espécie Lhe infligiu.

9 — Esta é a revelação feita a Atouguia, que desvela o futuro da Terra. Ouvi!


Joaquim Bispo


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Por seleção em concurso literário, este texto integra a coletânea "A Arte do Terror — Volume 6 ou Apocalipse", projeto da editora Elemental Editoração.

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Imagem: Fernand Cormon, Caim fugindo perante a maldição de Jeová, 1880.

Coleção Museu d'Orsay, Paris.

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10/07/2023

Na Praia do Osso da Baleia

 


Naquela altura, praticávamos geocaching, para tornar o exercício ciclista mais motivador. Ir à procura das caixinhas escondidas em locais aprazíveis, ou só curiosos, através da sua localização GPS, obrigava-nos a pedalar para chegar aos locais indicados no respetivo site da Internet, mas sem a carga de exercício físico obrigatório que o andar de bicicleta tinha tido até então. Isto, porque pedalávamos, quase diariamente, uma dezena de quilómetros, não tanto pelo gosto, mas para manter alguma forma física, aconselhável a um casal sexagenário.

Naqueles dias de férias, a nossa base era a Praia de Vieira de Leiria, uma localidade muito animada, em época de veraneio, mas que naquele meado de um setembro invulgarmente nebuloso, mesmo para aquelas paragens litorais, perdera parte do bulício habitual. No primeiro dia, fomos à procura de uma cache escondida junto ao parque de campismo da Praia de Pedrogão. Era um pequeno tupperware com um boneco pokemon e um caderninho minúsculo — coisa de miúdos. Assinámos: “Rolling biker 56” o meu nickname e “Fiftie Agnes” o da minha companheira Inês.

No dia seguinte, fomos para sul, para encontrar, junto ao farol de São Pedro de Moel, num buraco da falésia em que pescadores amadores se empoleiram para lançar as linhas ao mar, uma caixa de VHS com três florinhas secas e um pequeno texto: «Este farol chamado “do Penedo da Saudade” foi construído no promontório onde, segundo a lenda, a duquesa D. Juliana Máxima de Faro, dona destas terras, vinha, através destas flores chamadas “Saudades” e que só aqui crescem, relembrar o marido, mandado executar pelo rei D. João IV, por traição, no século XVII.» Assinámos também o registo, conforme a norma.

No terceiro dia, rumámos a norte, para a zona da Lagoa da Ervedeira zona bonita e ainda arborizada, felizmente poupada aos grandes incêndios de 2017. Não foi fácil encontrar a cache escondida num pinhal, uns quilómetros depois. Até aonde a vista alcançava, a paisagem, que acompanhava a ondulação arenosa do solo, era um mar lúgubre de pinheiros queimados, com os seus braços negros e nus pedindo clemência. Com eles, ardeu, provavelmente, a caixinha que procurávamos. Decidimos que só podia ser um resíduo plástico calcinado que encontrámos no local que as coordenadas GPS indicavam, junto a um tronco queimado. Como passava pouco das três da tarde, resolvemos continuar para uma cache escondida na Praia do Osso da Baleia, a uns doze quilómetros, segundo indicava o GPS.

Pedalar com um objetivo definido é bem mais fácil do que fazê-lo para cumprir um número de quilómetros vagamente combinado. Como, além disso, as autarquias dotaram toda aquela zona costeira de ciclovias ao longo das estradas principais, o nosso exercício podia ser um passeio aprazível, apesar do céu nublado; infelizmente, o aspeto desolador da paisagem acabrunhava-nos. Os pinheiros, já de si retorcidos por ação dos ventos marítimos, assim reduzidos a troncos negros sugeriam formas espectrais inquietantes. Pedalávamos calados, de olhos no ecrã de GPS, lançando olhares apreensivos à multidão tétrica e torturada que nos envolvia.

Entretanto, lembrámo-nos do crime horrendo que aconteceu naquela mesma praia há uns trinta anos, em que um tipo, aparentemente normal e integrado, matou a mulher, a filha e mais cinco amigos com quem estava a confraternizar na praia. O que fará alguém enlouquecer de um momento para o outro? Que transtorno mental invadirá o cérebro de uma pessoa e a fará não reconhecer os seus próximos, ou, reconhecendo-os, odiá-los ao ponto de os matar à machadada? Ainda que incomodados com a evocação, decidimos que não havia, atualmente, nenhum motivo para evitar aquela praia e falhar o nosso objetivo.

A Praia do Osso da Baleia não tem uma povoação associada, não tem um restaurante nem um bar, nada. Pelos vistos, não passa daquela enorme extensão de areia, na altura, nevoenta, apoiada por um pequeno parque de estacionamento, então, deserto. O GPS fez-nos subir a duna baixa que nos separava da praia e caminhar uns trezentos metros para sul, mas nada havia ali, além de areia, naquela base de duna a cem metros da água. No entanto, o localizador por satélite era claro: «Chegou ao seu destino!».

Depois de uma inspeção mais atenta, descobri uma pequena ponta negra a emergir da areia. Ali comecei a escavar com o canivete suíço, que anda sempre comigo. Não tardou que embatesse em algo rígido, que retiniu. Parecia um antigo frasco de compota ou de azeitonas e estava enterrado no que poderiam ter sido os restos de uma fogueira. Olhámo-nos sem dizer nada, a apreensão no olhar.

O interior era visível e mostrava apenas o que parecia uma pequena placa óssea. Abrimos o frasco e percebemos que a placa estava esgrafitada. Consegui ler: «Nós que aqui estamos», de um lado e «por vós esperamos», do outro.

O choque destas palavras tão simples, mas tão simbólicas, que aparecem escritas em cemitérios e “alminhas” um pouco por todo o país, foi brutal. Naquele momento, por coincidência, correu uma brisa fria e pareceu-nos que o nevoeiro se adensou. A Inês recuou dois ou três passos, o olhar em pânico. Eu larguei aqueles objetos, como se queimassem, a tentar racionalizar. «Que raio! Quem teria feito uma maldade destas? Brincadeira estúpida!»

Quero ir-me embora — articulou, por fim, Inês.

Estúpidos! — resmunguei eu, enquanto pegava no braço dela e nos encaminhávamos para a estrada.

Na parte norte da praia, avistámos a vaga imagem de um grupo de seis ou sete pessoas, que pareciam sentadas e reunidas em círculo, talvez à volta do início de uma fogueira. Não as tínhamos visto ao chegar, mas aquela visão de normalidade reconfortou-nos. Ver membros da nossa espécie num local inóspito transmite-nos um sentimento de segurança, de solidariedade potencial. Passou-me pela cabeça, momentaneamente, a ideia de nos aquecermos um pouco, antes de partirmos, porque a temperatura tinha caído fortemente. Uns metros andados, pareceu-nos que olhavam para nós. Para quebrar o desconforto, acenei-lhes. Não responderam.

Quero-me ir embora! — acentuou Inês.

Tem calma!; está tudo bem — tentei eu sossegá-la, mas pouco convencido.

Nesse momento, levantaram-se dois ou três vultos e começaram a dirigir-se para nós.

Calma! Não dês a entender que tens medo — disse eu, para travar a minha parceira que apressara muito o passo.

Entretanto, calculava distâncias, apesar do nevoeiro cada vez mais cerrado. Nós estaríamos a duzentos metros da passagem da duna, mais cinquenta até às bicicletas. Eles estariam a uns trezentos metros da passagem da duna. Com passo ligeiro chegaríamos antes deles, sem problema. Além disso, não tínhamos razões para temer ameaças vindas daquelas silhuetas, embora escuras. Era só uma questão de prudência. O homem pode ser a salvação de outro homem, mas também pode ser a sua perdição. E, em locais ermos, uma pequena diferença de força ou de número pode transformar os homens em predadores brutais. Impregnados de “selva”.

Nessa altura, levantou-se vento vindo de norte. Empurrava-os a eles e travava-nos a nós. Procurei conter o pânico, mas Inês já tentava correr, sem grande êxito. Chegámos à passagem, quando os três desconhecidos, com os outros mais atrás, já pareciam demasiado próximos, mas sem conseguirmos distinguir-lhes as feições. Então, já gesticulavam e gritavam. Ou assim parecia, por causa do vento.

Corremos para as bicicletas e arrancámos, desvairados, Inês à frente e eu, sem olhar para trás, concentrado na pedalada. Durante aqueles metros iniciais de inércia da bicicleta, ouvi distintamente as pancadas dos pés deles, em corrida, mesmo atrás de mim.

Acelera, Inês — gritei, apavorado. — Se me apanharem, foge tu!

Eu sabia que lhe apetecia gritar e chorar, mas aguentou uma pedalada vigorosa, durante centenas de metros, demonstrando um sangue-frio notável. Aos poucos, para minha grande surpresa, as passadas pesadas dos nossos perseguidores deixaram de se notar. Ouvia-se só o som soprado do vento nos troncos calcinados, a abafar o ruído “textural” dos pneus no asfalto vermelho. Olhei, enfim, para trás, mas só discerni o trilho deserto da ciclovia. Talvez uma hora depois, estávamos no quarto do hotel.

Raramente voltámos a falar daquele anoitecer na Praia do Osso da Baleia. Não sabemos o que vimos ou o que pensámos que vimos. Não faço ideia do que veria, mas tenho para mim, que, se naqueles momentos iniciais da fuga me tivesse distraído um momento a olhar para trás, não estaria aqui para contar.


Joaquim Bispo


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Por seleção em concurso literário, este conto integra (páginas 112 a 114) a coletânea MIRAGE — Miscelânea de Narrativas Irreais, do projeto “Delírios” do coletivo editor Coverge, Curitiba, Brasil:


https://pt.scribd.com/document/409016246/Mirage-Miscelanea-de-Narrativas-Irreais


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Imagem: Iberê Camargo, Ciclistas, 1989.

Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, Brasil.


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10/03/2022

A final olímpica

 


Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John, de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande disputa e pai e filho tinham apoiado com saltos e urros a equipa pátria. Finalmente a América vencera. Como sempre. Com uma vantagem esmagadora: 96–66.


No sonho de Sooter, o vencedor da modalidade olímpica de Matança em Massa não é previsível. Há vários concorrentes com boas possibilidades, mas vão-se combatendo e eliminando uns aos outros. No fim, o Estado Islâmico sobrepõe-se a outros assassinos em massa e ascende a adversário dos Estados Unidos na final. A cada operação americana, o Estado Islâmico responde com a eliminação de mais uns quantos militantes curdos ou mais uns quantos aldeãos sírios.

Victor Sooter tem um papel importante na disputa: como na vida real, é controlador de drones de guerra. Como num jogo de vídeo, multiplica-se em disparos sobre alvos inimigos: um comboio de abastecimentos, uma reunião rebelde, o carro de um dirigente de milícias. Os marcadores de baixas rodam ininterruptamente. Os Estados Unidos estão em risco de não conseguir a medalha de ouro, como tinham conseguido facilmente em 2004 e 2008 contra o Iraque, e em 2012, contra a Líbia e a Síria.

O polegar direito de Sooter metralha continuamente, enquanto a mão esquerda coordena com grande perícia o sobrevoo do drone. As explosões no solo sucedem-se, o marcador dos Estados Unidos avança, mas o do Estado Islâmico parece descontrolado. Sooter faz um esforço — o esforço que a pátria espera —, toma o comando de vários drones ao mesmo tempo e metralha alucinadamente, acionando os botões de disparo em sucessão coordenada e eficaz. No solo, uma sequência ininterrupta de explosões indica-lhe que a sua missão patriótica está a ser bem sucedida. O contador de baixas roda vertiginosamente. A tensão é grande. Quem vencerá? Será preciso lançar outra vez a bomba atómica?


Horas mais tarde, na base de comando de drones, em Houston, Victor Sooter recebe ordem de pilotagem remota de um drone da base de Bagram, no Afeganistão, e ataque a uma aldeia das zonas tribais do Paquistão. A inteligência aliada tinha detetado movimentações suspeitas em área de influência rebelde. Depois de receber indicações da total operacionalidade do aparelho, confirmar o acesso a todos os comandos necessários, a qualidade das comunicações com os satélites geoestacionários e das imagens de todas as suas 16 câmaras, Sooter descolou e rumou para as coordenadas indicadas, à altitude habitual, indetetável sem aparelhagem sofisticada.

Quase hora e meia depois, sobrevoava a região montanhosa procurada, e logo o estreito planalto onde assentava a aldeia referida. Sooter confirmou, pelas imagens conjugadas, que decorria uma reunião de uma dúzia de homens adultos, dispostos em semicírculo, vestidos de claro e ostentando algo na cabeça, talvez turbantes regionais, cada um com a sua espingarda nos joelhos.

Deviam estar a preparar o ataque a uma esquadra de polícia ou a algum quartel, como habitualmente. Várias daquelas aldeias eram controladas por tribos rebeldes, responsáveis por várias ofensivas contra forças da ordem. A uma vintena de metros do grupo armado, percebia-se um ajuntamento de outros adultos e vários jovens e mulheres, vultos reconhecíveis pelas indumentárias coloridas.

Era um risco. Mesmo acertando apenas no meio do grupo armado, era possível que muitas das pessoas próximas fossem mortas ou estropiadas. De qualquer modo, não lhe competia decidir.

Meu major, foram assinalados vários civis muito perto do inimigo. Que faço?

O superior hierárquico observou as imagens, por um momento.

Esborracha essa mosquitagem toda! Quantos menos sobrarem, menos picadas depois.

Sooter posicionou o aparelho nas coordenadas adequadas e, após estabilizá-lo, movimentou lentamente o controlo do disparador. Quando o cursor se imobilizou bem a meio do grupo inimigo, fez uma verificação dos outros parâmetros e comandos. Rodou a pequena tampa do botão vermelho de disparo, destravou-o e fez o relatório final:

Tudo pronto, meu major: aparelho estabilizado, alvo enquadrado, mísseis prontos. Aguardo autorização de disparo.

Dá-lhes com tudo o que tens! — gritou o oficial.

Sooter recolheu-se por um momento. Sentiu o poder. O domínio absoluto. A vida daqueles inimigos da América completamente nas suas mãos. A certeza de ser o instrumento da justiça possível encheu-o de uma serenidade solene. Carregou no botão vermelho. A partir daquele momento, ele sabia algo terrível que os inimigos desconheciam. A morte estava a caminho e eles nem desconfiavam. Estavam mortos e não sabiam. Muitos daqueles malditos, agora tão seguros e enérgicos, daí a momentos não passariam de bocados de pasta mole e sangrenta. Não voltariam a ser empecilhos da ordem democrática que os Estados Unidos ofereciam ao mundo. Era desagradável, mas necessário; era a guerra.

Os treze segundos passavam lentamente, mas Sooter sabia o que veria dentro em pouco: os rastos instantâneos dos mísseis e logo as explosões enegrecendo a imagem. Aquele terreiro tão liso ficaria crivado de crateras. O seu olhar vagueou pelo grupo, pelo terreno, a apreciar a ilusória imagem de ordem aldeã, o passado. Pareceu-lhe reconhecer grandes letras ocidentais nos limites do terreno da reunião rebelde. Julgou ler NOT, mas as manchas do que pareciam letras confundiam-se com a restante cor do solo. Como em certos testes de daltonismo. Tentou decifrar a linha de manchas, em vão; as explosões ofuscaram a imagem de seguida.

Não pensou mais nisso. De qualquer modo, nada daquilo já interessava. Calma e eficazmente, levou o avião drone de volta à base no Afeganistão, em total segurança.

Duas horas depois, de regresso à sua vida de família, Sooter fazia a vontade ao filho e assistia ao concerto na escola em que o menino aprendia clarinete. Gostava tanto de música! Quem sabe se não seguiria essa inclinação? Viviam no país das oportunidades, onde era possível ser o que se quisesse, desde que se lutasse por isso. Era um grande país! Tinha orgulho nele.


Uns dias antes, numa aldeia remota do Paquistão, Samir, um menino de nove anos, dirigia-se para a escola, por um caminho poeirento e ia lançando olhares apreensivos para o céu. Era um brilhante aluno da escola paquistanesa. A sua irmã, três anos mais velha, não tivera esse privilégio. Fora prometida a um amigo do pai e ia casar em breve. A boda traria à aldeia vários dias de comida, bebida e dança, ao som de uma orquestra de dutares, um instrumento de cordas tradicional. Porém, sagaz como era, o menino reconheceu o perigo na forma dos instrumentos musicais, que, de longe, podiam ser confundidos com espingardas tradicionais. Na escola, pediu ao professor que lhe ensinasse certas palavras em inglês. Assim que terminou as aulas, correu para o terreiro da festa e, em grande azáfama, iniciou a grande tarefa de juntar e dispor muitas pedras a formar uma mensagem para possíveis drones americanos: DUTARS NOT GUNS [Dutares não armas].

Dias depois, decorria a reunião festiva. A refeição fora farta e saborosa; aguardava-se que a orquestra iniciasse a música para todos dançarem. Reinava a alegria, exceto para Samir que continuava a lançar uma angustiada mensagem mental aos céus, em inglês: Read my stones [Leiam as minhas pedras]!


Joaquim Bispo


Imagem: Drone americano MQ-9 Reaper. Da net.

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Este conto integra a coletânea A Arte do Terror — edição especial — História, da Elemental Editoração, 2017, pp. 61–63.

https://www.smashwords.com/books/view/758968


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10/09/2021

Os ardis de Amaltescher

 

Amaltescher é uma colónia penal alucinante — sei que dificilmente me vão entender.

Na altura, eu pertencia à célula de Lisbuhan dos Albertianos — um movimento que tinha como referência os ensinamentos teóricos de Leon Battista Alberti e propugnava uma imaginária com a excelência representacional dos chamados pintores do século XV da era antiga. Éramos quase todos ex-estudantes de arquitetura que, por uma razão ou outra, nos tínhamos tornado representadores. «Com efeito, foi do pintor que o arquiteto tomou as arquitraves, os capitéis, as colunas e tudo o que faz o mérito dos edifícios» — argumentávamos a quem manifestasse estranheza pela opção que tomáramos. Usávamos quase sempre tecnologia eletrónica, mas, às vezes, preferíamos os métodos e os suportes analógicos, como adesão superlativa às práticas obsoletas dos criadores de imagens de há oitocentos anos, como Piero della Francesca ou Durer. A esta veneração interpúnhamos o filtro da naturalidade. Rejeitávamos as artificialidades, ainda que perspeticamente corretas, como os trompe l’oeil, mas abominávamos especialmente tudo o que indiciasse intenções de manipulação do espírito, como as deformações de El Greco, evidentes, ou as de Michelangelo, subtis.

Era esta recusa do artificialismo que nos levava a abdicar das representações holográficas, apesar da sua popularidade e da facilidade de criação que os equipamentos de última geração proporcionavam. Apenas a representação a duas dimensões perspeticamente inatacável, composicionalmente deleitosa e de matização venusta era o desafio que sempre procurávamos ultrapassar. E mensalmente fazíamos o nosso próprio certame expositivo — uma fila de ecrãs a todo o comprimento parietal de uma ala no centro discente, matizado com um ou outro suporte arcaico. Era a nossa vaidade e a nossa coragem. Percorríamos a exposição vezes sem conta em pequenos grupos a admirar e a criticar o que víamos.

Os aspetos que nos mereciam apreço eram invariavelmente brindados com uma citação do De pictura, de Alberti, que quase todos sabíamos de cor: «O maior trabalho do pintor não é fazer um colosso, mas uma história.»; «Não vejo caminho mais seguro do que observar a Natureza.»

Qualquer desatenção perspética, qualquer deformação ou incoerência detetada, era apontada de braço estendido e alvo de sarcasmos ruidosos, evocando aos gritos a norma hereticamente transgredida: «Esperamos que uma pintura pareça em relevo e que ela se assemelhe o mais possível aos corpos reais»; «Numa história, é preciso que todos os corpos se harmonizem pela estatura e pela função.» Quando o caso era grave, chegava-se frequentemente à execução sumária da obra e até a algumas vergastadas decididas pelo Coletivo Albertiano e aplicadas pelo Veteranus Albertianorum.

Só me alonguei nesta explicação para que percebam o contexto por detrás do que aconteceu e me deem razão no que fiz. Nessa noite tinha ido alimentar-me com dois colegas a um fornecedor alimentar, numa zona fora das nossas rotas habituais. A certa altura reparámos que havia umas quantas pinturas analógicas nas paredes, supostamente para as adornar. Levantei-me e fiz o giro de análise. O que vi não podia deixar-me mais irritado: eram umas pinturazinhas a tinta biótica, representando edifícios arcaicos das zonas reservadas, até com um apreciável tratamento lumino-cromático, mas… O ignorante que produzira aquilo nunca tinha ouvido falar em ponto de fuga — o rudimento dos rudimentos perspéticos. As linhas das cimalhas apontavam para uma zona do céu e as linhas dos lintéis das janelas e das portas apontavam para uma zona do piso a meio da rua. Chamei os meus colegas e, com a constatação daquela aberração representacional, começámos a lançar citações de Alberti: «Imaginar sempre uma linha transversal cortada por uma linha perpendicular, a fim de determinar na pintura uma posição fixa do ponto de vista.» A ira crescia dentro de nós. «Para um corpo retangular feito de ângulos retos, não se podem ver, com uma olhada, mais do que duas superfícies contíguas tocando o solo.» No auge da exaltação, peguei no forco da pasta proteica e desatei a esburacar aquelas indignidades. Logo um dos alimentários, um velho enrugado de cabelo pintado — que eu soube mais tarde que era o executante responsável — correu para mim, a tentar segurar-me os braços. Percebia-se que procurava defender aquela imundície. Não pensei ou talvez tenha pensado no que havia a fazer. Espetei-lhe o forco com força na lateral do pescoço. O que se seguiu nublou-se na minha memória, mas sei que senti uma grande serenidade, como quando se faz o que se espera de nós.

O processo judicial foi rápido e resultou num veredito cruel: ostracismo em Amalteia. O juiz devia ser um pós-picassiano: não teve em conta a atenuante de eu ter livrado a sociedade daquelas enormidades. Aliás, nem sequer proibiu o velho — que sobreviveu — de continuar a pintar. Tentou ainda dissolver a comunidade albertiana, mas isso não conseguiu. A ideia que a animava era mais intensa e íntima que a mera brandura conjuntural. Sei que o grupo continua a reunir-se, a espalhar os ensinamentos albertianos e a aprofundar a ligação entre os membros. Como tenho saudades do grupo e desses tempos! A vida em Amalteia era de uma crueldade sem nome, sobretudo para um homem com a minha preparação mental.

Amalteia ou Júpiter V é um dos satélites mais próximos de Júpiter. Minúsculo, é desde há uns quarenta anos usado como colónia de reeducação. Uma da dezena fora do planeta-mãe. O juiz não podia ter escolhido mais “acertadamente” o local de cumprimento da sanção. Claro que foi devido ao parecer do Conselho Normalizador que estudou o meu caso. Para me fazer sofrer. Tendo em conta o meu percurso de educação e de vida, as minhas escolhas, o meu pensamento, o que sou. Aquele mundo não fazia sentido. Depois de lá chegar, percebi muito bem por que há quem lhe chame Amaltescher, em referência ao alucinado criador de representações absurdas, irrealidades em imagem — Escher.

Com uma gravidade extremamente baixa, é um misto de anacronismos anatómicos, paradoxos geométricos e sobrepopulação. Tudo embebido num éter transparente, viscoso mas respirável, que deforma a perceção das formas. A fauna é variada, mas infinitamente metamorfoseável, quase fluida, resultado de evolução em condições de subgravidade. Como se percebe, é um mundo avesso a tudo em que acredito — rigidez, precisão, previsibilidade —, pelo que me era extremamente penoso viver ali. Era como se aquele mundo me estivesse continuamente a desmentir, a agredir, a humilhar. Nas primeiras semanas, eu e o grupo que chegou comigo, fomos obrigados a caminhar insensatamente numa espécie de sem-fins, para nos adaptarmos às condições singulares de gravidade e ilusão ótica. Durante horas incontáveis descíamos escadarias, sempre a descer, sempre a descer, mas não chegávamos a pisos inferiores — mantínhamo-nos no mesmo nível do edifício. Cruzavam-se connosco reeducandos de um grupo mais avançado, que subiam as mesmas escadas, interminavelmente. Mais tarde, passámos para um “nível” mais difícil: eram torres, edifícios, estruturas “impossíveis”, em que colunas da frontal do edifício sustentavam as traseiras do piso acima; em que cúpulas, a um tempo, eram abóbadas depois; em que escadas a ligar andares baixos e altos pareciam poder ser percorridas quer na sua parte de “gravidade normal”, como de “gravidade invertida” ou “lateralizada”, isto é, havia a ilusão de se poder caminhar tanto pelas paredes como pelos tetos.

Imaginem o que isso fazia à minha sanidade mental. Chamarem-lhe “reeducação” é de uma maldade obscena. Apetecia-me gritar: «Está bem, já percebi, estúpidos pós-naturalistas, já vi as vossas armadilhas surrealistas, mas não pensem que alteram a minha maneira de pensar. Na minha Terra é o rigor albertiano que explica a realidade. Isso é o que tenho de mais íntimo, de mais pessoal. Não se pode converter alguém que não queira. As inquisições descobriram-no pelo cansaço. Podem continuar com os paradoxos, que eu não abdicarei da minha certeza!»

Mais tarde, passei para o “convívio” com outros seres. Chamar-lhes seres é arrojado. Pareciam-me mais materializações ilusórias de formas de seres do meu planeta, como se aquele satélite captasse o meu pensamento, o interpretasse e o representasse. De maneira totalmente “herética”, para usar a minha tão cara terminologia albertiana. Um sofrimento intelectual permanente. Uma tortura. Uma impiedade. Cruzavam-se uns com os outros num trânsito compacto e inextricável. Continuamente alteravam as formas de modo a cruzarem-se sem se tocar. Os seres que passavam como um grupo de tartarugas, mais à frente já eram lagartos e depois abelhas, borboletas, aves, peixes. Em sentido contrário deslizavam cavalos, aves, peixes, formigas. Mas nas transições passavam por formas desconhecidas para mim, embora me fizessem lembrar formas da Terra. A única regra parecia ser a de evitar espaços vazios. Alguma diferenciação de cor era o fugaz alívio percetivo, ao permitir distinguir a demarcação entre seres.

Descobri a vulnerabilidade do sistema, por acaso. Todas aquelas formas eram bastante paradoxais e incongruentes, mas eram neutras, inócuas, quase decorativas. Discorrendo, pensei que o tormento de lhes estar exposto só era penoso intelectualmente. Bem pior seria se, além de aberrantes, aquelas formas fossem assustadoras, como as de Bosch. Automaticamente, visualizei um pormenor de uma pintura dele: um homem com uma cobra enrolada às pernas a ser engolido por um enorme sapo com botas bicudas. A este pensamento inquietado, uma forte flutuação do fluido imersor transmitiu-se às formas imediatamente. Os peixinhos a metamorfosearem-se em aves mudaram para peixes monstruosos, de bocarras assustadoras cheias de dentes, em vias de devorar pássaros de aspeto jurássico; cavalos não apenas deformados ganharam desfigurações doentias, tumores e pústulas, enquanto escaravelhos repugnantes lhes devoravam o pus. De repente, todo o espaço que me circundava era uma representação alucinante e amedrontadora das Tentações de Santo Antão.

Suspeitando do que acontecera, rapidamente me controlei. Fora muito evidente que a perturbação se devera à influência do meu pensamento. Outras experiências com evocações de obras de De Chirico e Dali convenceram-me disso. Mais tarde, percebi que a chave não era apenas a evocação, mas alguma perturbação de medo ou inquietação, no meu espírito. O que não acontecia com outras emoções. O que havia a fazer? Como poderia aproveitar aquela singularidade ambiental em meu proveito? Talvez… A ideia fulgurou no meu espírito: treinar-me para sentir apreensão, receio, medo, mas por imagens que me agradassem.

Pensam que é fácil? Havia que evocar imagens como A Virgem dos rochedos, sugestionar-me para sentir medo delas e, quando o fluido imersor gerasse o universo sereno e deleitoso da imagem, conseguir manter um sentimento de medo, enquanto tentava fruir aquela paz. A ambivalência de sentimentos necessária tornava a experiência extenuante, devido à concentração exigida. A princípio, o fingimento não resultou, mas depois tornei-me eficaz a interiorizar medo no meu espírito. Quando o consegui, pude sentir a harmonia, o apaziguamento, em ambientes de Piero della Francesca ou de Da Vinci. E, de vez em quando, permitia-me uma incursão em Botticelli. Mas era de mais. O medo construído começava a misturar-se com alguma aversão verdadeira. Então regressava a Ticiano, a Giorgione. Parecia que tinha conseguido escapar dos paradoxos e das aberrações. Parecia que conseguira burlar o sistema. Nada de mais errado.

Muito tempo depois, apercebi-me da armadilha. Cada vez era mais fácil recear as imagens de que gostava. O fingido ia passando a sentido. A certa altura, já sentia medo genuíno até da placidez de Bellini. E atrás da emoção incómoda de medo vinham sentimentos de desagrado, de asco, de rejeição. Sofria muito. Evocar uma imagem, mesmo a mais deleitosa, era equivalente a experimentar emoções de náusea e ódio. Paradoxo puro. Não tinha descanso. Não tinha para onde fugir. Nem daquele mundo, nem de mim. Estava desesperado.

Certo dia, recebi uma ordem de transferência. Não sei por que motivo, tinham resolvido comutar-me a reeducação em Amalteia para guarda no Museu do Renascimento em Lisbuhan. Conclusões e decisões do Conselho Normalizador... Não sei se tenho razões para me alegrar. Deambulando pelas galerias repletas de obras de arte, tenho um só truque; não para burlar o sistema, mas para sobreviver: limito-me a caminhar de olhos no chão, para não vislumbrar sequer as obras expostas. Não posso ver, não posso espreitar, não posso permitir que o meu olhar caia sobre alguma. Não posso sequer imaginá-las. Tento manter vazio o espírito, sempre ameaçado pelos terrores e os paradoxos imagéticos de Amaltescher. Assim sobrevivo.

Joaquim Bispo

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Imagem: M. C. Escher, O Encontro, 1944.

Coleção Elisha Whittelsey, Museu “Met”, Nova Iorque.

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10/11/2020

Agenda encontrada numa ribanceira da Serra do Açor

 

Dia 10/8/16: Mais uma vez — como todos os verões — vim passar duas ou três semanas na minha terra, esta lindíssima vila de xisto do vale do Alva. Como é bom rever e reviver as paredes de setenta centímetros da minha casa rústica e a sua frescura interior. E espero encontrar os amigos e os familiares, mesmo os emigrados, que “obrigatoriamente” aparecem no verão. Todos querem aproveitar a reunião inusitada para animar a vila com festas, encontros e comezainas.

Como desde há três anos, vou a um almoço dos nascidos em 1944, à semelhança do que fazem os nascidos noutros anos. O almoço é o pretexto para o encontro e a partilha da alegria de estar (ainda) vivo. Reveem-se os conhecidos, reconhecem-se as parecenças antigas por baixo das rugas modernas dos que vêm pela primeira vez, atualiza-se a fisionomia que cada um guarda do outro.


Dia 14/8/16: «O Nunes está todo encarquilhado. A Georgina agora é loira.»

Lembras-te de eu te abrir a cabeça à pedrada? — perguntou-me o Ramos.

Lembras-te de me fazeres serenatas? — tentou a Marisa.

As lembranças são um amontoado de tralha pessoal inútil, falsificada pelas ruminações, em que não consta a maior parte dos registos que os outros guardaram. Lembro-me dos folhos da Matilde, na igreja; lembro-me das reguadas que apanhei por causa do Zé Caçoila. O resto? Sei lá! Deve ter acontecido, se eles o dizem... O mais importante mesmo deve ser o encontro com pessoas do mesmo grupo etário. Ainda que não nos lembremos uns dos outros, temos lembranças no mesmo contexto, porque vivemos no mesmo ambiente, em certo tempo, mas, se calhar, o mais importante é que somos da mesma idade. Como estamos a viver a nossa reforma, a nossa velhice galopante? Vivemos para o futuro ou do passado?

Vocês viram ontem a chuva de estrelas cadentes? ― lançou um tipo de cabelo branco, mas ainda farto, quase à minha frente.

Quando? Ontem? Não soube de nada! ― disse uma. ― Eu à noite vou para a caminha ― respondeu outro. ― Chuva… ― desdenhei eu. ― Estive uma hora num caminho escuro da serra, mas só vi umas cinco.

Aquilo é um espetáculo fabuloso, não achas? ― prosseguiu o aficionado sideral, dirigindo-se-me decididamente.

Acontece todos os anos por esta época, não é? ― comentei, tentando mostrar algum conhecimento. ― Parece que são meteoritos que vêm da constelação de Perseu.

Não é bem assim ― contestou ele, sem alarde. ― São restos da cauda de um cometa que passou por aí.

Interessas-te por astronomia? ― perguntei, meio que para fazer conversa.

Eu interesso-me por tudo ― afirmou, categórico. ― Tem de ser; não quero deixar enferrujar os neurónios.

Os outros tinham-se entretanto alheado da conversa, que se tornara nossa, e falavam dos colegas que tinham morrido, desde o último almoço.

Já viste o que nos espera, se não nos soubermos precaver? ― insinuou, apontando os circunstantes com o queixo.

No resto do almoço, tornou-me seu cúmplice num discurso de meias palavras, que se mostrou enfático quando, após os pratos quentes, deambulámos pelas mesas dos queijos e dos doces:

Convence-te! Nós pertencemos à praga grisalha que só atrapalha. Cada vez somos mais a papar reformas. Que país é que aguenta isto? Passeamos, banqueteamo-nos, consumimos e não produzimos nada, já viste? Que planeta é que suporta isto? Não há recursos que aguentem.

Recebemos reformas, mas trabalhámos para elas ― tentei argumentar.

Mas agora somos uns inúteis. Uma sociedade bem organizada, sem tolerar desperdícios, devia descartar este peso morto.

Mas isso é fascismo! ― indignei-me. ― Felizmente que a esperança de vida aumentou! Querias instaurar uma espécie de eutanásia por caducidade de prazo da validade produtiva?

Olha, porque é que não vens almoçar connosco um dia destes? Tenho um refúgio paradisíaco nos altos da serra do Açor. Podíamos falar deste e doutros assuntos aliciantes que ameaçam a Humanidade.

Apesar da minha relutância inicial, dei por mim a sentir uma curiosidade genuína pelas ideias dele e pelo modo de vida que levaria no tal refúgio serrano.


17/8/16: Às onze apresentei-me em Vide e fui conduzido por um trilho de terra batida que serpenteava pelas faldas da serra até desembocar numa espécie de côncavo arborizado com umas vistas de tirar o fôlego. O local parecia uma quinta de experimentação pecuária e botânica. Vários animais estavam confinados a espaços criteriosamente concebidos, em microambientes bióticos, com plantas específicas para cada animal. Alguns pareceram-me ligeiramente mutantes, como um, semelhante a um pequeno urso, que se alimentava de cenouras.

Conseguimos produzir cenouras com um alto teor de proteínas. A carne vai tornar-se um bem escasso num mundo como o nosso ― argumentou o Martins, o nome do meu insuspeito amigo de infância.

A esposa tinha preparado um almoço delicioso, com beringelas que sabiam a salsichas alemãs, beterrabas amarelas, com sabor a pato, e carne de cabrito que sabia mesmo a cabrito… Com sabor a vegetais, havia outras iguarias muito desleixadas pela maioria dos produtores agrícolas: figos de cato, juncos e fatias de uma espécie de meloa vermelha.

A conversa decorreu animada, mas encaminhou-se para rumos totalmente inesperados, apesar da conversa no almoço dos contemporâneos.

São versados em teorias da conspiração. Afirmam que os governos mundiais estão tomados por interesses estranhos, e que usam muitas técnicas de condicionamento. Dizem que os aviões dos governos espalham químicos na atmosfera, para nos tornar dóceis; que estão a ser aplicados “chips” nos recém-nascidos para monitorização de tendências antissociais; que existem muitos extraterrestres no planeta a preparar a invasão, com a conivência dos governos; que eles querem invadir o nosso planeta, porque ainda não conseguem produzir a carne que os nossos animais produzem com tanta facilidade.

Eu reagi, mais divertido do que assustado:― Mas por que é que vocês suspeitam disso tudo? Têm alguma prova de qualquer dessas teorias?

Então o meu amigo de escola primária, de quem eu não me lembro, abriu-se em revelações, talvez por achar que eu não iria acreditar nele, talvez porque não tinha nada a temer. Disse que, na verdade, ele e a mulher são extraterrestres; que estão na Terra outros duzentos mil; que a vida no seu planeta se tornou assustadoramente claustrofóbica, devido à praga grisalha que lá se tornou quase imortal; que a absurda quantidade de carne necessária à alimentação de tanta gente obrigou-os a socorrerem-se de outros mundos; que a obtenção de carne humana é a prioridade atual, dado o seu sabor sofisticado, parecido com o do cabrito, mas queixou-se da imprevisibilidade do fornecimento proporcionado pelas guerras.

Eu estava abismado, mas arrisquei uma piada, para amenizar a situação:

Caramba! Ainda bem que eu já não sou novo e que a minha carne deve ser rija. Só se fosse para chanfana...


Eles não riram com a piada, ou antes, pareceu-me detetar um ténue e síncrono sorriso a iluminar-lhes o rosto. A conversa alongou-se ainda por várias horas, apesar de alguma inquietação latente minha, mas eles continuaram simpáticos e hospitaleiros. De tal modo que aceitei o convite para jantar e dormir aqui esta noite, neste paraíso natural e incrivelmente sossegado.

Estou a ficar com sono, mas não quis deitar-me sem registar os eventos deste dia incrível, enquanto ainda estão frescos. Amanhã podia não me lembrar.


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 23ª edição (setembro/outubro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 113 a 116).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_23__edi__o

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Integra também a coletânea A Arte do Terror — Volume 4, da Elemental Editoração, 2017 (páginas 174 a 176).


https://issuu.com/elementaleditoracao/docs/a_arte_do_terror_-_vol_4_pdf?fbPageId=1630337707215091

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Imagem: Lucian Freud, Homem Nu, Vista Posterior, 1991–92.

Museu Metropolitano de Arte (The Met) e Galerias Acquavella, Nova Iorque.

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