Mostrar mensagens com a etiqueta crónica. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta crónica. Mostrar todas as mensagens

10/12/2022

Do lado de fora

  Com o passar do tempo, perdemos a localização temporal exata de certo facto. Desta personagem, lembro-me que apareceu de súbito a dormir por baixo das arcadas do meu prédio, mas perdi a memória sobre a estação do ano em que tal aconteceu. É provável que fosse outono. A princípio, todos pensámos que ficaria por ali umas noites e partiria, tanto mais que não acumulava muitos cobertores e agasalhos, como outros sem-abrigo. Limitava-se a deitar-se sobre um cartão grande, daqueles que acondicionam eletrodomésticos, para se proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava...

10/08/2020

Querida mãezinha!

Compreendo quem se lamenta da sua triste sina e não para de tecer teorias da conspiração sobre a própria sogra, embora eu não tenha razões de queixa. Mal vejo a minha. É claro que antes sofri muito. Nos primeiros meses de casado, perdi dez quilos. Dormia mal, tinha pesadelos em que era atacado por matronas rotundas armadas de panelões de feijoada, que tocavam à porta às seis da manhã e me lambuzavam a cara de batom encarnado. Fiz terapia, voltei a frequentar a igreja, mas só o estudo me salvou — um mestrado em Estudos Militares. Uma das disciplinas parecia delineada especialmente para o...

10/10/2019

O meu 25 de abril

Antes. É-me praticamente impossível fornecer aos meus compatriotas mais novos uma ideia clara de como se vivia em Portugal durante o Estado Novo — o regime que vigorou entre 1926 e 1974, sensivelmente com os mesmos valores: Deus, Pátria, Família. Ainda pensei descrever uma lista de situações que contextualizassem a vida de então, mas desisti de o fazer, tão descomunal me parece a tarefa. Então, a 25 de abril de 1974, na sequência de uma reivindicação corporativa, os oficiais menos graduados das Forças Armadas, capitães e majores, sobretudo, lideraram uma ação militar que derrubou o regime,...

10/11/2018

Saramago em Concerto

Na última passagem de ano, desloquei-me com o grupo familiar habitual ao espaço fronteiro à Torre de Belém, onde a autarquia prometia música e fogo de artifício. A surpresa foi muito agradável. Até à meia-noite, atuou um conjunto muito curioso: formado por três violas, bateria, piano e três metais, só tocam músicas dos Beatles, copiam-nos em tudo, até nas roupas. Dão pelo nome de “Get Back Beatles” e são brasileiros. O esforço rende resultados: abstraindo-nos um pouco, quase acreditamos que estamos a ver e a ouvir os autênticos, quarenta anos depois, em Lisboa, todos vivos e jovens....

10/10/2018

És Feliz?

Todos sabemos que os mortos não voltam; por uma razão muito simples — morreram. No entanto, uma inaptidão para lidar com a interrupção do devir leva-nos a imaginar os nossos mortos em forma carnal incorrupta, como quando os conhecemos. Aliás, a aventura humana, com as suas contínuas “entregas de testemunho cultural”, é muito eficaz a fazer-nos proceder como se houvesse um devir contínuo. E um contínuo progresso. Esta nossa capacidade de abstração e de idealização permite-nos imaginar os cenários mais inverosímeis com a naturalidade das coisas quotidianas. Um avô meu morreu em 1950, quando...

10/09/2018

Os benefícios do futebol

Por mais estranho que pareça, o futebol tem-se revelado muito importante para mim, culturalmente. Há dias, à hora das notícias, liguei o televisor para a RTP-1, com a preocupação de saber se vai aumentar o orçamento para a Defesa e diminuir para a Educação. Em vão: estava a transmitir um jogo de um dos inúmeros torneios oficiais, semioficiais e de preparação que o mundo do futebol promove para corresponder à procura do público condicionado e arrecadar mais uns milhões em direitos televisivos. Gosto de ver uma...

10/08/2018

A primeira refeição do dia

A primeira refeição do dia é a mais importante. (Dos sites nutricionistas) Acabei de chegar de umas férias em Budapeste. Cidade bonita — belos panoramas, excelentes museus —, mas do que não me esqueço é dos pequenos-almoços. Só de antever a primeira refeição do dia passava a noite em sonhos salivados. No hotel em que estive, serviam fiambres, presuntos, chouriços, queijos variados, tudo em cascatas de fatias finíssimas. E doces, frutas, bacon, ovos mexidos, pratos quentes. Acho que havia hóspedes que só tinham ido a Budapeste pelos pequenos-almoços. Enchiam a chávena de café com leite,...

10/07/2017

O deserto de Atacama na minha cozinha

Há tempos, ao regressar de umas pequenas férias, deparei-me com um carreiro de formigas na cozinha e brigadas de exploração em vários outros pontos da casa. A minha mulher tratou de as atacar com vinagre e spray anti-insetos — método de destruição maciça, cujas evocações da guerra química me perturbam —, mas, apesar das inúmeras vítimas, a comunidade esfomeada não desapareceu completamente. Uns quinze dias depois, encontrei o meu pacote de flocos de cereais com chocolate cheiinho de formigas, aonde chegavam por um carreiro de grosso caudal. Silenciosamente, sem pressa, deambulavam sobre...