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10/01/2018

Os números de Lucas


Ao José Espírito Santo, que me deu a conhecer “Os números de Lucas”
Quando Édouard Lucas, no século XIX, elaborou a sequência numérica que é conhecida como “Os números de Lucas”, poderia ter imaginado também o seguinte episódio, porque não lhe eram estranhos Fibonacci nem os outros protagonistas que, ao longo dos séculos, estudaram as relações numéricas e o inexplicável eflúvio de beleza que algumas emanam, sobretudo a chamada “Divina proporção” ou “Número de ouro”.
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Florença, ano de 1492. Enquanto Fra Domenico não chegava, Tommaso da Fiesole, acompanhado do seu aprendiz, Filippo, aproveitava o tempo na contemplação da Trindade pintada na parede interior da igreja de Sta. Maria Novella. Gostava da sua profissão de arquiteto, que não era fácil, mas admirava a capacidade dos pintores de transmitirem para um plano a ilusão das três dimensões, como Masaccio conseguira neste fresco.
O Senhor esteja consigo, senhor Tommaso! — Era o frade, no seu hábito preto e branco. Com ele vinha um noviço.
Como tendes passado, meu irmão? — respondeu, com um sorriso de ternura.
Tommaso sentia sempre alguma estranheza quando cumprimentava o seu conterrâneo e primo por «meu irmão». Tinham sido companheiros de brincadeira, mas cada um seguira o seu caminho — Domenico ingressara no convento de S. Marcos de Florença, e ele tinha feito o percurso dos aprendizes de artes mecânicas até atingir o atual estatuto.
Ouvi dizer que estais a trabalhar para um sobrinho do senhor Lourenço de Médici.
Sim, o senhor Ludovico. Saiamos! É mesmo por causa desse projeto que pedi para vos falar. Sei que vos tendes interessado pelo estudo das formas e das relações entre as suas dimensões. Eu, na minha profissão, não posso ignorar o valor exato da secção áurea, para a aplicar aos edifícios, ou não fosse essa relação tão agradável aos sentidos. E sei como, há muito tempo, o grande Fibonacci demonstrou a sua génese, de maneira tão compreensível. — Fez uma pausa a avaliar se Domenico queria responder.
Sim — assentiu o frade —, partindo dos dois primeiros números, somava-os para obter um terceiro — o 3 — e, para obter o quarto número da sequência, somava os dois anteriores e obtinha o 5. — O frade aproveitava para ilustrar o seu pupilo. — E assim sucessivamente. Obtinha uma sequência que começava por 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. Parece uma brincadeira para obter o interesse de meninos na aritmética, mas a divisão de um número pelo anterior dá o valor da secção áurea ou divina, em que o valor mais pequeno — 5 pés da secção de uma parede, por exemplo —, está para a secção maior — 8 pés —, como esta está para a largura total da parede.
O grupo afastava-se do bulício que envolvia a igreja e dirigia-se para o Duomo, através das ruas estreitas bordejadas de vendas, tabernas e oficinas de artífices.
Ora, essa sequência levanta-me um problema — continuou Tommaso. — Tenho uma igreja para projetar para o meu senhor. As dimensões relativas das fachadas estão decididas. Mas os tamanhos não são tudo. Os elementos que as integram, pela sua forte individualidade, ganham uma força que é preciso ponderar. A fachada lateral, por exemplo, vai ter uma série de arcos monumentais a mascarar a parede da nave. A linha horizontal, que os capitéis das colunas geram, divide a fachada de tal modo que a distância do chão ao topo dos capitéis é exatamente 1,618 vezes maior que do topo dos capitéis à linha do telhado. Está, portanto, de acordo com a secção de ouro: a distância mais estreita está para a mais larga, como esta está para o total, do chão ao telhado. — Parou novamente, desta vez para respirar.
Havia alguma tensão na cidade, porque Lourenço, o magnífico, o patriarca da família mais poderosa de Florença, estava doente e Savonarola, o prior de S. Marcos, não cessava de clamar contra o luxo e o paganismo da sua corte.
Então, o que vos preocupa? — perguntou o frade.
O número de arcos que devo projetar. A relação dourada é obtida com números inteiros. Se ponho oito arcos no lado, deveria pôr cinco portas na fachada principal, o que é muito. Para pôr três portas, deveria pôr só cinco arcos, para respeitar a sequência de Fibonacci, mas ficariam demasiado largos. — Agora o sobrolho de Tommaso mostrava-se carregado de preocupação.
Ponde sete arcos no lado.
Tommaso parou e olhou diretamente para Fra Domenico, tentando descortinar algum sorriso. Mas o rosto do frade estava compenetrado.
Mas 7 não faz parte da sequência!
Não faz da de Fibonacci, mas faz da do Senhor. Há milhares de sequências. Quaisquer dois números a que aplicardes essa regra da soma sucessiva, dá sempre o mesmo valor de 1,618, a partir, aí, da décima soma. Todas apontam para esse número sagrado, mas a sequência 1, 3, 4, 7, 11, etc. faz parte das Escrituras. Há 1 só Deus, em 3 pessoas distintas, a cruz tem 4 braços, as virtudes são 7, os apóstolos fiéis são 11.
Meu irmão, a sequência 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. está em toda a parte: no crescimento das plantas e dos animais, no corpo humano. Sabeis que a relação entre a falange e a falanginha é dourada, assim como a relação entre esta e a falangeta?
Sim, sei, Deus fala por muitas vias.
Passavam agora por S. Lourenço, a igreja da família Médici. O templo estava cheio e cá fora havia uma pequena multidão a conversar em grupos. O governante estava muito mal, dizia-se.
Há muito tempo que os Homens se aperceberam dessa relação, sob a qual as formas transmitem um aspeto completo, perfeito — prosseguiu Tommaso. — Pitágoras descobriu-a no seu pentagrama, Vitrúvio aplicou-a aos edifícios dos Romanos, Leonardo encontrou-a no corpo humano. O nosso Piero della Francesca é exímio a aplicá-la nas suas pinturas. Por isso, elas nos parecem tão perfeitamente equilibradas. Conheceriam estes homens a sequência desses vossos números?
Meus, não! Mas estou certo que um dia alguém lhes dará o nome de um sábio.
Custa-me muito aceitar que possa ser perfeita uma sequência que não tem o 2, o número do casal, a base da sociedade dos Homens.
Pode ter, se quiserdes. Tem o seu lugar de direito, mesmo na origem, antes do 1.
Tommaso olhou para cima, pensativo. Via-se que ficara impressionado.
Antes do 1?! Sabeis o que pensa o vosso prior sobre estes assuntos?
A crítica dele não atinge especificamente questões estéticas, mas não vê com bons olhos a aproximação cada vez maior que a corte e os artistas, que para ela trabalham, vão fazendo aos textos pagãos dos antigos e à sua licenciosidade.
Dizei-me, então, Fra Domenico, sete arcos na lateral era uma boa solução, mas como ficaria a frontaria? Não pode ficar com quatro portas, precisa de uma central.
Como bem dissestes, a individualidade dos elementos é um fator muito forte de visibilidade. Mantende a simetria das três portas, mas fazei sobressair elementos que as enquadrem, colunas volumosas, por exemplo. Reparai que seriam quatro colunas — o 4 de que precisais.
Interessante, irmão Domenico! — Parou, pensativo. Os seus olhos baixos moviam-se à esquerda e à direita. — Tenho que alterar o projeto. Acho que já sei como vou fazer.
Estavam a chegar a Santa Maria dei Fiore. Já se ouvia a vozearia habitual. De repente, da esquerda, do palácio Médici, elevaram-se gritos, vários, intensos, angustiados:
Morreu o senhor Lourenço! Morreu o senhor Lourenço! Deus tenha piedade de nós!
O grupo de Tommaso da Fiesole olhou-se inquieto. Depois, despediram-se rapidamente:
Adeus, meu irmão. O vosso conselho é precioso; mas não sei se poderá ser concretizado, com os tempos que se avizinham. Temo que o filho de Lourenço não consiga resistir a Savonarola.
Aqui para nós, senhor Tommaso, até eu! Que Deus vos acompanhe!

Joaquim Bispo

Imagem: O Homem Vitruviano e a Série de Fibonacci.


(Este conto foi publicado no número 35 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2013.) 
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10/06/2016

O Messias do Ocidente


Assim que chegou a Tomar, João de Castilho procurou mestre Álvaro Rodrigues para conhecer o estado das obras que fora incumbido de finalizar, ainda antes de conhecer os alojamentos que lhe tinham sido atribuídos. Encarregou um dos homens da sua companha de tratar dessa parte logística. A viagem a cavalo fora cansativa, mas, assim que avistou o volume do castelo, foi tomado de grande curiosidade, dado o que sabia e o que ouvira dizer sobre o complexo religioso que crescia naquela envolvência militar. Foi encontrar mestre Álvaro a supervisionar os trabalhos no estaleiro da pedra, envolvido no ruído cadenciado dos martelos sobre os escopros. Este guiou-o pelos meandros da obra arquitetónica em execução:
Era aqui que mestre Diogo de Arruda se preparava para edificar o portal sul da igreja, mas, como sabeis, ele foi chamado, há uns meses, para uma campanha de obras em Safim e outras praças em Marrocos, e vós fareis como entenderdes, ou as ordens que tiverdes — explicava mestre Álvaro, avançando depois até aos andaimes instalados na charola. — Esta parte está quase acabada; só falta alguma estatuária, que está a ser talhada pelo vosso compatriota mestre Fernão Muñoz, e aplicar as imponentes tábuas já pintadas pela companha de mestre Jorge Afonso — continuava o guia, apontando os inúmeros nichos vazios e os trechos de parede entre as janelas góticas.
João de Castilho passava os olhos pelas alturas vertiginosas da capela-mor, tentanto imaginar o que mestre Álvaro lhe dizia, mas o seu assombro vinha-lhe de, enfim, conhecer no local a inusitada planta do antigo oratório.
Que extraordinário desenho, ao mesmo tempo austero e de subtil apelo à elevação espiritual! Um autêntico “eixo do mundo”.
Sim, esta parte foi construída pelos primitivos cavaleiros Templários, há mais de três séculos, inspirando-se no presumível templo de Salomão, que alguns viram em Jerusalém. Então, o templo era só este espaço poligonal de dezasseis lados, sustentado por estas oito colunas centrais. Entretanto, o espólio dos Templários passou para a ordem de Cristo, de que é Mestre o próprio senhor rei D. Manuel. Mestre Diogo foi incumbido de o rasgar a Ocidente para acrescentar uma nave, como vedes, e esta parte é agora “apenas” a abside.
A seguir, visitaram a nova sacristia de planta quadrada dupla, que João de Castilho devia abobadar. Mestre Álvaro deixou a maior surpresa para o fim. Quando, no exterior, se postaram frente à janela da sacristia, no local onde viria a ser implantado o claustro de santa Bárbara, o novo arquiteto parou um momento, depois sentou-se numa das pedras da obra e quedou-se a contemplar e a tentar compreender os inúmeros ornamentos que a envolviam num emaranhado pétreo.
Que dizeis? — saboreava o cicerone.
Mestre João nada dizia.
Esta é a parte em que mestre Diogo mais se transcendeu — continuou Álvaro Rodrigues. — Todos estes motivos marítimos e vegetalistas são de tais criatividade e beleza que, acredito, farão que se fale por muitos anos do seu arquiteto e do rei que os encomendou.
Entendo todas estas cruzes de Cristo — disse finalmente o novo arquiteto — afinal este é um convento da Ordem, mas porquê todas aquelas esferas armilares?
Esqueço-me que estais em Portugal há pouco tempo — refletiu o inquirido, que tinha ficado a tomar conta das obras até à chegada do novo dirigente. — A esfera enfaixada pelos círculos principais é um símbolo geográfico da bola do mundo e um dos emblemas do rei. Esse e o escudo real são reproduzidos exaustivamente em todas as obras de arte, quer de cantaria, pintura, iluminura ou mesmo estatuária. Os Portugueses andam pelas sete partidas do mundo, de tal jeito e proveito que D. Manuel se intitula “Pela graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além-mar em África, senhor da Guiné e da conquista da navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. As esferas estão lá para lembrar, em imagem, esse estatuto de rei do mundo.
Bem, Espanha começa a avançar por toda a América… — racionalizava João de Castilho.
E Portugal, pelo Brasil, essa fatia tão grande que ainda não se lhe viu o fim. Há vinte anos, em Tordesilhas, D. João II soube negociar. Mas, a riqueza está a Oriente. Quase que chega aqui o cheiro da pimenta. O nosso rei D. Manuel está exultante. E rico. Por isso lança tantas obras. Chamam-lhe “o venturoso”, porque tudo lhe corre bem. Há duas décadas, não suspeitava que pudesse vir a ser rei — era o nono na linha de sucessão. Caprichosamente, morreram sete desses candidatos. D. Manuel é aclamado rei, sem esperar. No início do seu reinado, é descoberta a passagem a sul para a Índia. E o Brasil. Sente-se predestinado. Vê no próprio nome — Emanuel, que em hebraico significa Deus connosco — uma indicação profética. A esfera já fazia parte da bandeira da família. Sphera Mundi tem sido transcrito em muitos documentos como Spera Mundi, isto é, a Esperança do Mundo. Quem sabe se não será ele o Messias que, unindo-se ao rei cristão da Etiópia — o Preste João — inverterá o avanço muçulmano no mundo, reconquistando Jerusalém e derrotando os Mamelucos do Egito!
Dizeis que há um esforço intencional de realçar alguns símbolos de modo a servirem um determinado interesse real?
O que tem sido ventura para D. Manuel também tem aspetos problemáticos. O certo é que a nobreza habituou-se a vê-lo como “apenas” o Duque de Beja, e não como El-rei. D. Manuel precisa de algumas ajudas de legitimação, por isso alguma desta retórica imagética, que vale mais que muitas proclamações. Toda a obra de aparato é um manifesto da grandiosidade do soberano e do estado. Se, além disso, o rei for mostrado em figura, ou em símbolo, em circunstâncias nobilitantes, maior grandeza adquire aos olhos dos súbditos e dos outros soberanos. Ele ainda alimenta a esperança de vir a ser, também, rei das Espanhas. E, ouvi dizer que se prepara uma embaixada ao Papa que leva um elefante indiano, dois leopardos e outros animais exóticos.
Noto que toda a ornamentação vegetalista como que nasce de robustas raízes que saem das costas de um homem ali na base do janelão. É Jessé? — perguntou incrédulo João de Castilho, que conhecia as iconografias comuns usadas por pintores e escultores, mas não esperava encontrar o pai mítico do rei David naquele contexto.
Sim; mestre Diogo disse-me que o velho representa Jessé. Segundo S. Mateus, como bem sabeis, essa genealogia desemboca em Cristo, após vinte e oito gerações. Aqui, vê-se que do seu dorso nascem vergônteas, que após várias circunvoluções desabrocham em esferas armilares, escudos reais e cruzes de Cristo. Não se pode ser mais incisivo na afirmação de predestinação, ainda por cima apoiada na Bíblia.
Realmente!
D. Manuel tem também realçado e feito representar o milagre de Ourique em que o nosso rei fundador teve uma visão da cruz de Cristo, onde se lia Com este signo vencerás — o mesmo que viu Constantino, o imperador romano que oficializou o cristianismo. Liga-se, assim, o rei fundador da nação portuguesa, com o imperador “fundador” do cristianismo, na pessoa de Emanuel das profecias, que é a cabeça da ordem de Cristo, Cristo que virá a ser o senhor do mundo. Ele pretende ser visto como a junção do poder temporal e do poder espiritual, uma sobreposição de César e Salomão. E Esperança do Mundo. Vários pintores o têm inserido em cenas religiosas, como a Adoração dos Magos, sendo El-rei representado como um dos reis magos vindos do Oriente. E, na verdade, ele é um importante rei, cujo poder assenta, antes de mais, no Oriente.
João de Castilho e Álvaro Rodrigues, arquiteto e mestre, continuaram a conversar sobre a singular figura do rei a quem serviam, e sobre as extraordinárias referências cruzadas que o identificavam. Não era difícil imaginá-lo com uma aura de Messias. A confirmação local de todas as informações que trazia era muito inspiradora para o novo arquiteto, gerando ideias de exaltação arquitetónica, a aplicar no portal sul que se pretendia majestoso. Se D. Manuel queria ser o bastião da cristandade e o seu modelo, o seu engenho estaria ao serviço dessa aspiração, fazendo deste convento um digno templo de Salomão no Ocidente!

Joaquim Bispo

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Imagem: Diogo de Arruda, Janela manuelina do Convento de Cristo, Tomar, c. 15121513.

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(Este conto foi publicado no número 22 da revista literária virtual Samizdat, de novembro de 2009.)

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