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10/04/2024

O Apocalipse de Atouguia

 


Atouguia era uma sibila neandertal que vivia na zona mais ocidental da atual Península Ibérica, 29 mil anos antes do presente. A sua vivência simples de recoletora, adaptada às condições climáticas de então, foi certo dia marcada pelo terror de um feroz ataque de esguios e sanguinários invasores. Fugiu, escondeu-se numa loca rochosa, ouviu os gritos desesperados dos seus irmãos. Assistiu em agonia à morte de todos os membros do seu clã, que, depois de esquartejados pelas lâminas de sílex dos atacantes, foram comidos, numa orgia de sangue e ferocidade, que durou vários dias. Obrigada pela fome a tentar escapar, foi descoberta, apanhada e tornada alvo da turba cro-magnon. Violada repetidamente em festim da carne viva, acabou por ser poupada, não devido à alvura da pele da sua raça, mas à intensidade rubra dos cabelos. Os recém-chegados passaram a ser os seus donos e os novos senhores do seu mundo esfacelado. Tornou-se mãe de uma criança mista, calada e estranha.

A sua cria ainda durou quatro anos, mas, mais frágil do que as da sua antiga tribo, acabou por morrer aninhada nos seus braços. Atouguia sepultou-a na reentrância de uma falésia calcária, na zona do Lapedo, com alguns mimos de conchas e ossos pintados de ocre e, entre os joelhos, um coelho acabado de sacrificar. Depois, enlouquecida de dor e desesperança, retirou-se para um monte chamado Berlenga e pôs-se a profetizar desgraças para os seus captores e para a mãe Terra, em grandes lamentos que lhe eram revelados — dizia. Este é o rol das suas visões:


1 — Sentada no mais alto dos penedos da Berlenga e embrenhada na minha dor, lastimava a lonjura infinita do mar, quando ouvi uma voz potente atrás de mim. Voltei-me mas só vi uma névoa que parecia o meu pai. Ele falou lenta, mas profundamente, em frases cortadas por silêncios:

2 — Eu vejo o mal que vai assolar o mundo. Vejo turbas em fúria, vejo grandes tribos ser dizimadas, vejo a mãe Terra negar o alimento aos famintos. Aqueles que agora se banqueteiam com as nossas carnes amargarão a crueza da sua violência. Esta Terra que foi sempre mãe solícita e generosa, vai negar-lhes o úbere.

3 — Durante muito tempo, andarão enganados, iludidos pela sua própria expansão. Crescerão, invadirão campos e mares, expulsarão os seres irmãos dos territórios que cobiçam. Serão tantos que a Terra será incapaz de os alimentar. Apertarão o úbere da Terra até o esmagar, mas ele não verterá uma gota.

4 — Pragas envolverão as suas aldeias e tornarão arenosas as planuras. Querendo mais comida para si, espalharão venenos para debelar as pragas que lhes roubarão um resto de sustento. Matarão assim também os insetos úteis e não haverá pólenes a passar de flor em flor. Não haverá mais frutos, nem mais árvores novas, nem mais comida para os animais.

5 — Grandes incêndios engolirão florestas e matos e não restarão animais que eles possam caçar. Quando pensarem descansar, não terão sombras em que se refrescar, o sol queimará as suas peles e não terão descanso. Doenças e maleitas corroerão as suas entranhas e vomitarão os fígados, os bofes e as tripas. Fugirão para lá dos mares, mas o panorama será igualmente desolador.

6 — Vão-se arrastar nas campinas, tentando roer as ervas esparsas, mas elas serão amargas e envenenarão os seus ventres; em vão, percorrerão as margens dos rios e do mar, em busca de vermes e bolores, mas nada haverá que lhes mate a fome, nem água sã que lhes mate a sede.

7 — Os mananciais envenenados serão aterrados e secarão. Alucinados por pestes e epidemias deitarão as culpas aos seus semelhantes e eles próprios se dizimarão. As tribos famélicas e enlouquecidas enfrentarão outras tribos e os cadáveres insepultos secarão ao sol. Nem os abutres lhes quererão arrancar qualquer pedaço das carnes venenosas.

8 — As hecatombes serão diárias. Por fim, será tão evidente a insensata vida que escolheram que muitos se arrependerão, mas será tarde. A mãe Terra será um local morto. E terá de voltar a esforçar-se sozinha para recuperar do cataclismo que esta vil espécie Lhe infligiu.

9 — Esta é a revelação feita a Atouguia, que desvela o futuro da Terra. Ouvi!


Joaquim Bispo


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Por seleção em concurso literário, este texto integra a coletânea "A Arte do Terror — Volume 6 ou Apocalipse", projeto da editora Elemental Editoração.

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Imagem: Fernand Cormon, Caim fugindo perante a maldição de Jeová, 1880.

Coleção Museu d'Orsay, Paris.

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10/11/2017

Dia do Juízo Final


(Manuscrito encontrado na gaveta de um aspirante a humorista)

Olá, caras amigas, amigos! Acabei de chegar do Juízo Final, e ainda estou meio deslumbrado. Por isso, desculpem alguma inconveniência que eu diga. A propósito, não vos vi lá! Deixem-me adivinhar: nem foram convidados… Não fiquem aborrecidos — continuem a enviar currículos. Mas devem querer saber como decorreu esta edição outono-inverno do Juízo Final. Eu conto:

O Juízo Final estava marcado para 12/12/12, não só para dar tempo de se acabar o Mundo a 21, conforme profetizado, mas também porque Deus gosta destas datas com números repetidos, para não se esquecer. Mesmo assim, deixou passar o especialíssimo dia 11/11/1111. Parece que nessa altura andava distraído a desenvolver a peste negra, que foi um sucesso algum tempo depois. Já em 8/8/1888, a razão do esquecimento foi a azáfama de tentar convencer toda a gente de que Ele é que tinha criado a Evolução.

Desta vez, cumpriu-se a escritura. O cenário, faustosamente iluminado, deslumbrava: em círculos envolvendo a cadeira d’Ele, legiões de anjos, querubins, serafins e arcanjos perfilavam-se em “ombro arma”. Mais abaixo, santos de todas as maleitas e clérigos de todas as patentes esperavam pacientemente a prometida honraria de entrada no Céu, ao som de fanfarras. Por fim, multidões incontáveis entretinham-se a cochichar ou esticavam o pescoço, ao reconhecer esta ou aquela celebridade que só conheciam do catecismo. A entrada de Maria Madalena provocou mesmo uma enorme ovação e alguns assobios de apreço. A chegada conjunta da irmã Lúcia e da madre Teresa de Calcutá suscitou o primeiro “Misericórdia!” da noite.

Os pagãos estavam visivelmente fora do seu meio e olhavam repetidamente para o relógio, temendo perder o último transporte para casa.

Finalmente, aí pelas dez e meia, ouviram-se trombetas estridentes e a voz cavernosa do Diabo anunciou: «Sua Omnipotência: Deus!» Este entrou arrastando os pés sob uma túnica fora de estação, seguido pelo Filho com ar cabisbaixo, e sentou-se de cenho carregado. O Diabo fez-se ouvir pela segunda vez: «Está aberta a sessão.»

Como era evidente, julgar todos os presentes, um a um, seria tarefa para milénios; isto falando em julgamento justo, com concessão de todos os direitos de defesa aos réus. Para evitar o arrastamento do julgamento e previsíveis recursos para o Supremo, Deus anunciou que a sessão seria única e inapelável. Conforme decretado, assim aconteceu: não houve defesa, ninguém pôde justificar-se e as sentenças foram coletivas.

Com ar zangado, Deus começou: «Aí em baixo, toda essa caterva de beatos, místicos, ascetas, e todos esses padres, freiras e mulás vestidos de preto, ou de branco, e todos esses bispos e cardeais de vermelho, vão para a reciclagem — fundir e voltar a moldar. Motivos? Não Me ouvistes dizer “Crescei, multiplicai-vos e povoai a Terra”? E o que fizestes vós?: abstinência, temperança, mortificação da carne, e outras parvoíces. Diabo, toma nota: reciclagem!»
De todos os pontos desse enorme grupo, ergueram-se pedidos de clemência e protestos de inocência: «Desse crime não posso ser acusado. Estão aí os meus filhos para o provar.» Ou: «Eu era o melhor cliente do bordel da cidade». Ou ainda: «Eu não tenho culpa de que as crianças não engravidem!».

A seguir, disse Deus: «Todos os médicos aqui presentes, veterinários, caçadores, desinfestantes, pasteurizadores, farmacêuticos e todos os utilizadores de químicos mortais, em geral: reciclagem! Não andei seis dias a puxar pela cabeça, para criar milhares de espécies diferentes, e depois virem uns racistas e matarem metade da Criação. Diabo, toma nota: reciclagem!»

Depois: «Budistas, maometanos, cristãos, jeovistas, animistas, jupiterianos, mitómanos em geral e outros crentes em milagres — reciclagem! Não conheço gente mais ignorante do funcionamento da Natureza.»
«Diabo, como são quase os mesmos, junta-lhes os que estão sempre a cantar louvores e a azucrinar-Me os ouvidos com rezas, e os pedintes de favores em geral. Põe-nos dez mil anos a atender pedidos num call center; a ver se começam a ter uma ideia de Inferno!»

«Mais: automobilistas, gestores de indústrias, criadores de vacas e outros produtores de gases geradores de efeito de estufa: reciclagem! Diabo, altera-lhes o design oficial para líquenes. Detesto que decidam os dilúvios por Mim!»

A sessão ainda se estendeu por mais um par de horas, até que Deus, visivelmente cansado, adormeceu. O Diabo deu, então, uma sonora marretada na moleirinha de um querubim, anunciando: «A audiência deste tribunal fica suspensa. Recomeça assim que algum amigo meu tencione carregar no botão do Apocalipse. À mesma hora.»

Um indescritível clamor de protesto pelo tempo perdido não se fez esperar e milhões de vozes alteradas exigiram que os Juízos Finais sejam privatizados. Seguiu-se um engarrafamento infernal que durou quase cinco anos. Foi por isso que só cheguei agora.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giorgio Vasari e Federico Zuccari, Juízo Final, afresco, Interior da cúpula de Santa Maria dei Fiore, Florença, séc. XVI.

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10/03/2016

Génesis e Apocalipse



Miguel Ângelo, Crepúsculo, Alvorada, Túmulo de Lourenço de Médici, Florença, 1524–1534.

Alvorada

O mundo era ermo e inóspito. Os pedregulhos erguiam-se crispados, sobranceiros à aridez de um mar de dunas. As areias estendiam-se, cálidas e mortíferas, até ao horizonte. O céu, ofuscante de branco, não concedia qualquer matiz, em toda a abóbada exposta. Só o Sol ardente, a pique, presidia sobre as coisas inanimadas.

Então, nos interstícios da rocha calcinada, numa brecha ínfima, por uma singularidade improvável, formou-se uma gotícula de orvalho, uma nesga de sombra. O espírito da árvore acordou, reconheceu a sua essência e formou um pensamento.
E um manto verde cobriu a Terra inteira.

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Crepúsculo

As informações que recolhi, Grande Kha, indicam que o clima sofreu variações promissoras nos últimos ciclos. As grandes quantidades de poeiras, fumos, e óxidos de carbono e de enxofre lançadas para a atmosfera, pela espécie animal dominante, criaram impercetivelmente uma capa que, deixando penetrar muita radiação, constituiu um obstáculo à sua libertação para o espaço. O aquecimento progressivo fez derreter as calotes polares, aumentou exponencialmente a evaporação dos oceanos, e favoreceu vagas de incêndios que devastaram as aglomerações vegetais das zonas equatoriais e adjacentes. Tanto vapor de água e cinzas na atmosfera acabou por impedir a luz solar visual de chegar ao solo, mas continuou a deixar penetrar a radiação infravermelha. Sem luz solar, sem fotossíntese, as espécies vegetais morreram e os que delas se alimentavam. O calor tornou a vida impossível à maior parte das espécies tradicionais, até às latitudes polares. Os organismos ficaram literalmente estufados. Neste mundo escuro e escaldante, medram fungos de todas as variedades, que dispõem de muita matéria orgânica em decomposição. Os indivíduos da espécie animal dominante — os 50 milhões que restam — retiraram-se para junto dos polos. Creio que estão criadas, enfim, as condições para a nossa instalação.

Joaquim Bispo

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(Estes minicontos foram publicados no número 15 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2009.)

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