(Manuscrito encontrado na
gaveta de um aspirante a humorista)
Olá, caras amigas, amigos!
Acabei de chegar do Juízo Final, e ainda estou meio deslumbrado. Por
isso, desculpem alguma inconveniência que eu diga. A propósito, não
vos vi lá! Deixem-me adivinhar: nem foram convidados… Não fiquem
aborrecidos — continuem a enviar currículos. Mas devem querer saber como decorreu esta edição outono-inverno do Juízo Final. Eu
conto:
O Juízo Final estava marcado para 12/12/12, não só para dar tempo de se acabar o
Mundo a 21, conforme profetizado, mas também porque Deus gosta
destas datas com números repetidos, para não se esquecer. Mesmo
assim, deixou passar o especialíssimo dia 11/11/1111. Parece que
nessa altura andava distraído a desenvolver a peste negra, que foi
um sucesso algum tempo depois. Já em 8/8/1888, a razão do
esquecimento foi a azáfama de tentar convencer toda a gente de que Ele
é que tinha criado a Evolução.
Desta vez, cumpriu-se a
escritura. O cenário, faustosamente iluminado, deslumbrava: em
círculos envolvendo a cadeira d’Ele, legiões de anjos, querubins,
serafins e arcanjos perfilavam-se em “ombro arma”. Mais abaixo,
santos de todas as maleitas e clérigos de todas as patentes
esperavam pacientemente a prometida honraria de entrada no Céu, ao
som de fanfarras. Por fim, multidões incontáveis entretinham-se a
cochichar ou esticavam o pescoço, ao reconhecer esta ou aquela
celebridade que só conheciam do catecismo. A entrada de Maria
Madalena provocou mesmo uma enorme ovação e alguns assobios de
apreço. A chegada conjunta da irmã Lúcia e da madre Teresa de
Calcutá suscitou o primeiro “Misericórdia!” da noite.
Os pagãos estavam
visivelmente fora do seu meio e olhavam repetidamente para o relógio,
temendo perder o último transporte para casa.
Finalmente, aí pelas dez e
meia, ouviram-se trombetas estridentes e a voz cavernosa do Diabo
anunciou: «Sua Omnipotência:
Deus!» Este entrou arrastando os pés sob uma túnica fora de
estação, seguido pelo Filho com ar cabisbaixo, e sentou-se de cenho
carregado. O Diabo fez-se ouvir pela segunda vez: «Está aberta a
sessão.»
Como era evidente, julgar
todos os presentes, um a um, seria tarefa para milénios; isto
falando em julgamento justo, com concessão de todos os direitos de
defesa aos réus. Para evitar o arrastamento do julgamento e previsíveis recursos para o Supremo, Deus anunciou que a sessão seria única e inapelável. Conforme decretado, assim aconteceu: não houve defesa, ninguém pôde
justificar-se e as sentenças foram coletivas.
Com ar zangado, Deus começou: «Aí em baixo,
toda essa caterva de beatos, místicos, ascetas, e todos esses
padres, freiras e mulás vestidos de preto, ou de branco, e todos
esses bispos e cardeais de vermelho, vão para a reciclagem —
fundir e voltar a moldar. Motivos? Não Me ouvistes dizer “Crescei,
multiplicai-vos e povoai a Terra”? E o que fizestes vós?:
abstinência, temperança, mortificação da carne, e outras
parvoíces. Diabo, toma nota: reciclagem!»
De todos os pontos desse
enorme grupo, ergueram-se pedidos de clemência e protestos de
inocência: «Desse crime não posso ser acusado. Estão aí
os meus filhos para o provar.» Ou: «Eu era o melhor cliente do
bordel da cidade». Ou ainda: «Eu não tenho culpa
de que as crianças não engravidem!».
A seguir, disse Deus: «Todos
os médicos aqui presentes, veterinários, caçadores,
desinfestantes, pasteurizadores, farmacêuticos e todos os
utilizadores de químicos mortais, em geral: reciclagem! Não andei
seis dias a puxar pela cabeça, para criar milhares de espécies
diferentes, e depois virem uns racistas e matarem metade da Criação.
Diabo, toma nota: reciclagem!»
Depois: «Budistas,
maometanos, cristãos, jeovistas, animistas, jupiterianos, mitómanos
em geral e outros crentes em milagres — reciclagem! Não conheço
gente mais ignorante do funcionamento da Natureza.»
«Diabo, como são quase os
mesmos, junta-lhes os que estão sempre a cantar louvores e a
azucrinar-Me os ouvidos com rezas, e os pedintes de favores em geral.
Põe-nos dez mil anos a atender pedidos num call center; a ver
se começam a ter uma ideia de Inferno!»
«Mais: automobilistas,
gestores de indústrias, criadores de vacas e outros produtores de
gases geradores de efeito de estufa: reciclagem! Diabo, altera-lhes o
design oficial para líquenes. Detesto que decidam os dilúvios
por Mim!»
A sessão ainda se estendeu
por mais um par de horas, até que Deus, visivelmente cansado,
adormeceu. O Diabo deu, então, uma sonora marretada na moleirinha
de um querubim, anunciando: «A audiência deste tribunal fica
suspensa. Recomeça assim que algum amigo meu tencione carregar no
botão do Apocalipse. À mesma hora.»
Um indescritível clamor de protesto pelo tempo perdido não se fez esperar e milhões de vozes alteradas exigiram que os Juízos Finais sejam privatizados.
Seguiu-se um engarrafamento infernal que durou quase cinco anos. Foi
por isso que só cheguei agora.
Joaquim Bispo
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Imagem: Giorgio Vasari e
Federico Zuccari, Juízo Final, afresco, Interior da cúpula
de Santa Maria dei Fiore, Florença, séc. XVI.
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