Sei
que estás em Manhufe, a fugir da guerra. Escrevo-te esta carta
depois de me terem falado do quadro que pintaste e não intitulaste,
mas a que todos chamam “Coty”. Acertaram. Conheço-te bem; sei
que mascaraste a minha identidade com a marca desse perfume que sempre
uso.
Podes
achar que ninguém vai reparar, mas há pessoas que me conhecem e vão
perceber tudo e as intimidades que tínhamos. Não devias ter feito
isso. As pessoas vão ver os insetos pousados nas pétalas rosadas e
vão perceber, vão ver os ganchos de cabelo e vão perceber.
Escusavas de ter posto as tulipas. Só não vê quem não quer. Olha
que eu não sou dessas!
Era
bem preferível ficares-te pelos seios e pelas pernas. Disso está a
pintura francesa cheia. Não há Ingres, nem Renoir, nem
Toulouse-Lautrec que não exponha a nudez das modelos e amantes.
Ninguém me vai reconhecer por aí. Agora, os frascos de perfume, as
cartas de jogar… Há quem saiba as habilidades que faço com elas.
Por isso te escrevo.
Continuo
a preferir a discrição de casa, aos grandes salões. Nisso não
mudei. Até nas grades da janela me identificas. Mas me associas a
uma planta carnívora. O que torna ainda mais perversa a imagem que
dás de mim. Fiquei irritada, mesmo magoada. Eu não te merecia isto.
Também
sei que casaste. Espero que sejas feliz aí nesse teu Portugal. Bem
vi nos teus quadros que não esqueceste nunca os potes, as bilhas e
outras vasilhas de feira. Tonto!
Quando
acabar a guerra, vem visitar-me. Quero mostrar-te a minha nova
carpete. É florida. Vais gostar dela, tanto como daquela dos
quadrados. Mas não é para depois me pintares coberta de cravos e
margaridas e gladíolos, que eu não sou dessas. Maroto!
Beijo
da tua,
"Coty"
Joaquim
Bispo
Imagem:
Amadeo de Souza-Cardoso, Título desconhecido (Coty), 1917.
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