O que aconteceu na manhã do Domingo de Ramos conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém, vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas ao Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, aparelharam-na com simples panos, ele montou-a, e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica, cabelo comprido e cabeça descoberta, foram recebidos com aplausos e cânticos pelos transeuntes, sobretudo jovens, aparentemente entusiasmados com a performance, e houve quem estendesse no chão folhas de palma e mesmo roupas pessoais, para o grupo passar.
O
episódio matinal foi ignorado por quase todos os correspondentes
estrangeiros, devido ao seu carácter irrisório e quase anedótico.
Quem
me relatou os pormenores deste caso foi um homem de nome Zaqueu que,
por ser pequeno, trepou a uma palmeira e assistiu a tudo. Disse-me
que o chefe do grupo nasceu na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré,
atualmente ocupada por Israel. Tornou-se um revoltado, quando viu a
terra, que ele amava desde pequeno, ser colonizada, ocupada e
apropriada aos poucos, por gentes, vindas de várias partes do Mundo.
Viu que essas gentes eram incapazes de uma identidade médio-oriental,
pois procuravam-na no território mas rejeitavam-na na cultura. Viu a
segregação feroz do seu povo e a separação efetiva de territórios
irmãos, devido à construção de uma muralha de betão de oito
metros de altura e setecentos quilómetros de comprimento, tão cruel
que chega a isolar populações, como as 450.000 pessoas de Jerusalém
oriental.
Em
vista do meu espanto, disse-me que, sem o quererem assumir, os
dirigentes israelitas estão determinados a reconstituir a grande
terra de Canaã das escrituras tradicionais, e a usar a força que
for precisa contra os opositores à anexação do território
palestiniano — destruindo cidades, utilizando armas proibidas
contra populações civis, exterminando indiscriminadamente, sem
olhar a idades. Tudo isto perante os olhos do Mundo e apesar do
clamor internacional, incapaz de contrariar a posse das únicas armas
nucleares da zona e o apoio incondicional do novo império mundial,
que parece disposto a tudo para ter um aliado fiel junto ao cobiçado
oceano subterrâneo de petróleo.
Revoltado,
como tantos outros palestinianos que esbracejam para ver o seu povo
liberto do domínio estrangeiro, o jovem nazareno, porém, não se lançou nos
braços da OLP ou do Hamas. De carácter meditativo, formou um grupo
de ativistas pacifistas que pretende, através da persuasão e de
ações não violentas, consciencializar os habitantes de ambos os
lados para a necessidade de se aceitarem mutuamente e partilharem o
território como dois estados irmãos. Diz ele que não faz sentido
que Israel queira reconstituir um Estado confessional com o mesmo território que
dominou nos tempos áureos, mas que foi desmembrado há mais de
dezanove séculos. Essa pretensão, diz, é tão absurda como os
Árabes quererem reconstituir o califado de Córdoba no território
da Península Ibérica, extinto, também, há séculos, ou o povo
Inca tentar reanimar o seu antigo império destruído pelos
Espanhóis, ou os descendentes dos Cátaros reivindicarem o Languedoc
para reorganizarem a sua religião. E que, a exemplo de Israel,
organizassem um Estado militarizado e passassem a expulsar os
habitantes atuais desses territórios, recorrendo ao morticínio, se
necessário.
Avesso
à violência, também condena os atos de intolerância dos
palestinianos para com os ocupantes, mas compreende o seu desespero.
Diz ele, falando aos que param a ouvi-lo:
— Um
homem plantou uma vinha, cavou-a, tratou-a, construiu-lhe um lagar e
uma adega. Um dia, vieram uns lavradores e propuseram arrendar-lhe a
vinha. Assim se fez, mas quando o dono enviou emissários a recolher
a renda, estes foram apedrejados, feridos e alguns mortos. O mesmo
fizeram ao filho do dono, cuidando apoderar-se definitivamente da
herança dele. Agora, dizei-me compatriotas, quando vier o dono da
vinha, que fará ele àqueles lavradores?
Com
exemplos propícios à reflexão, como este, vai tentando evidenciar
a razão dos desapossados.
Mostra
ser muito sagaz, embora idealista. Nicodemo, um membro do Knesset que
acedeu a comentar o episódio, é da opinião que esta entrada
messiânica em Jerusalém foi decalcada do Antigo Testamento, como
estratégia pensada para chegar aos judeus mais conservadores, que
esperam ainda o Messias. Entrar em Jerusalém a cavalgar uma burra
parece ter sido preparado meticulosamente para corresponder à
profecia de Zacarias (Zc 9,9): «Regozija-te ó filha de Sião. Eis
que vem a ti o teu Rei, justo e salvador. Ele é humilde e vem
montado numa burra, e sobre o burrico da burra.»
Aparentemente,
esta mensagem visual não passou, apesar da relativa algazarra que os
jovens militantes anti-guerra produziram durante todo o percurso da
comitiva até à esplanada do Muro das Lamentações, onde muitos
judeus absortos cabeceavam a afirmação dos seus preceitos
religiosos. Aí, talvez por não ter tido a atenção que esperava,
começou a gritar palavras de ordem em aramaico, a plenos pulmões,
provocando os orantes, enquanto puxava as melenas a uns e
desbarretava outros, sempre numa atitude de grande irreverência. O burburinho foi imediatamente detetado por uma patrulha
militar que, com grande aparato bélico, o intimou a parar.
O
homem não só não parou como estendeu o braço para os soldados
com dois dedos da mão levantados, talvez a formar o V de vitória.
Não se sabe se os soldados entenderam esse gesto como agressivo, ou
se simplesmente não toleraram a desobediência; certo é que alguns
disparos foram ouvidos e o nazareno caiu com a túnica ensanguentada.
Só então as agências noticiosas se movimentaram e conseguiram
comprar uma gravação de telemóvel feita por um turista.
O
vídeo passou uma dúzia de vezes nas televisões, acompanhado da
nota de que o desordeiro morrera pouco depois no hospital e de que os
companheiros tinham sido presos e estavam acusados de alteração da
ordem pública, que poderá, eventualmente, evoluir para terrorismo.
Neste
dia em que vos falo, o episódio está esquecido. Um enorme equívoco
continua a matar silenciosamente naquela área. O nazareno pacifista
foi só mais uma vítima anónima deste equívoco.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Giotto, Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém [Domingo de Ramos], afresco, Capela Scrovegni, Pádua, Itália, 1305.
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(Esta
crónica narrativa, com o título “Um muro de intransigência” foi
publicada no número 23 da revista literária virtual Samizdat, de
dezembro de 2009.)
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