— Então,
por que é que lhe fazem a festa a 13 de Junho? Amanhã. —
estranhava o companheiro, um homem de cabelo ralo e barba curta
esbranquiçada.
— É
o dia da sua morte aos 36 anos em Pádua. Aproveitou-se para dar
cunho religioso a umas festas das colheitas que havia na altura. Mas
esta noite é que são as grandes festas populares.
— Bonita
igreja!
— O
povo de Lisboa fez-lhe aqui uma capela, alargada para igreja no
século XV. O terramoto deitou-a abaixo, mas foi reconstruida através
de peditórios. Montavam tronos com a imagem dele, aí pelas vielas,
e pediam umas moedas, como ainda hoje.
— Já
era venerado!?
— Sim,
e com razão! O António era um grande conhecedor das escrituras e um
orador notável. No fim da vida tinha multidões a ouvi-lo e a crerem
que fazia milagres. A fama era tão consensual que é, ainda hoje, o
santo mais rapidamente canonizado: menos de um ano depois da morte.
O
duo, embrenhado na conversa, ia descendo placidamente a Rua das
Cruzes da Sé, enquanto a tarde caía, sem se aperceber de alguns
olhares irónicos às suas roupagens.
— Ó,
João, ele teve alguma formação? — perguntou o mais velho.
— Estás
mesmo esquecido! Sim, estudou aqui na Sé até aos quinze anos e
esteve mais uns três em S. Vicente de Fora. Depois passou sete anos
em Santa Cruz de Coimbra onde foi ordenado sacerdote. O ensino lá
era bom!
— Mas
ele não era franciscano?
S.
João encheu um pouco mais o peito semi-descoberto, sem suspirar.
— Pedro,
ele ficou muito exaltado com a fé e o exemplo de cinco franciscanos
que foram evangelizar os gentios de Marrocos e que foram mortos pouco
depois. Ele viu-os partir de Coimbra e viu chegar os seus corpos.
Esse acontecimento representou uma viragem na sua vivência
religiosa. Só então se mudou para os Franciscanos e mudou também
de nome, porque de batismo era Fernando de Bulhões.
— Ah,
sim?! — O rosto de S. Pedro adquiria um vivo interesse nas palavras
do companheiro.
Agora
entravam na Rua de S. João da Praça, embrenhando-se em Alfama. Aqui
e ali cheirava a manjerico e a sardinhas assadas.
— Rumou
também ele a Marrocos, mas adoeceu e acabou por ir parar a Itália.
— Bela
terra! Bem, quando lá cheguei não era flor que se cheirasse, mas
agora ninguém me tira Roma!
— Os
ideais franciscanos estavam então a atrair vocações e foi o
próprio Francisco de Assis que nomeou o António para ensinar
Teologia em Bolonha. Também esteve no sul de França onde ganhou
fama a converter heréticos.
Já
havia muita gente nas ruas, mas ainda se andava bem. Chegaram a um
pequeno largo onde estavam montadas duas esplanadas. S. João olhou a
procurar mesa e perguntou a S. Pedro:
— Sentamo-nos?
— Sim,
sim! Já descansava um bocadinho.
Instalaram-se,
pediram caldo verde, sardinhas e vinho tinto.
— Estou
impressionado! — S. Pedro avaliava o fluxo de gentes na rua.
— E
ainda não viste nada! Nesta noite, há arraiais e bailaricos em
todos os bairros e faz-se uma competição de danças ao som de
marchas. Há muito em que comparecer. Foi por isto que ele pediu
desculpa e se despediu de nós tão cedo. E há também uma cerimónia
em que casam, ao mesmo tempo, dezenas de pares de noivos, porque o
António ganhou fama de casamenteiro. As solteiras fazem-lhe
promessas, se o António lhes arranjar noivo. Quando isso não
acontece é que é o diabo! Algumas vingam-se e viram-no de cabeça
para baixo ou roubam-lhe o Menino. — S. João não se continha e
ria divertido a imaginar a cara de enfado de Santo António quando
lhe acontecia tal percalço. — Os pedidos são tantos e, às vezes,
tão difíceis de atender, que nem com milagres!
S.
Pedro acompanhava-o no riso em notas mais graves.
— Também
ouvi dizer que fez carreira militar…
— Essa
é a mais engraçada! No século XVII, um regimento de Lagos tomou-o
como protetor e incorporou-o. E alguns anos depois promoveu-o a
Capitão. Aquando das Invasões Francesas, foi promovido a
Tenente-Coronel. Gratidão castrense!
Uma
aparelhagem começou a tocar uma música popular.
— Tratam-no
bem na arte? — S. Pedro ia tentando comer as sardinhas sem meter
parte das largas mangas no prato.
— Sim.
Geralmente tem o Menino ao colo e um livro. Também costuma segurar
um lírio. Às vezes, tem o Menino sobre o livro, ou sentado ou em
pé. Outras vezes representam-no a pregar aos peixes.
A
música fizera aumentar a vozearia e era difícil ouvirem-se.
— Aos
peixes? Isso não foi aquele padre jesuíta, António Vieira, não é?
— Sim,
mas foi inspirado na pregação do António aos peixes, perto de
Rimini. Aliás, já o Francisco de Assis falava aos “irmãos
pássaros”!
Acabada
a refeição, incorporaram-se na enchente de povo que percorria
Alfama a comemorar o Santo António. Foi um erro. A progressão era
difícil, os mantos de ambos enredavam-se nas outras pessoas, levavam
empurrões e as sandálias não os protegiam das pisadelas. Num
encontrão mais agressivo, S. Pedro voltou-se, de olhos raiados. S.
João agarrou-o, gentil mas firmemente. Olhou-o nos olhos e disse-lhe
muito sério:
— Pedro,
tem calma! Já passámos por coisas piores, se ainda te lembras!
S.
Pedro acalmou, mas resolveram sair rapidamente do meio daquela turba.
Apanharam
um táxi e S. João acompanhou S. Pedro ao aeroporto. Abraçaram-se:
— Dá
cumprimentos ao Chico! Diz-lhe que vou visitá-lo a Roma assim que
acabarem as festas por aqui.
Depois,
rumou à estação do Oriente para apanhar o comboio para o Porto.
Ainda tinha três horas de viagem pela frente. Felizmente, não tinha
pressa, que ainda faltava uma dúzia de dias para as festas em sua
honra.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Nota de vinte escudos, 1964, Portugal.
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