— Não
vês que estás a ir por maus caminhos, meu filho? — O anjo adotava
uma postura paternal, a face preocupada, o gesto complacente.
— Eu
nem sei se quero ir por bons caminhos! — retorqui, desafiador.
Quando
ele se materializara no meu quarto de solteiro, com ares de arcanjo
Gabriel, passava das três da manhã. Estranhei, mais do que me
assustei. Tinha estado na comissão de autogestão da fábrica a
tratar de problemas deixados pelo patrão fugido e, proposta puxa
discussão, tinha bebido umas três ou quatro cervejas. O verão de
75 ia quente em todos os sentidos, a Revolução avançava com
autogestões nas fábricas e nos campos e auto-organização das
populações em todos os domínios. Havia um sentimento no ar de que,
finalmente, tudo era possível. E tanto que havia para fazer! O mais
difícil era a mudança das mentalidades. Todos tínhamos sido
condicionados para ser engrenagens de uma sociedade de obedientes,
castos e tementes. De repente, tinham-se rompido as comportas que
mantiveram a multidão calada e quieta, e esta inalava, impertinente,
os primeiros aromas da liberdade.
Agora,
até de replicar a um anjo eu me sentia capaz:
— E,
além do mais, o que é que tens com isso?
— Não
penses que podes viver como queres: lascivo, descrente e subversivo.
Tudo está determinado e o teu lugar está muito bem definido.
— Eu
posso fazer o que quiser! Desde que não restrinja a liberdade de
ninguém.
— E
não achas que roubar a fábrica de alguém é atentar contra a sua
liberdade?
— Não
é roubar, é pôr ao serviço da comunidade — a começar pelos que
lá gastaram o seu esforço, o seu tempo, as suas vidas —, o que
alguém explorou e abandonou. Não é a sua fábrica, era a sua
máquina privada de sacar mais-valias.
— Não
vês que tudo isto é apenas um remoinho passageiro!? Não vês qual
é a ordem natural das coisas? Quando a poeira assentar, volta tudo
ao que era. E então, tu estarás perdido.
— Não
me vão prender por tentar ajudar a pôr a fábrica a funcionar outra
vez, está descansado!
— Não
é dessa perdição que eu estou a falar. — E continuou a pôr água
na fervura revolucionária: — Quem me mandou não gosta de
rebeldes. Gosta que a hierarquia esteja muito bem definida e que o de
baixo não desobedeça ao de cima. Gosta que a moral e a religião
sejam o guia das nações e que os seus dirigentes sejam austeros,
mas bondosos, como os pais são para os filhos. Agora, tu és um
filho pródigo que não respeita o seu pai.
— Eu
vejo é que o teu ar paternal, de há pouco, está a transformar-se
na fúria contida de um mestre-escola autoritário. Por que é que
quem te mandou não prefere a liberdade das pessoas e a livre adesão
aos seus preceitos? Ou a livre rejeição!? Como é que se pode
sentir satisfeito de mandar em autómatos, que se lhe sujeitam apenas
pelo medo do castigo? Não repara como são alienadas as pessoas que
se lhe submetem, que nem pensamentos de revolta podem ter?
— Ele
vê é que, com a ordem que instaurou, todos eram felizes. Já viste
alguém feliz nesta revolução?
— Sim,
muitos, loucos de felicidade. Pela primeira vez são donos das suas
vidas.
— Loucos,
dizes bem! A revolução pôs pais contra filhos, filhos contra pais,
marido contra mulher, mulher contra marido. Os partidos, de que até
o nome é revelador, destroem a harmonia da sociedade.
— Os
partidos são a expressão, crispada mas necessária, que faz
circular na sociedade os vários conceitos da sua própria
organização. Vocês não têm partidos? Os anjos dão-se bem com os
querubins? E estes com os serafins? Ou também têm interesses de
classe?
— Lá,
donde eu venho, a harmonia não tem ameaças. Todos conhecem e
aceitam o seu nível celeste.
— Não
será bem assim! Tanto quanto eu sei, já houve revoltas. Não foi lá
que Lúcifer bateu o pé ao teu patrão?
— Sim,
há esse episódio…
— E
essa tal harmonia de que falas não corre o risco de um dia ser
alterada pela tomada do poder por Lúcifer?
O
anjo, de que não cheguei a saber o nome, riu-se com gosto. Perdeu
por momentos o ar, umas vezes pedagógico e protetor, outras tenso e
vagamente ameaçador, e riu-se demorada e maliciosamente:
— O
Lúcifer foi um caso de sucesso. Foi das revoltas melhor recuperadas
de que há memória. Achas que se ele fosse antissistema torturava os
que lhe mandamos? Pelo contrário, procuraria tratá-los o melhor
possível para ganhar aceitação popular. Não; o trabalho dele é
um pouco desagradável, porque tem aquela falta cívica para pagar,
mas está tão integrado e é tão necessário ao nosso sistema, como
é o sistema prisional em qualquer sociedade humana. Aliás, quem me
enviou está muito satisfeito com ele. O seu Inferno é a cúpula que
completa o edifício teológico arquitetado.
Não
era nada de que eu não tivesse já desconfiado, mas a confirmação,
assim, de chofre, provocou-me uma náusea de repulsa por um desígnio
tão totalitário.
Em vez de me convencer da perfeição do sistema e de me submeter aos argumentos do anjo, fui invadido por uma onda irreprimível de rejeição. Afinal, a oposição não era entre umas entidades sobrenaturais benfazejas, e outras maléficas, mas entre a liberdade de autodeterminação do Homem, e o obscurantismo das superstições e dos mitos, em conluio com as forças da exploração. Abri a janela e aspirei o ar fresco da noite.
Em vez de me convencer da perfeição do sistema e de me submeter aos argumentos do anjo, fui invadido por uma onda irreprimível de rejeição. Afinal, a oposição não era entre umas entidades sobrenaturais benfazejas, e outras maléficas, mas entre a liberdade de autodeterminação do Homem, e o obscurantismo das superstições e dos mitos, em conluio com as forças da exploração. Abri a janela e aspirei o ar fresco da noite.
— Tretas!
Andamos há milénios rodeados de tretas, que só servem para a
classe exploradora nos manter mansos. Não acredito em nada disso.
Nem em demónios, nem em anjos. Não quero. E, mesmo que acreditasse,
seria contra! — A minha voz soou com uma tal limpidez, como se eu
não tivesse dito nada antes.
Ou
fosse porque os últimos vapores de álcool abandonaram os meus
pulmões, ou porque os mitos só se instalam na cabeça de quem lhes
dá guarida, o certo é que, quando me voltei, não vi anjo algum.
Acho que nessa noite dei o meu passo revolucionário mais
consequente.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
“Kouros” de Kroisos, Anavyssos, c. 530 a.C., Museu
arqueológico de Atenas.
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(Este
conto foi publicado no número 18 da revista literária virtual
Samizdat, de julho de 2009.)
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