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10/12/2016

Pouca sorte


Há dias em que um homem não devia sair de casa; o problema é que só o sabe tarde de mais, como bem se lamenta o meu vizinho António, que me contou o que se segue:

Foi aos Correios levantar uma encomenda e deu de caras com um antigo colega da Secundária, a quem na altura toda a gente chamava «Fosquinhas». Feitas as saudações e as manifestações de regozijo adequadas a um desencontro de mais de vinte anos, António fez a pergunta que o perdeu:
Então, vai tudo bem contigo?
Gustavo, o amigo, desforrando-se de um longo jejum de ouvintes complacentes, sorriu tristemente, antes de desenrolar o seu manto de frustrações e infelicidade:
Sabes lá?! Não tenho sorte nenhuma. Tudo me corre mal.
Não me digas! Não tens trabalho? — preocupou-se António.
Tenho, mas mal dá para sobreviver. Sou o responsável pela fotocopiadora do meu serviço...
Mas isso deve dar um ordenado muito baixo! Não tens tentado progredir?
Aquilo lá é um covil de mafiosos. Fazem o joguinho só entre os amigalhaços.
Mas, tens concorrido? Ou nem concursos fazem?
Concorrer? Para quê? Está tudo cozinhado. Uma vez experimentei, mas disseram que eu não tinha perfil.
E tu, tens-te valorizado? Voltaste a estudar? Fazes cursos profissionais?
Tenho lá dinheiro para isso!
Mas o teu serviço não faz cursos de atualização e aperfeiçoamento?
Falaram-me nisso duas vezes, mas já sei como é. É só para justificarem meter o sobrinho do chefe ou o primo da secretária. Para fantochadas dessas não contem comigo!
António começava a ficar sem ideias para melhorar a vida do amigo.
Tens filhos, casaste?
Sim, casei, mas não correu bem. Seis meses depois de casarmos, ela voltou para casa da mãe dizendo que «preferia não voltar a ver homem algum, do que viver com um falhado destes». Diz-me se isto não magoa! A minha vida é um vale de lágrimas. Mas ela tem razão, eu não presto — choramingou Gustavo.
António sentiu-se desconfortável com o amigo a lacrimejar à sua frente. Olhou em volta a medir o impacto nos presentes.
Olha, Gustavo, anda daí apanhar ar. Claro que tu tens valor, toda a gente tem.
Não sei, António. Os outros passam-me sempre à frente. Nasci para sofrer.
Nada disso. Só precisas é de um empurrãozinho. Amanhã podes ir à baixa, aí às dez horas? Vai ter comigo que eu vou ver o que se pode arranjar.

No dia seguinte, Gustavo apareceu às dez e meia.
Eh, pá, desculpa. Não estou habituado aos transportes cá para baixo.
Tudo bem. Olha, estive a falar aí com um diretor, disse-lhe que eras um gajo porreiro, a ver se te arranjava qualquer coisa para começar, mas que fosse melhor do que responsável da fotocopiadora. Ele disse que estão a precisar de um operador, só para meter dados, para já. Sabes Excel? Aquelas folhas de cálculo do Office — especificou António, ao ver a cara de incompreensão do amigo. — Informática…
Ah, não; nunca liguei a computadores.
Não faz mal, eu dou-te uma ensaboadela. É muito intuitivo. Não podes meter férias lá nesse emprego para vires uma semana à experiência?

Enquanto Gustavo não conseguia um tempo, foi aprendendo uns rudimentos de Excel no computador do amigo. Quando ia lá a casa, tecia sempre comentários elogiosos às pinturas de António, que este tinha espalhadas pela casa.
Tu és genial! Eu também gosto de pintura mas não tenho jeito nenhum.
Já experimentaste alguma vez?
Sim, uma vez comprei umas aguarelas no supermercado e estive a pintar, mas saiu uma borrada…
Mas, se gostas, porque é que não vais para um desses cursos de pintura, que até as juntas de freguesia têm?
Isso é um dom. Ou se nasce com ele ou não.
Olha que eu melhorei bastante nesses ateliês. Dizem que uma obra é muito mais transpiração do que inspiração. O jeito melhora com a prática. E as técnicas ajudam.
Ná, não é para mim. Eu escrevo é uns poemas e uns contos. Já tenho uns sete ou oito. Estão lá arrumados numa gaveta.
A sério? Gostava de ver isso!
Não, não! Não estão grande coisa. Não tenho coragem de os mostrar a ninguém. São só para mim.
Se quiseres publicar, terás que os mostrar a alguém… — ironizou António. — E escrever muitos mais. Os escritores conhecidos dizem que escrevem todos os dias.
Gostava de ser escritor, mas não tenho muita pachorra para escrever. E, mesmo quando estou entusiasmado, às vezes bloqueio, por não saber muito bem o que hei de escrever e como.
Mas, se achas que gostas de escrever, porque é que não investes nessa área? Mesmo que seja só para teu prazer. Quando se anda satisfeito, até a vida profissional corre melhor. Há muitos livros práticos, há workshops, há clubes de leitura. E há as faculdades. Não fazem escritores, mas fornecem ferramentas muito importantes.
Tirar um curso? Estás parvo! Não tenho dinheiro para isso, nem estou para passar anos a polir os bancos da universidade só para escrever. Quando quero, escrevo, mesmo que não saia muito bem. Acho que é uma questão de sensibilidade, mais do que técnicas ou conhecimentos.
Eu só queria ajudar! — arrependeu-se António.

Uns tempos depois, Gustavo chegou a fazer a tal experiência na empresa onde António trabalhava, mas não passou de uma semana. O diretor, de mãos na cabeça, veio ter com António, queixando-se que o amigo ficava parado a olhar para o ecrã, que introduzia dados trocados, que não tinha apetência por conhecer novas funcionalidades do programa. Pediu desculpa, mas que assim Gustavo não podia ficar.
Quando António comunicou a decisão ao amigo, este mostrou-se muito abatido:
Comigo, corre sempre tudo mal. Eu não te disse que não tenho sorte nenhuma? Felizmente, posso voltar para o mesmo trabalho com a minha fotocopiadora, que essa conheço eu bem. Mas já me disseram que o meu chefe soube desta escapadela e me vai cortar as horas extraordinárias. Já viste a minha pouca sorte?!
Eu só queria ajudar! — desculpou-se António com ar pesaroso, mas por dentro ria impiedosamente.

Joaquim Bispo

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Imagem: António Dacosta, Serenata Açoriana, 1940.
Centro de Arte Moderna / Gulbenkian, Lisboa.

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(Este conto foi publicado no número 25 da revista literária virtual Samizdat, de fevereiro de 2010.)
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