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10/01/2022

Meia dúzia de safanões

 



«O novo panorama terrorista mundial obriga-nos a gastar muitos recursos e a equacionar outras formas de guerra.» — alertava a caixa introdutória do artigo da revista. O assunto interessava a Patrício Neves. Verificou as outras “gordas”: «Até aonde devemos ir no combate ao terror? De quanta humanidade estamos dispostos a abdicar? Devemos aceitar descer aos níveis de desumanidade dos terroristas, desde que nos salvemos e aos nossos compatriotas?»

Enquanto os colegas analisavam o conteúdo de uma escuta à comunicação de um suspeito, foi lendo o corpo do artigo. De repente, cresceu a agitação à sua volta. Parecia que as semanas de vigilância nas comunicações tinham dado frutos. Hasnain, o intérprete que trabalhava para os serviços secretos, foi perentório:

Bomba! Eles falar em bomba. Falar “Baixa-Chiado”. Passar gravação outra vez!

Não foi possível detetar a origem da chamada, mas o SS já conhecia a morada do recetor: uma casa decrépita na zona da Mouraria.

Eram sete e meia da manhã quando os agentes entraram na rua do Capelão, já de saídas bloqueadas. O suspeito, um paquistanês de menos de 30 anos, não ofereceu qualquer resistência. Uma busca minuciosa encontrou uma dúzia de telemóveis e uns vinte sacos, de cinco quilos, de farinha. Antes das nove, iniciou-se o interrogatório nas instalações dos Serviços. Ahmid, o suspeito, garantia que não sabia quem lhe tinha telefonado.

Tu não me venhas com tretas! Quem é que te telefonou? Era uma ordem para um atentado? Fala, senão faço-te engolir esses dentes! — irritava-se o agente Moreira.

Eu não sabe. Telefone tocar, Ahmid ouvir.

Parecia sincero, mas com terroristas nunca se sabe.

Mas quem foi e o que queria?

Não sabe. Falar Lisboa, perguntar loja fruta.

Não se passou disto toda a manhã, até que, pelas duas da tarde, os quatro agentes envolvidos na detenção, cansados e irritados, resolveram fazer uma pausa para comer qualquer coisa. Um deles sugeriu uma conhecida adega do Lumiar, ali perto. Àquela hora já devia ter lugares.

Assim que se sentaram, veio o assunto de serviço à baila:

Eh, pá, não podemos ficar nisto, conversa, conversa… e nada — equacionava o Martins.

E uma chapada de vez em quando — brincava o Mendes. — Só para aquecer…

Isto se fosse na América não ficava por aqui. O Trump já disse que os serviços lhe garantiram que a tortura resulta — lançava o Moreira. — «Absolutely!»

Eles lá não são de modas. Vai tudo a waterboarding — concordava o Martins.

Mas eles não tinham proibido isso? O Obama!

Esta cena da verdade alternativa, de que agora se fala muito, já tem muita tradição por aquelas bandas — teorizava Neves, o mais calado. — Eles têm um problema com a verdade. Condenaram a Manning; e vão engavetar o Snowden e o Assange, se os apanharem lá. A verdade está amordaçada e emparedada nas masmorras da Administração.

Eh, lá! Temos poeta — ironizava o Mendes.

Quando atacaram o “borrego no forno”, passaram a falar abertamente da técnica de tortura conhecida como waterboardind ou afogamento simulado, talvez por uma mórbida associação de carnes indefesas.

Dizem que aquilo resulta mesmo. Porque o tipo com o pano encharcado na cara não consegue respirar, porque, se respirar, respira água. Se a água entra na faringe, o tipo engasga-se e a sensação de morte iminente por afogamento é avassaladora — explicava o Martins.

Eh, pá, como é que sabes isso tudo? — perguntava o Mendes. — Andaste a pesquisar... Não me digas que queres aplicar isso ao nosso Ahmid?

Mendes! Porra. Contém-te! — ralhou o Martins, que parecia a voz que congregava as dos outros. — Mas temos da fazer alguma coisa — adiantou em voz baixa, enquanto rastreava o resto da sala.

Eu também acho — apoiava o Moreira. — Até uma gaja como a Meryl Streep disse uma vez que, meditando sobre o assunto, chegou à conclusão que, se a tortura de um suspeito de terrorismo evitar milhares de mortos, então acha a tortura aceitável.

Nem de propósito — atalhou o Neves, enquanto sacava do bolso interior do casaco a revista que estava a ler nessa manhã. — Em 1932, Oliveira Salazar dizia isto: “Os presos maltratados eram sempre, ou quase sempre, temíveis bombistas. Só depois de empregar meios violentos é que eles se decidiam a dizer a verdade. E eu pergunto a mim próprio se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não justifica, largamente, meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras.” Salazar e Meryl Streep, a mesma luta...

— “Meia dúzia de safanões”… O tipo era um cómico — ironizava o Mendes, refeito.

Eh pá, não vamos misturar — reagia o Moreira. — Esta gaja é lá dos direitos humanos e dessas merdas, que agora até disse, referindo-se ao Trump, que “desrespeito convida ao desrespeito e violência incita à violência”.

Adoro coerências — adiantou o Neves. — O desrespeito do Trump incomoda-a, mas estava disposta a torturar prisioneiros.

Para salvar vidas…

Eh, pá, se a gente cede nos princípios, às tantas estamos a fazer o mesmo que os terroristas — reincidia o Neves.

Nós estamos a defender os nossos concidadãos. Esses terroristas não têm nada que ver com os nossos valores, com a nossa cultura. Se for preciso dar a volta a algum… temos pena.

Os nossos valores... antes ou depois de torturarmos pessoas?

Arre, que é estúpido! — exagerou o Moreira. — Desculpa. Ó Neves, porra!; não somos todos iguais. Eles são outra coisa. E se ainda por cima nos querem matar…

Eu também já li — defendia-se o Neves. — Parece que aquilo é lixado. Mesmo que o tipo desconfie que é simulação, nunca tem a certeza. A aflição é aterradora. O tipo fica traumatizado durante muito tempo. E há tipos que desistem e deixam entrar demasiada água nos pulmões e, se não morrerem, ficam com sequelas graves. Mas o mais ingrato, nesta cena de torturar ou não torturar, é que os resultados não são fiáveis. Um tipo nessas circunstâncias diz qualquer coisa para se livrar do que lhe parece uma morte certa.

É isso que é preciso, que fale, que diga o que nos interessa. Achas que um tipo a afogar-se vai pensar em dizer uma mentira? — racionalizava o Martins.

Se ele não tiver uma verdade para dizer, ou se a verdade que está a dizer não for aceite, ele diz o que lhe vier à cabeça. É o caso dos inocentes.

Sempre me saíste um lírico, ó Neves… Achas que aquele tipo que lá temos está inocente? Achas que não sabe quem lhe estava a telefonar? O Hasnain ouviu bem falar em bomba. Eh, pá, temos que dar este pequeno passo. Para defendermos a vida dos nossos concidadãos, que é a nossa missão sagrada. Ficas de consciência tranquila se falharmos e explodir uma bomba na estação de metro da Baixa-Chiado? Era uma carnificina.

O Mendes tinha-se calado de vez. As piadas não cabiam ali. O Moreira estava intimamente satisfeito com a argumentação do Martins. Concordava a cem por cento. O Neves sentia-se desconfortável, mas tinha dificuldade em arranjar argumentos. Não era fácil contrapor postura humanista, civilizacional, ao perigo de atentado potencial. Como arriscar? Havia uma enorme assimetria de risco envolvido.

Sem autorização de cima, temos de ser muito cautelosos. Não podemos forçar demasiado. Se o tipo não falar às primeiras, paramos, ok? — tentou ainda o Neves.

De regresso aos Serviços, passaram o resto da tarde com perguntas marginais.

Para que queres tanta farinha em casa? É para fazer uma bomba lenta?

Fazer frito, senhor. Ahmid vende na loja.

E os telemóveis?

Ahmid arranja.

Depois de todo o pessoal administrativo ter saído, levaram o suspeito para uma garagem e amarraram-no de costas sobre uma bancada, com a cabeça um pouco mais baixa.

— “It’s now or never”, Ahmid. Ou falas agora ou já não falas mais. Quem é que te telefonou?

O paquistanês apresentava um olhar aterrado. Até ali, tudo tinha sido mais ou menos esperado, mesmo as bofetadas. Agora as movimentações dos quatro homens indicavam que vinha aí violência extrema. Esqueceu-se até de responder. Um dos agentes colocou-lhe um pano sobre a cara, enquanto outro começou a verter água de um jarro sobre a zona entre boca e nariz. Ahmid manteve a boca fechada por uns momentos, sentindo alguma a inundar o nariz e a entrar para a garganta. Aguentou quase meio minuto sem respirar, mas um engasgamento irrefreável tomou conta do seu corpo. Conseguiu expelir alguma água, mas outra entrava e nenhum ar. Tossia água para fora e para dentro. Começou a estrebuchar violentamente. Uma angústia terrível assaltou-o. O coração ribombava. A morte devia ser aquilo. Lançou um último e desordenado pensamento para o seu jovem irmão que ficara no Paquistão.

Quem é que te telefonou? — foi o som que se ordenou um pouco, depois de lhe tirarem o pano da cara. O coração batia freneticamente. Inspirou num urro, tossiu convulsivamente, sentiu o ar a queimar nos pulmões. — Quem, quem? — repetia a voz. Antes que lhe colocassem o pano de novo sobre a cara, Ahmid gritou:

Allahu Akbar!

Eu não disse? — afirmava-se o Moreira, segurando o pano ensopado sobre o rosto de Ahmid. — Dá-lhe mais!

Pessoal, calma! Tínhamos combinado não exagerar — afligia-se o Neves.

Alguns sons sarcásticos dos colegas foram a primeira resposta.

Ó Neves, estamos nisto juntos — ripostou o Martins. — Se não assumes as tuas responsabilidades, sai daqui. Cá estão os colegas para fazer o trabalho que o menino não quer fazer. Sem problema. Vai! Vai lá! Mas já sabes… Não fales disto a ninguém, ok? Ok?

Neves aceitou a sugestão ordenada e humilhante. Meteu-se no carro e foi para casa, profundamente deprimido. Sentia-se incompetente e desenraizado. Começava a questionar seriamente a sua vocação para agente secreto. Parecia ser uma questão de estômago.

Joaquim Bispo

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Imagem: Fernando Botero, Abu Ghraib (série), 2005.

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Este texto foi um dos selecionados para a 30ª edição (novembro/dezembro de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 134 a 138).

https://drive.google.com/file/d/1qxX4CyYq2aNHEmXCLUBZOq6w0gIc__-y/view

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Também integra a coletânea Civilização e Barbárie da Revista Gueto, 1º semestre de 2017, edição especial, pp. 63–68.

https://gueto.files.wordpress.com/2017/07/001_revista_especial.pdf

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