Na
última passagem de ano, desloquei-me com o grupo familiar habitual
ao espaço fronteiro à Torre de Belém, onde a autarquia prometia
música e fogo de artifício. A surpresa foi muito agradável. Até à
meia-noite, atuou um conjunto muito curioso: formado por três
violas, bateria, piano e três metais, só tocam músicas dos
Beatles, copiam-nos em tudo, até nas roupas. Dão pelo nome de “Get
Back Beatles” e são brasileiros. O esforço rende resultados:
abstraindo-nos um pouco, quase acreditamos que estamos a ver e a
ouvir os autênticos, quarenta anos depois, em Lisboa, todos vivos e
jovens.
Admirei-os
por terem conseguido arranjar um nicho de mercado original e rendoso.
Este
revivalismo vem acontecendo com outras formulações. Tomei
conhecimento de que, num clube privado, um grupo fazia a passagem de
ano só com a banda sonora de uma novela brasileira. Uma passagem de
ano temática.
Sempre
atento às oportunidades de ganhar dinheiro com a literatura, dei por
mim a pensar como se aplicaria o conceito ao ramo literário:
Seria
possível encher um pavilhão, a pagar, para ver um autor a criar um
conto? Várias câmaras captariam a folha onde o escritor alinharia
as palavras, apresentando em grandes ecrãs panorâmicos com que
palavras começava, quais cortava, mostrando o conto a nascer e a
crescer, paulatina, mas inexoravelmente. Outras câmaras mostravam
que apoios consultava, que palavras procurava nos dicionários, que
partes ia aproveitando. Seria de evitar que o escritor usasse
computadores, que embora tornassem a história visualmente mais
limpa, fariam desaparecer as partes rejeitadas, que no papel se
conservam riscadas, como cicatrizes do lutar literário. Quando
muito, uma secretária, bonita e eficaz, iria passando a computador,
e mostrando em ecrã próprio, a história num evoluir limpo. O
frenesim no público aumentaria, à medida que algumas variantes da
história eram abandonadas, nem sempre recompensado com uma variante
mais interessante. Por fim, a história atingia o seu fim e o público
rebentava em aplausos, a cujos “bravo” e “bis” o autor se
mostrava surdo.
Numa
fase de esgotamento da receita, o espetáculo podia incluir, como
novidade e complemento, a apresentação em ecrãs próprios do
desenrolar da tempestade cerebral do autor, através de sensores
encefalográficos, podendo o público assistir ao saltitar constante
da atividade cerebral, acendendo uma ou outra área, convenientemente
identificadas pelo nome e pela atividade que desenvolvem.
Daria
para encher um pavilhão com dez mil pessoas?
Para
um público mais restrito e conhecedor — em sala-estúdio —, o
escritor podia produzir uma história “à maneira de” um autor
conhecido. A história seria totalmente nova, mas faria lembrar,
irresistivelmente, o autor de referência. Para os melhores
resultados, não faltaria quem levantasse a suspeita de que o
escritor se limitara a transcrever um inédito desconhecido do autor
emulado, conseguido sabe-se lá por que ínvios meios.
De
qualquer modo, não se trataria de um paralelo perfeito com estes
“Beatles”. O que eles fazem não é criar música com o estilo
“Beatles”, nem recriar, com estilo próprio, as músicas
originais. Isto seria escrever uma história conhecida com palavras
próprias. Eventualmente, introduzindo uma peripécia, ou alterando
outra, de maneira a potenciar a emoção que a história já
transmite. O público que conhecesse a história iria achar que esta
versão era mais épica do que a original, por exemplo, ou que
não respeitava a intensidade da relação entre os protagonistas.
Uma opção a considerar.
O
que eles fazem é imitar os Beatles e as suas músicas, ao mais
pequeno pormenor. O equivalente literário seria um escritor
transcrever, palavra por palavra, uma obra literária de um monstro
das letras. Onde residiria o interesse do público? Talvez a
confirmar a sobreposição perfeita da história. Os mais puristas
trariam exemplares da obra em execução e comparariam, ponto a
ponto, o virtuosismo do escritor-reprodutor. Não se lhe exigiria,
claro, que nunca tivesse lido a obra — como Borges fez com Pierre
Menard —, mas que não lhe escapassem as reticências cheias de
segundos sentidos, nem o rigor dos itálicos. Depois dos aplausos,
haveria sempre alguém que comentaria: «Viram onde ele pôs o
travessão, quando Gregor Samsa percebe que é um inseto? Já vi o
Fritzl executar este conto com muito mais virtuosismo, sem falhar uma
vírgula. Não há executante de Kafka como ele!»
Pensando
bem, a reprodução em literatura tem o seu maior público na
leitura. Basta comprar o livro; mas por que não ir ao concerto? Já
imaginaram um concerto de Saramago ou uma audição de Machado de
Assis? Aí, um diseur pode obter algum efeito de arrebatamento
no ouvinte: a clareza cristalina da voz, as entoações insinuando
significados, as pausas dramatizando silêncios — alguém que
transmita toda a potência dos diálogos, como quando o cantor
arranca emoções da audiência, que faça o pensamento do público
vogar por regiões etéreas, quando percorra os bons nacos de prosa
narrativa, qual solista a desenvolver a parte instrumental.
Com
o fenómeno das editoras antropófagas — que se fazem pagar edições
de autor, que fingem distribuir —, a solução pode passar pelos
concertos. Quem sabe se alguns escritores iniciantes, mas muito promissores, virão a obter divulgação e início de reconhecimento público, fazendo a primeira parte de grandes concertos de escritores famosos?
Joaquim
Bispo
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Imagem: Fico
Molina, José de Sousa Saramago, sem
data.
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(Esta
crónica foi publicada no número 25 da revista literária digital
Samizdat, de fevereiro de 2010.)
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