Esta
história tem dois atores centrais, em dois tempos distintos, em
contexto de greve, numa empresa de charcutaria, mais concretamente a
Salgados, Fumados e Enchidos, SA.
No
princípio da década de 80, a contestação sindical à política da
empresa agudizou-se fortemente. Os sindicatos mais fortes — o que
representava os cortadores e o dos salsicheiros — reivindicavam
salários que repusessem o poder de compra que a inflação tinha
consumido.
A
situação de greve é sempre delicada. Os sindicatos tentam que os
trabalhadores funcionem como um bloco unido, um “nós”, para que
a paralisação seja o mais extensa possível e a greve obtenha os
resultados pretendidos; a entidade patronal, por seu lado, tenta
desmobilizá-los e dividi-los, para que cada um funcione apenas como
um “eu”, se sinta isolado, vulnerável e se vire para a sua
pequena vidinha, ignorando o interesse geral. Os trabalhadores
veem-se, por isto, obrigados a optar por um dos campos antagónicos —
o sindicato ou a empresa —, o que implica tomadas de posição de
algum risco: fazer greve e arriscar-se a perseguições pela empresa,
ou “furá-la” e enfrentar a ira dos colegas. Anteriores
companheiros e amigos podem ver-se assim transformados em adversários
e, se não souberem gerir as respetivas ações e emoções, podem
magoar-se mais do que esperavam.
Por
alguma mistura sociolaboral que nunca foi possível discernir, a
greve que foi marcada pelos sindicatos, esgotada a esperança de
entendimento negocial, teve uma adesão fortíssima, ao contrário
das adesões medíocres de outras paralisações anteriores. A
empresa viu-se na iminência de não garantir a laboração contínua
e só o conseguiu pelo habitual aliciamento de alguns trabalhadores
mais vulneráveis, e também pelo concurso das chefias, que nessa
altura tiveram de mostrar que ainda sabiam “meter as mãos na
massa”. Ainda assim, a greve foi um êxito e foram conseguidas
muitas das reivindicações dos sindicatos.
De
regresso ao trabalho, havia um ambiente de regozijo geral, mas também
de ressentimento por quem, na prática, sabotara o esforço coletivo de
adesão total à greve. Os “fura-greves” foram olhados de lado e
alguns ouviram o que não queriam.
Amieiro,
jovem delegado sindical, estava então a aprender a lidar com o
ingrato mundo da luta sindical, a qual lhe parecia obscenamente
desequilibrada para o lado do capital. Começava a perceber que, mais
do que tudo, é preciso estar do lado do mais frágil. Por isso, ao
ser confidente de um desses seus colegas “amarelos” — o Fajeca
—, compreendeu e aceitou os seus argumentos de medo, porque, dizia,
tinha sido perseguido por fazer greve numa empresa onde tinha estado
anteriormente. Perante o rosto choroso do colega e o seu verdadeiro
arrependimento, deu-lhe um abraço sincero, sentindo que o caminho da
vida não é linear.
Dez
anos mais tarde, aconteceu outra greve, desta vez às horas
extraordinárias. O Amieiro já não estava ligado aos sindicatos e
já não via o Fajeca há muito, porque trabalhava num setor da
empresa que fora deslocalizado. Estava de serviço exatamente no
local onde então era feito o enchimento e preparava-se para cumprir
a diretiva sindical: à meia-noite, os aderentes deviam parar de
trabalhar e abandonar o local de trabalho. Uns dez minutos antes da
hora marcada, viu entrar um grupo de chefes intermédios para “a
casa da máquina”. A empresa, não tendo certeza do comportamento
da equipa de serviço, prevenira-se com mão-de-obra circunstancial,
mas fiel. O Amieiro reparou também que, integrado naquele grupo pouco
habituado ao manuseamento dos complicados equipamentos da área dos
enchidos, vinha uma cara bem conhecida, a do Fajeca, técnico
competente para operar a sofisticada máquina do enchimento de
chouriços.
Amieiro
ficou surpreendido, porque pensara que a lição de dez anos atrás
fora indelével. Relembrou o rosto lacrimejante, o abraço de perdão
oferecido, o passado enterrado, mas não ficou zangado, só um pouco
desiludido. “Cesteiro que faz um cesto…” Faz um cento, diz o ditado. Mais cínico, mais
distanciado, estendeu a mão para o cumprimento, enquanto saudava em
tom exteriormente jovial:
— Então,
outra vez por cá?
Fajeca,
também sorridente, respondeu com uma qualquer trivialidade,
convencido de que a saudação se enquadrava nas dos encontros entre
pessoas que não se veem há tempos. Poucos segundos depois, porém,
ao notar o sorriso sarcástico a escorrer do rosto do Amieiro,
apercebeu-se de que o “por cá” se referia à situação de furar
uma greve. Outra vez. Então, fechou o sorriso, corou, despediu-se
atabalhoadamente e incorporou-se no grupo de recém-chegados.
Amieiro
não soube se Fajeca ficou envergonhado por esta reincidência. Nem
soube se ele fora constrangido a sabotar a greve por sentimento de
vulnerabilidade económica ou se tinha escolhido o seu campo
conscientemente. Refletiu, sim, que, se fosse ainda delegado sindical
— com o consequente dever ético de respeito por toda e qualquer
posição perante as lutas sindicais de todo e qualquer trabalhador
—, não poderia, ou antes, não deveria ter cedido ao seu lado
sombrio, lançando aquela farpa verbal. E acabrunhou-se por tê-la
achado saborosa.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Lima de Freitas, Retrato de
Fernando Namora, 1951.
Coleção
Casa Museu Fernando Namora.
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