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10/03/2022

A final olímpica

 


Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John, de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande disputa e pai e filho tinham apoiado com saltos e urros a equipa pátria. Finalmente a América vencera. Como sempre. Com uma vantagem esmagadora: 96–66.


No sonho de Sooter, o vencedor da modalidade olímpica de Matança em Massa não é previsível. Há vários concorrentes com boas possibilidades, mas vão-se combatendo e eliminando uns aos outros. No fim, o Estado Islâmico sobrepõe-se a outros assassinos em massa e ascende a adversário dos Estados Unidos na final. A cada operação americana, o Estado Islâmico responde com a eliminação de mais uns quantos militantes curdos ou mais uns quantos aldeãos sírios.

Victor Sooter tem um papel importante na disputa: como na vida real, é controlador de drones de guerra. Como num jogo de vídeo, multiplica-se em disparos sobre alvos inimigos: um comboio de abastecimentos, uma reunião rebelde, o carro de um dirigente de milícias. Os marcadores de baixas rodam ininterruptamente. Os Estados Unidos estão em risco de não conseguir a medalha de ouro, como tinham conseguido facilmente em 2004 e 2008 contra o Iraque, e em 2012, contra a Líbia e a Síria.

O polegar direito de Sooter metralha continuamente, enquanto a mão esquerda coordena com grande perícia o sobrevoo do drone. As explosões no solo sucedem-se, o marcador dos Estados Unidos avança, mas o do Estado Islâmico parece descontrolado. Sooter faz um esforço — o esforço que a pátria espera —, toma o comando de vários drones ao mesmo tempo e metralha alucinadamente, acionando os botões de disparo em sucessão coordenada e eficaz. No solo, uma sequência ininterrupta de explosões indica-lhe que a sua missão patriótica está a ser bem sucedida. O contador de baixas roda vertiginosamente. A tensão é grande. Quem vencerá? Será preciso lançar outra vez a bomba atómica?


Horas mais tarde, na base de comando de drones, em Houston, Victor Sooter recebe ordem de pilotagem remota de um drone da base de Bagram, no Afeganistão, e ataque a uma aldeia das zonas tribais do Paquistão. A inteligência aliada tinha detetado movimentações suspeitas em área de influência rebelde. Depois de receber indicações da total operacionalidade do aparelho, confirmar o acesso a todos os comandos necessários, a qualidade das comunicações com os satélites geoestacionários e das imagens de todas as suas 16 câmaras, Sooter descolou e rumou para as coordenadas indicadas, à altitude habitual, indetetável sem aparelhagem sofisticada.

Quase hora e meia depois, sobrevoava a região montanhosa procurada, e logo o estreito planalto onde assentava a aldeia referida. Sooter confirmou, pelas imagens conjugadas, que decorria uma reunião de uma dúzia de homens adultos, dispostos em semicírculo, vestidos de claro e ostentando algo na cabeça, talvez turbantes regionais, cada um com a sua espingarda nos joelhos.

Deviam estar a preparar o ataque a uma esquadra de polícia ou a algum quartel, como habitualmente. Várias daquelas aldeias eram controladas por tribos rebeldes, responsáveis por várias ofensivas contra forças da ordem. A uma vintena de metros do grupo armado, percebia-se um ajuntamento de outros adultos e vários jovens e mulheres, vultos reconhecíveis pelas indumentárias coloridas.

Era um risco. Mesmo acertando apenas no meio do grupo armado, era possível que muitas das pessoas próximas fossem mortas ou estropiadas. De qualquer modo, não lhe competia decidir.

Meu major, foram assinalados vários civis muito perto do inimigo. Que faço?

O superior hierárquico observou as imagens, por um momento.

Esborracha essa mosquitagem toda! Quantos menos sobrarem, menos picadas depois.

Sooter posicionou o aparelho nas coordenadas adequadas e, após estabilizá-lo, movimentou lentamente o controlo do disparador. Quando o cursor se imobilizou bem a meio do grupo inimigo, fez uma verificação dos outros parâmetros e comandos. Rodou a pequena tampa do botão vermelho de disparo, destravou-o e fez o relatório final:

Tudo pronto, meu major: aparelho estabilizado, alvo enquadrado, mísseis prontos. Aguardo autorização de disparo.

Dá-lhes com tudo o que tens! — gritou o oficial.

Sooter recolheu-se por um momento. Sentiu o poder. O domínio absoluto. A vida daqueles inimigos da América completamente nas suas mãos. A certeza de ser o instrumento da justiça possível encheu-o de uma serenidade solene. Carregou no botão vermelho. A partir daquele momento, ele sabia algo terrível que os inimigos desconheciam. A morte estava a caminho e eles nem desconfiavam. Estavam mortos e não sabiam. Muitos daqueles malditos, agora tão seguros e enérgicos, daí a momentos não passariam de bocados de pasta mole e sangrenta. Não voltariam a ser empecilhos da ordem democrática que os Estados Unidos ofereciam ao mundo. Era desagradável, mas necessário; era a guerra.

Os treze segundos passavam lentamente, mas Sooter sabia o que veria dentro em pouco: os rastos instantâneos dos mísseis e logo as explosões enegrecendo a imagem. Aquele terreiro tão liso ficaria crivado de crateras. O seu olhar vagueou pelo grupo, pelo terreno, a apreciar a ilusória imagem de ordem aldeã, o passado. Pareceu-lhe reconhecer grandes letras ocidentais nos limites do terreno da reunião rebelde. Julgou ler NOT, mas as manchas do que pareciam letras confundiam-se com a restante cor do solo. Como em certos testes de daltonismo. Tentou decifrar a linha de manchas, em vão; as explosões ofuscaram a imagem de seguida.

Não pensou mais nisso. De qualquer modo, nada daquilo já interessava. Calma e eficazmente, levou o avião drone de volta à base no Afeganistão, em total segurança.

Duas horas depois, de regresso à sua vida de família, Sooter fazia a vontade ao filho e assistia ao concerto na escola em que o menino aprendia clarinete. Gostava tanto de música! Quem sabe se não seguiria essa inclinação? Viviam no país das oportunidades, onde era possível ser o que se quisesse, desde que se lutasse por isso. Era um grande país! Tinha orgulho nele.


Uns dias antes, numa aldeia remota do Paquistão, Samir, um menino de nove anos, dirigia-se para a escola, por um caminho poeirento e ia lançando olhares apreensivos para o céu. Era um brilhante aluno da escola paquistanesa. A sua irmã, três anos mais velha, não tivera esse privilégio. Fora prometida a um amigo do pai e ia casar em breve. A boda traria à aldeia vários dias de comida, bebida e dança, ao som de uma orquestra de dutares, um instrumento de cordas tradicional. Porém, sagaz como era, o menino reconheceu o perigo na forma dos instrumentos musicais, que, de longe, podiam ser confundidos com espingardas tradicionais. Na escola, pediu ao professor que lhe ensinasse certas palavras em inglês. Assim que terminou as aulas, correu para o terreiro da festa e, em grande azáfama, iniciou a grande tarefa de juntar e dispor muitas pedras a formar uma mensagem para possíveis drones americanos: DUTARS NOT GUNS [Dutares não armas].

Dias depois, decorria a reunião festiva. A refeição fora farta e saborosa; aguardava-se que a orquestra iniciasse a música para todos dançarem. Reinava a alegria, exceto para Samir que continuava a lançar uma angustiada mensagem mental aos céus, em inglês: Read my stones [Leiam as minhas pedras]!


Joaquim Bispo


Imagem: Drone americano MQ-9 Reaper. Da net.

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Este conto integra a coletânea A Arte do Terror — edição especial — História, da Elemental Editoração, 2017, pp. 61–63.

https://www.smashwords.com/books/view/758968


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