Quando
Yago chegou a casa, a mulher, Emília, apressou-se a dar-lhe as
novidades:
— Já
se começa a perceber muito bem qual vai ser o aspeto final do
retrato da minha senhora. Ela está deitada num leito, toda nua, e do
alto tomba uma chuva de ouro. Ao lado da cama, há uma velha que
tenta apanhar algum desse ouro. Mestre Ticiano diz que o conjunto
representa a figura mitológica de Dánae, engravidada por Júpiter
sob a forma de chuva dourada.
— Nua?
Excelente! — rejubilou Yago. — Quando volta Desdémona a posar?
— De
hoje a uma semana. A minha senhora não quer dar azo a que o marido
desconfie de nada.
«Ah!
Mal posso esperar para insinuar indignidades aos ouvidos de Otelo»,
congeminava Yago. «Se for bastante persuasivo, Desdémona será
repudiada e não ficará em posição de ser insensível aos avanços
do meu protegido Rodrigo.»
Uma
semana depois, em casa do general Otelo, este desvenda a Yago alguns
dos aspetos militares que o preocupam:
— O
Turco está cada vez mais atrevido. Veneza está a pontos de perder
Chipre e até de deixar de ser senhora do Adriático. O Conselho está
a ultimar uma aliança com o Papa e com Filipe II de Espanha. Se esta
aliança conseguir reunir uma grande armada, partiremos, a confrontar
os asquerosos otomanos, nem que tenhamos de lhes dar batalha nas
costas da Grécia. — Pensativo, continuou: — Não temo a batalha,
mas constrange-me ficar tanto tempo longe da minha adorada.
— Pode
ir descansado, general, que sua esposa não se sentirá infeliz, isto
é — gaguejava Yago —, mostrará o rosto choroso, mas certamente
encontrará distrações, isto é, arranjará maneiras agradáveis de
passar o tempo.
— Meu
bom Yago — lembrava Otelo —, ela ficará bem, com certeza, mas tu
irás comigo. Não te esqueças que és o meu alferes.
— Sim,
claro, ficará bem. Disso não duvido... Ficará até muito bem...
— Que
queres insinuar? — espevitava-se o general.
— Eu?
Nada. Falei por falar. E jamais a minha boca se abriria para difamar
a senhora da minha esposa — espicaçava Yago.
— A
maneira como falas parece indicar que algo menos honroso se passa.
Pela obediência que me deves, dize: o que sabes? — impacientava-se
Otelo. — E não temas pela tua esposa, que sempre terá fidalgas a
quem assistir.
— Se
assim me intima — condescendia Yago, enfim no objetivo — só lhe
posso confidenciar que Desdémona se tem encontrado com um velho, a
quem se expõe como Deus a deitou ao mundo. Não sei por que o faz,
se por lascívia, se por comércio.
— Quê?
— esbravejou Otelo, sentindo-se atraiçoado. — Pois ela
entrega-se a outrem? Prova o que dizes ou despede-te da vida!
— Não
mate o mensageiro, senhor! Pergunte antes à sua amada aonde vai ela
todas as sextas-feiras.
— Sim,
sim, manda já chamá-la, que quero esclarecer este caso!
— É
inútil procurá-la — devolvia Yago —, porque neste momento está
ela a ser acariciada pelo olhar de Mestre Ticiano na Scuola Grande de
S. Rocco. Parece que o Mestre tem predileção por corpos jovens e
manifesta mesmo algum entusiasmo quando os seus pincéis acariciam a
superfície da pintura, talvez fantasiando que acaricia a própria
pele branca e sedosa de sua esposa.
— Pintura?
Ticiano? Mas, pelas bombardas de popa, o que é que o velho quer de
minha mulher? — surpreendia-se o general.
— Os
velhos, às vezes, são os piores — aproveitava Yago. — Ele está
a retratar vossa esposa como Dánae, engravidada pela chuva dourada
de Júpiter. Isto não parece muito decoroso.
— Oh,
com mil raios da procela, que indignidade! Vou expor esse quadro na
praça de S. Marcos, para que Veneza abomine essa devassa!
De
regresso a casa, Desdémona vê-se confrontada com a ira do marido:
— Muito
folgo em te ver vestida — ironizou Otelo. — Tanto quanto sei,
ainda há pouco oferecias o corpo à lascívia dos olhares de quem o
deve conhecer melhor do que eu.
Desdémona
quedou-se muda e de rosto perplexo. Olhou em volta à procura da aia,
que lhe recusou o olhar.
— Explica-me
agora — continuou Otelo — por que te expões nua ao olhar de
Ticiano!
— Nua?
— contrapôs Desdémona. — Nunca Mestre Ticiano viu o meu corpo.
O meu rosto aparece num corpo nu, mas esse corpo foi o que preferi,
num conjunto de desenhos e gravuras que Mestre Ticiano me deu a
escolher, quando contratei a feitura do meu retrato. Só vou a S.
Rocco para que ele retrate o meu rosto aplicado a esse corpo que
escolhi.
Agora,
era a vez de Otelo ficar sem palavras. Mas, logo quis saber:
— Afinal,
por que bizarria andas nessas andanças? Por quê, esse retrato?
— Era
para ser um segredo — explicou Desdémona, voltando a passar o
olhar por Emília. — Vai fazer um ano que eu e tu nos unimos pela
carne. Essa união do viço de uma jovem como eu, com a força de um
deus como tu, frutificou. Estou grávida. Sim, grávida! —
confirmou sorridente, perante o olhar assombrado do marido. — Quis
fazer-te uma surpresa e oferecer-te uma imagem alegórica que evoque,
todos os dias, esse primeiro encontro dos nossos corpos, e o que dele
resultou. O tema de Dánae foi ideia de Ticiano.
Otelo
ficou um bocado em estupor. Depois, berrou:
— Yago!
Estarás sempre na proa do barco dianteiro. Quero que os otomanos
fiquem a conhecer as tuas feições. Podes precisar dessas amizades
no Inferno!
Caprichosamente,
quem não voltou da batalha foi Otelo, trespassado por uma bombarda
turca. Desdémona, desgostosa, não resistiu à perda do seu amado. O
seu corpo foi encontrado a boiar no Canal Grande. O quadro, no qual
ela punha tanto empenho, acabou por ir parar a Madrid, oferecido por
Ticiano a Filipe II, em agradecimento pelo apoio militar a Veneza.
Joaquim
Bispo
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Por
seleção em concurso literário, este
conto integra — páginas 118 a 120 — a 12ª edição (Nov./Dez. de 2018) da
Revista LiteraLivre, em formato e-book: https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_12__edi__o_498aa56f8063d4
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Imagem: Ticiano, Dánae
recebendo a Chuva Dourada, 1560–1565.
Museu
do Prado, Madrid.
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