Na
minha rua existe uma personagem singular — um devorador de jornais. Traga todos os que
encontra, quer os que são abandonados nas mesas dos cafés, quer os
que o vento empurra rua afora. Uma vez por outra, já o vi até debruçado pela abertura do Papelão.
Como
seria de esperar, está sempre bem informado, quer das notícias do
dia, quer das anteriores, que já todos esqueceram. As conversas que
mantém à tarde parecem o noticiário da rádio local, no dia da
folga do jornalista. As da manhã, também. Por uma razão ou por
outra, é objeto de veladas animosidades, fundadas na bizarria que
o caracteriza.
A
mulher que salga sempre a comida inveja-lhe a memória. O rapaz que
sonha com pescarias no tanque do fontanário diz que ele assusta os
peixes com o ruído que faz a mastigar. As primas que plantam
jacintos nos charcos da calçada criticam-lhe a voracidade. O
oriental, de cujo livro de folhas perenes se escapam, por vezes,
pétalas coloridas, olha-o com desconfiança.
Todas
estas queixas recorrentes desapareceram há dias, repentinamente,
como que por influência dos astros. Quando saí de casa para
comprar as pevides de melão matinais, as conversas esvoaçavam à
volta do papa-jornais. Todos gorjeavam a utilidade da sua preferência
gastronómica para o asseio do bairro, e sugeriam que
esta figura grada da terra devia dar nome a um dos camiões do lixo.
E lamentavam-no com lágrimas sem sal e meias-de-leite. O
que o vitimou — aventavam —, teria sido a sua sofreguidão por notícias e uma indigestão há muito esperada. Ou a deglutição imprudente de um tablet ou outra similar engenhoca eletrónica. Por mim, suspeito mais da toxicidade das notícias falsas. E das deturpadas.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Hugó Scheiber, Lendo Notícias no Banco, [antes de 1950].
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