Naquele
setembro de 75, dois jovens portugueses, amigos e colegas de
profissão, aproveitavam as férias e um Dyane comprado pouco antes
para espraiarem por paragens além-fronteiras o
otimismo que a revolução, em curso na sua pátria, lhes transmitia. Levavam uma
tenda canadiana e acampavam onde calhava. Viajavam ao sabor dos
acontecimentos, confiados nas benevolências do acaso.
À
noite, em Vitória, – já país basco –, a notícia do dia era a
morte de mais um «carabinero». Pressentindo o fim iminente de
Franco, os separatistas da ETA intensificavam o número de atentados.
Os
viajantes petiscaram num bar e voltaram à estrada, procurando um
local para acampar, como fariam em Portugal. Uns quilómetros à frente, em marcha lenta,
vislumbraram no escuro ao lado da estrada o que lhes pareceu um terreno plano, e
entraram. Ainda de faróis acesos e motor a trabalhar, foram
rapidamente cercados por vários guardas que iam a passar em dois
jipes. Tentaram explicar-se em espanhol, mas, porque falassem
suficientemente bem, ou porque a matrícula começava pelas mesmas
letras que as de Burgos, ou pela ideia apetecível aos militares de
que tinham apanhado dois terroristas, não estava a ser fácil
convencê-los da origem lisboeta dos intrusos. As cabeleiras
“revolucionárias” também não ajudavam.
Entretanto,
chegaram mais guardas, comandados por um graduado. Estes, nem dúvidas
tiveram. Ao verem aquele aparato, saltaram dos jipes em atitude de
grande sanha bélica e, sem darem tempo a qualquer explicação,
gritaram para que os suspeitos saíssem do carro. Tensos. Os jovens
saíram, ofuscados pela luz forte dos faróis, para logo ouvirem
ordens de «manos al aire!», quase abafadas pelo matraquear metálico
de muitas culatras puxadas atrás.
Quem
vos conta isto levantou as mãos lentamente, virou-se e apoiou-as no
carro, rodando o rosto para o lado contrário ao dos guardas, para
que nem o olhar pudesse fornecer qualquer pretexto ao nervosismo
revanchista dos carabineiros. Durante uma eternidade de segundos,
esperou ser trespassado, senão por um sem-número de balas à
queima-roupa, com certeza por aquela que só obedece ao diabo e que é
disparada até pelas espingardas descarregadas.
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Felizmente,
a história não acabou ali. Enfim convencidos, os militares
sugeriram um caminho mais à frente, que os jovens percorreram
por algumas centenas de metros até encontrar o que lhes pareceu um
espaço aceitável para acampar. Mas não para soltar o sono, que aquele terrível som metálico no escuro matraqueou toda a noite nas suas cabeças.
O
alvorecer revelou-lhes a envolvência que as trevas de véspera não permitiram: tinham montado a tenda no terreno fronteiro a uma mansão rural, a menos de cem metros da porta…
Realmente, procurar acampamento de noite tinha as suas surpresas, mas o acaso, sempre brincalhão, voltava a ser benévolo, convidando-os à despreocupação habitual.
Joaquim
Bispo
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(Este
conto foi publicado no número 9 da revista literária virtual
Samizdat, de outubro de 2008)
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