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10/11/2016

A Vida Continua


Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm avenidas bordejadas de “palacetes” e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitetura que, ao longo dos tempos, tem refletido a arquitetura dos vivos. E mais bem preservada do que a da cidade dos vivos. É que, nessa cidade dos mortos, não é necessário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros.
Veem-se jazigos de todos os estilos: neogótico, neomanuelino, neoclássico, “casa portuguesa”. Uns, imponentes, a refletir a importância do defunto em vida, outros, discretos, a exaltar a humildade devida ao novo estado. Alguns são autênticas esculturas arquiteturais.
É nos cemitérios que existe, talvez, a maior concentração de escultura por hectare. Alguma, de grande qualidade. Além de chorosos anjos, escondendo a face, encontram-se, também, muitas alegorias da dor e da perda, adequadamente acompanhadas de fustes de colunas partidos ou troncos de árvore decepados precocemente. Lápides verticais ostentam delicados rendilhados florais em alto-relevo ou símbolos adequados à profissão e ao estatuto do finado, em vida.
Uma deambulação por um silencioso cemitério lisboeta é, quase de certeza, mais tranquilizante e culturalmente mais estimulante do que um passeio por muitos dos jardins da cidade.
Estes cemitérios têm ritmos próprios. Cada talhão de enterramento passa por uma fase de alvoroço, com a abertura de novas covas e montões de coroas de flores em cima de montes de terra, que progride, durante umas poucos semanas ou meses, em linhas paralelas ao longo do talhão. Aos poucos, o campo de linhas revoltas vai evoluindo para um prado de aspeto arranjado, pincelado de lajes de mármore e floreiras multicoloridas. Chega um momento em que todo o talhão se arrumou e mantém um aspeto muito estável durante cinco anos, com os mármores alinhados, entremeados por um ou outro simples monte de terra dos defuntos de menos posses, cada um com a sua floreira. Às vezes, com uma ou outra placa de mármore com inscrições prosaicas, ou menos esperadas, como “Grand-maman — Je ne t’oublierais jamais”, a refletir o fado da emigração.
Quase sempre, esses talhões de meio hectare de área estão circunscritos por um muro quadrilátero, de gavetas de cimento embutidas, nas quais, mais tarde, serão depositados os pequenos caixões contendo apenas os ossos lavados e desinfetados dos corpos que tenham atingido o estado necessário ao levantamento.
Estar sozinho num desses talhões, a observar a extensão florida agitada pela aragem e a ouvir o concerto da vibração das centenas de pequenas floreiras metálicas, faz qualquer um sentir-se num universo distinto do nosso. São várzeas artificiais, prados de flores naturais de caules cortados à medida, e de flores de plástico, inseridas em floreiras, numa densidade e numa multiplicidade de cores que nem a Natureza produz.
Depois, passados os cinco anos da curtimenta, os talhões começam a ser escalavrados pelos levantamentos avulsos, que deixam uma paisagem desoladora semeada de crateras retangulares por entre as campas intactas, cujos ocupantes se atrasaram a atingir a decomposição total. Passado algum tempo, tudo recomeça e o talhão recobra a “vida” florida — se de vida podemos falar —, para mais um ciclo de enterramentos.
Aos domingos, na Ajuda, os ciganos instalam-se todo o dia no cemitério a honrar os seus mortos. Pintaram de branco a moldura da gaveta onde está o caixão do familiar falecido e o chão do passeio por baixo da gaveta. Mantêm-se por ali a limpar a gaveta, o caixão, o pano que o tapa e depois ficam simplesmente sentados, de porta da gaveta aberta com várias fotografias do defunto expostas e jarrinhas de flores sobre panos bordados brancos.
Os outros vão menos ao cemitério. E tanto menos quanto maior o inexorável apagamento da dor que a passagem do tempo provoca. As floreiras deixam de ter flores naturais e ficam-se pelas de plástico que “duram mais tempo”. Não muito, que também estas são, às vezes, levadas pelo vento ou tão só carcomidas por chuvas e sol. No fim do verão, a maioria das floreiras está vazia, ou tem uns pedaços de flores ressequidas, quando muito.
Perto do Dia de Finados — 2 de novembro —, os cemitérios enchem-se, numa romaria de mãos carregadas de flores. Cumpre-se a “obrigação” e o ritual. Nessa ocasião, são sobretudo os muros repletos de gavetas que registam uma primavera fora de época. Veem-se pessoas de todas as idades encavalitadas nas escadas metálicas que os cemitérios disponibilizam para aceder às posições mais elevadas.
Por entre o bulício respeitoso dos que levam um rumo determinado, percebe-se que há quem ande perdido e é possível ouvir pelas alamedas discussões em surdina sobre a localização das gavetas que procuram. Quem não visita esquece e há quem deixe passar muito tempo. Até por defesa.
Pode ler-se, aqui e ali, nas portinhas: “O tempo passa — A saudade aumenta”. Ou outra mentirinha parecida, crida com toda a sinceridade. O tempo passa e tudo faz passar, felizmente. Ninguém conseguiria viver, sempre, com a dor dos primeiros dias; ninguém conseguiria aguentar, ano após ano, as saudades sentidas no primeiro.

Joaquim Bispo
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(Esta crónica foi publicada no número 11 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2008.)
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