Pelo
Carnaval, encontrei um amigo que já não via há uns anos. Falou-me com
entusiasmo de uma compra que entretanto fizera — uma casa no campo que,
segundo disse, era um elixir miraculoso para a pressão da vida na cidade.
Satisfeito com o meu interesse, acabou por insistir em me emprestar a casa,
para lá ir passar uns dias. Eu aceitei com agrado e muita curiosidade. Mas o
meu amigo avisou-me:
—
Olha que é capaz de haver lá ratos! Da última vez que lá estive, havia.
Na
manhã do sábado seguinte, rumei às Beiras, com a minha mulher. Mas antes
preveni-me. Fui à drogaria e comprei uma embalagem de pastilhas de raticida.
Efetivamente,
o sítio é lindíssimo: muito arborizado, junto ao espelho de água de uma
barragem, com a sombra azulada de uma serra, em fundo. Feito de encomenda para
um fim de semana romântico. E a vivenda tem o encanto das casas tradicionais:
antiga, toda em granito, com lareira, e quartos forrados a madeira.
Mas,
realmente, está infestada de ratos. Na cozinha, havia restos de embalagens que
o meu amigo lá teria deixado — pacotes de sumos, garrafas plásticas de
refrigerantes, caixas de flocos — tudo misturado com xixi e caganitas. O aspeto
da cozinha era desolador.
Foi
uma tarde de sábado pouco romântica. Limpar toda aquela porcaria, provocou-nos
sentimentos perversos de vingança. À noite, antes de adormecer, distribuí uma
meia dúzia de pastilhas, pelos cantos da cozinha, sentindo o rancor prestes a
ser saciado. De noite, uma vez que acordei, apercebi-me, nitidamente, de um
restolhar na cozinha. Virei-me para o outro lado, com um sorriso consolado.
Ao
romper do dia, acordei sobressaltado. Ouviam-se guinchos, correrias, ruídos
vários, vindos do forro da casa. Era um chinfrim enorme. Como se um bando de
gatos perseguisse os ratos, numa luta feroz e prolongada. Não se assemelhava
nada à débil agonia de dois ou três ratos envenenados. Parecia até que o
reboliço aumentava.
A
minha curiosidade não me deixou continuar na cama. Como havia um alçapão no teto
do quarto, fui buscar um escadote e, um pouco receoso, espreitei.
O
que vi não pode ser completamente transmitido por palavras. Uma dezena de ratos
copulava, freneticamente, num desespero alucinado. Corriam. Rebolavam.
Saltavam. Trocavam continuamente de parceiro. Formavam-se mesmo, molhos de três
ou quatro, em tentativas de cópulas improváveis. No soalho, jaziam já uns
quatro, mortos por exaustão.
Fiquei
um minuto atónito, a olhar para aquele cenário, sem compreender o que estava a
acontecer; a perguntar-me porque é que os ratos se estavam a comportar daquela
maneira.
A explicação atingiu-me então como um soco. Fiquei gelado. Devo ter feito um esgar de horror, ao tomar consciência da incrível estupidez da minha troca de embalagens. Do alto do escadote, olhei para a mesa-de-cabeceira. Lá estava uma pastilha azul de raticida, que eu estive quase a tomar, se não fosse a enxaqueca providencial da minha mulher!
A explicação atingiu-me então como um soco. Fiquei gelado. Devo ter feito um esgar de horror, ao tomar consciência da incrível estupidez da minha troca de embalagens. Do alto do escadote, olhei para a mesa-de-cabeceira. Lá estava uma pastilha azul de raticida, que eu estive quase a tomar, se não fosse a enxaqueca providencial da minha mulher!
Joaquim
Bispo
* * *
Ilustração de Rodolfo Bispo:
https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77
* * *
(Este
conto foi o primeiro que publiquei na revista literária virtual Samizdat, no número 7, de agosto
de 2008)
Caías que nem um rato!...
ResponderEliminarHá contratempos que vêm por bem...
Eliminar"No soalho, jaziam já uns quatro, mortos por exaustão." e nem com esta frase me antecipei ao veredicto ... só mesmo tu Joaquim :)
ResponderEliminarObrigado. O efeito perdia-se se tivesse revelado demais.
EliminarEheheheheheh!!!!!!! Depois de uma tarde nas limpezas, quem não fica com enxaqueca????? M. João Rocha
ResponderEliminarOs ratos estragaram o que podia ser um fim de semana romântico... ;)
Eliminaro teu conto fez-me lembrar uma aventura parecida que me aconteceu há uns anos, mas ainda não havia os "azuis". Diverti-me de verdade. Gostei muito. Parabéns e um abração
ResponderEliminarObrigado, Portugal. Abraço!
ResponderEliminarEsta história também se baseia numa peripécia real. A cor azul do raticida desencadeou a inspiração.
Há são azuis então que raio tenho andado a tomar?
EliminarEh, eh! Cuidado! Olha os efeitos colaterais...
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