— Todo
o ano? Qual Natal, pai, o dos nascimentos ou o das prendas?
— O
nosso, que não fazemos outra coisa senão presépios, anjinhos e
outras figurinhas alusivas, em barro.
— Estas
meias-pinhas não têm muito que ver com o Natal…
— Meias,
não, Tiago. As metades de baixo que estás a moldar… Pressiona bem
esse barro no molde, para não ficar com falhas! Dizia eu, as tuas
metades mais as de cima, ali da tua mãe, unidas e retocadas por mim,
fazem pinhas inteirinhas e, depois de irem ao forno, ficam bem
pitorescas.
— Hum!
— É
uma peça de preço
acessível, para
oferecer como gentileza nesta época. Não é um presente de marido
para mulher ou de avô para neto, mas é uma boa ideia para oferecer
entre colegas de trabalho, ou entre amigas. Como sabes, há até
empresas que as compram às dezenas para acompanhar outras prendas
aos empregados.
— Sim,
eu sei, não é a primeira vez que venho ajudar; mas o que é que têm
que ver com o Natal?
— Tiago,
o Natal reteve muitas
das práticas das festas pagãs dos antigos, para festejar o
solstício do inverno. Mantém uma grande ligação ao campo, à
floresta. E pinha lembra floresta. Não é, Teresa?
— Com
certeza. E fogo. Sequinha, é a melhor acendalha que há. Nas
aldeias, ainda hoje se acendem grandes madeiros, no adro da igreja.
Já viste, lá na Amieira, o povo todo à volta da fogueira na noite
de Natal! Pinha, fogueira e Natal andam associados.
— E
essas bolinhas?
— Azevinho.
Algumas pessoas também ornamentam as casas com ele, quer as
ombreiras das portas, quer as lareiras e as mesas.
Estas bagas, que hão de ser pintadas de vermelho, e estas folhas,
aqui em cima da pinha, são de azevinho.
— Salvo
seja, mãe!
— Olha
que não estão nada más! Zé, tens aqui mais seis.
— Aonde
é que vamos passar o Natal,
este ano?
— Então,
vamos à Amieira! O ano passado foram os tios que vieram cá…
— À
Amieira?! Ganda seca! Porque é que não vamos pò
Algarve?
— O
Natal é a festa da família, Tiago. Se não estivermos reunidos
nesta altura, só nos vemos nos enterros.
— Tiago,
esvazia
bem essa metade!
Se o barro ficar muito grosso, estala na cozedura.
— Fogo!
Os tios só me oferecem livros com histórias que não interessam nem
ao Menino Jesus.
— Se
calhar não te fazia mal nenhum lê-los, em vez de estares sempre
agarrado à consola de jogos.
— Bela
consola, esta! Estou todo consolado! Já deito pinhas pelos olhos!
— Tiago
Manuel! Não menosprezes este trabalho. Cada uma rende pouco, mas se
vendermos seiscentas, como no ano passado… Dão mais do que meia
dúzia de presépios como aquele ali, que já me leva uns cinco dias
de trabalho. Ali, debaixo daquele pano húmido!
A propósito, lembras-te de a tua mãe dizer que não era muito
lógico o pastor, que
vai oferecer o seu presente ao Menino, levar
uma lebre no braço?
— Sim,
até apostaste com ela um lanche na pastelaria. As apostas forretas
do costume! O que é que tu dizias, mãe?
— Que
fazia mais sentido ser um cabrito ou um borrego. Se é um pastor…
— Pois!
Mas o que me parecia ver na estampa da Adoração
dos pastores era uma
lebre. No domingo de tarde, enquanto estavas para o cinema, eu e a
tua mãe fomos de propósito ao Museu de Arte Antiga tirar as teimas.
Perdi! Sempre me tinha parecido uma lebre. Realmente, ver o quadro do
Gregório Lopes, ali mesmo à nossa frente, é outra coisa! Fiquei
convencido de que é um cabrito. Mas
deve ser de uma raça que agora não é vulgar.
— Não
ganhei grande coisa nessa aposta. Se fosse o Euromilhões! Zé, o que
é que tu gostavas que eu te desse, agora no Natal, se me
tivesse saído muito dinheiro?
— Uma
autocaravana.
— Assim,
levas uma camisola,
oh-oh!
— Eu
quero uma viola elétrica.
— Para
quê? Tu não sabes tocar!
— Como
é que eu posso aprender? A ver telediscos?
— Já
tens uma acústica, de madeira.
— E
toco! Mas a música agora tem de ter amplificação e encher o
espaço.
— Era
só o que nos faltava — barulheira. Eu gosto pouco de barulho.
— Então
um leitor de mp4. Com auscultadores.
— O
que é que achas, Teresa?
— Eu
não me importo. Só tenho medo que ele fique surdo como o filho do
vizinho. Andava sempre com
aquilo nos ouvidos; nem
dava por ninguém. E ao teu irmão, o que é que havemos de dar?
— Isso
é que é mais difícil! Ele já tem tudo. Também não lhe vamos dar
uma moto de água, para andar na barragem, que é só no que ele fala
agora!
— Tem
de ser uma coisa boa!
— Mesmo
que ele já tenha, mãe?
— Uma
camisola faz sempre falta. Mas das boas, que lá o frio até corta.
Fancaria é que não. Como uns brincos de pechisbeque que o teu pai
me deu uma vez.
— Gostaste
deles, confessa!
— Eh!
Estávamos casados só há um
ano. Não ia dizer que não gostava ou que não queria. Estão para
ali... Passa-me essa espátula, Tiago!
— Já
estou cansado…
— E
se fizéssemos uma pausa para lanchar, Zé?
— Sabem
o que me apetecia agora, com esta conversa? Uma filhó.
— Ainda
bem que falas nisso. Este ano, estamos a atrasar-nos. A ver se amanhã
vou comprar farinha. No sábado que vem, amasso-as, e à noite
fritamo-las.
— Eu
viro-as.
— E
eu espalho o açúcar por cima, posso?
— Vai
parecer o presépio.
— Falta
o burro e a vaca. Não querem convidar os vizinhos do rés-do-chão?
— Tiago
Manuel!
— Tiago
Manuel…
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Gregório Lopes, Adoração dos pastores,
1541.
Museu
Nacional de Arte Antiga — Lisboa.
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