Antes.
É-me praticamente impossível fornecer aos meus compatriotas mais novos uma ideia clara de como se
vivia em Portugal durante o Estado Novo — o regime que vigorou
entre 1926 e 1974, sensivelmente com os mesmos valores: Deus, Pátria,
Família. Ainda pensei descrever uma lista de situações que
contextualizassem a vida de então, mas desisti de o fazer, tão
descomunal me parece a tarefa.
Então,
a 25 de abril de 1974, na sequência de uma reivindicação
corporativa, os oficiais menos graduados das Forças Armadas,
capitães e majores, sobretudo, lideraram uma ação militar que
derrubou o regime, ato que foi imediata, entusiástica e maciçamente
apoiado pela população. Com tal unanimidade, durante os meses
seguintes, nem o céu parecia o limite.
25
de abril, quinta-feira, 9 horas. O jovem atravessa o parque
Eduardo VII em diagonal. Está dez minutos atrasado para o emprego,
como habitualmente. À vista da rua onde trabalha, percebe que o
trânsito para o bairro está cortado por militares. Inquirido, um
deles diz-lhe que não pode passar, sem mais explicações. O jovem
volta para casa, conjeturando que tem uma boa desculpa para dar ao
patrão, se ele o questionar nesse sentido.
Pelas
dez e meia ou onze, o jovem rejubila ao ouvir pela rádio que está
em curso um movimento militar que parece querer derrubar o governo. O
jovem lia frequentemente jornais que insinuavam, nas entrelinhas,
mudanças políticas iminentes — um que vinha dos Açores [perdão, da Madeira] impresso
em papel cor-de-rosa e o Diário de Lisboa —, mas o governo
representava para ele, sobretudo, a asfixiante ordem eterna, parada
em conceitos desatualizados. Toda a gente dizia mal, numa impotência
cómoda, porque havia a certeza de que o regime nunca mudaria. A
prová-lo, estava o tosco “golpe das Caldas”, um mês antes.
E
da manhã, da tarde e da noite se faz o dia primeiro. Na tarde
soalheira do dia 25 de Abril de 74, um casal estrangeiro, de língua
inglesa, passeia pelo parque Eduardo VII, misturado com os outros
passeantes portugueses que desfrutam o feriado inesperado. Dos lados
da Baixa chegam, de quando em quando, sons de alvoroço popular. Não
sei se o casal sabe o que se está a passar no país, mas o homem
comenta, sorridente, para a mulher: “Deve ser por causa do
Benfica!” Como está enganado!
No
supermercado o jovem repara admirado que as pessoas estão a comprar
quantidades anormais de víveres, sobretudo enlatados. Acha aquela
atitude desproporcionada. Além de meia dúzia de polícias com cães,
cosidos nos portais da António Augusto de Aguiar, com ar furtivo e
preocupado, nada parece indicar qualquer ameaça de resposta da
“situação”.
À
noite, na televisão, o jornalista apresenta a Junta de Salvação
Nacional — uma mesa atestada de generais soturnos e mal-encarados.
Mas
então? Onde estão os capitães de que falam as notícias? Não é
que o jovem tenha, desde a tropa, uma grande consideração por
capitães do quadro, mas generais? Spínola? Escreveu um livro
crítico, e então? É do regime… Para que o poder “não caia na
rua”, já vai ao beija-mão?
E
quem são os outros emproados?
Alívio!
As dificuldades do regime em conseguir quadros militares suficientes
para sustentar a guerra do Ultramar obriga a certos estratagemas. Os
oficiais milicianos que não tenham ido ao Ultramar, durante o tempo
normal de tropa, podem ser novamente chamados, após alguns anos de
dispensa. É-lhes dado um curso de capitães em Mafra e seguem para
um dos teatros de guerra no Ultramar: Guiné, Angola ou Moçambique.
Alguns preferem oferecer-se para ir a África durante o tempo normal
e despacharem a questão, do que ficarem em risco de fazer tropa duas
vezes.
O
jovem tinha feito três anos e três meses de tropa, mas sempre na
Metrópole. Por duas vezes esteve prestes a ser mobilizado para o
Ultramar. Sempre as circunstâncias o salvaram. Numa delas, outro se
ofereceu para ir em seu lugar. Pelo 25 de abril, faltarão uns dois
anos para ser eventualmente chamado de novo. De tempos a tempos, já
tem sonhos onde se vê outra vez na tropa, o que não é muito
agradável. Quando o discurso dos revoltosos de abril dá indicações
de que a política ultramarina
se irá alterar, o jovem sente um alívio enorme, enorme.
[O leitor não vê,
mas, apesar de o texto ser meu, ao relê-lo emociono-me.]
Comunistas.
Antes do 25 de abril havia certos assuntos que se evitavam
naturalmente. Um deles era comunismo. Os funcionários públicos
tinham que jurar rejeitar a ideologia comunista. Sabia-se que o poder
não gostava do conceito nem dos seus praticantes. A autocensura
levou o jovem, certa vez, numa entrevista, a ficar atrapalhado por
ter dito que gostava de ser útil à comunidade. Seria que isso
poderia ser lido como proximidade de outras palavras com a mesma
raiz?
Três
ou quatro dias depois do 25 de abril, as capas dos jornais anunciam a
chegada de Álvaro Cunhal, líder máximo do Partido Comunista
Português, nome que o jovem nunca tinha ouvido. O condicionamento
fá-lo ter um momento de apreensão? O quê, os comunistas vêm aí,
às claras, confiantes e aceites? Nesse momento, o jovem começa a
tomar consciência de que estão a chegar tempos muito diferentes,
não pelos comunistas em si, mas pela previsível abertura a
múltiplas e variadas realidades até aí interditas.
O
primeiro 1º de Maio. O 1º de maio de 1974 é inesquecível. Ou
antes, as manifestações. A manifestação de Lisboa começa na
Baixa e dirige-se para o estádio do Inatel [então, ainda FNAT], já próximo do
aeroporto. São muitos os milhares de pessoas a desfilar. Entre os
primeiros a chegar e os últimos, talvez medeiem duas horas. Toda a
tarde se desfila pela Almirante Reis acima. É um rio de gente a
caminhar com um sentimento bom de reencontro, de partilha, de
comunhão, de vitória sem raiva. Há um estado de graça nos
sorrisos, no convite aos que estão pelos passeios, nas saudações a
quem não se conhece. Não há ainda divisões. Estamos felizes.
Estamos todos finalmente livres. Simplesmente. [Emoção.]
«Uma
gaivota voava…» A sensação de liberdade, a convicção de
que o destino de cada um passa agora pelas suas mãos, leva a que
muitas pessoas quebrem as cadeias sociais ou rotineiras que as
prendem. Há que levar a verdade não só ao político como ao
social, à vida de cada um. Os divórcios saltam em flecha. A
contestação nas empresas leva mais facilmente ao rompimento dos
laços contratuais. A fuga de alguns empresários mais comprometidos,
associada à convicção de que os patrões não têm função
produtiva, logo são parasitas, leva a tentativas de controlo das
empresas pelos trabalhadores. Pelo menos, tentar uma cogestão que
devolva alguma verdade às relações de produção. O Estado é
chamado a intervir em inúmeras situações, quer para legitimar a
continuação da produção de empresas cujo proprietário fugira,
quer para assegurar a gestão de empresas onde o conflito
patrões/empregados ameaça paralisá-las. Desde grandes empresas,
até padarias, por exemplo.
«…
Como ela somos livres de voar.» A contestação, a reclamação
de direitos nunca reconhecidos, faz surgir lutas nunca vistas. Uma
que surge logo nas primeiras três semanas e que causa celeuma é uma
luta das prostitutas, já não sei por que direito. A televisão —
dois canais públicos a preto e branco — abre-se ao discurso
popular, à queixa debitada pelo homem da rua. As pessoas têm
finalmente acesso a divulgar os seus problemas. Os telejornais estão
repletos de queixas, de afirmação de direitos, de cobertura das
lutas laborais. Um dos programas mais populares trata de desmascarar
práticas desonestas de comércio, com produtos fora de prazo,
defeituosos, queixas de consumo, em suma.
Tomar
café na associação. A luta laboral vai levando a que o
trabalho seja melhor pago, quanto mais penalizante seja para o
trabalhador. O trabalho noturno pago por valores mais altos, leva a
que a vida noturna da capital se altere, pelo menos ao nível das
cervejarias e outro pequeno comércio de restauração. Algum deste
comércio que fechava por vezes às 2 da manhã, passa a fechar muito
mais cedo, devido aos novos valores do trabalho noturno, acho eu. A
noite lisboeta fica mais triste, com menos oferta.
Os
novos conceitos de “endinheirado
igual a fascista”, levam uns a uma fachada contida e à retirada
para núcleos mais restritos; a vontade de participar
na construção de uma nova sociedade leva outros para os inúmeros
núcleos associativos — cooperativas, sindicatos ou partidos.
Aí são agora os novos locais de eleição para os encontros e os
namoros.
«O
que se passa aqui, que tudo está tão diferente…?» De repente
as coisas estão diferentes. Interessa mais o “ser” que o “ter”,
há que ser solidário e não competitivo, há que participar
ativamente nas tarefas que são de todos, a alfabetizar, a
esclarecer, a ajudar em qualquer aspeto da vida coletiva da
sociedade, nem que seja só colar cartazes, gerir a pequena
associação cultural ou participar nas manifestações.
De
repente, o que se tinha aprendido está desatualizado. As relações
políticas, sociais, familiares e até pessoais pautam-se por outras
normas. Há a sensação de que é preciso desaprender tudo e
aprender tudo de novo. Lê-se Engels, Lenine, Marx, Mao, Wilhelm
Reich. Livros com títulos como “O que é a consciência de
classe?”, “A conquista do pão” ou “A origem da família da
propriedade e do Estado”, andam por algumas mesas-de-cabeceira.
Aprender, aprender, recuperar o tempo perdido, é preciso.
«A
cantiga é uma arma.» Entretanto, os militares, cuja consciência
política, na maioria, parece advir das mensagens emocionais contidas
nas canções de intervenção, começam a absorver as ideologias dos
partidos e a dividir-se. O ano e meio que se segue é um carrossel de
factos políticos, com os partidos a digladiarem-se, a tentarem
controlar as diversas tendências que os militares vão manifestando,
em osmose de ideias políticas.
O
jovem passa a noite a ler e a ouvir rádio — o horário do novo
trabalho permite-o —, na esperança de notícias condizentes com as
suas aspirações, mas sobretudo a absorver as mensagens e as emoções
contidas nas inúmeras canções revolucionárias que vão surgindo
em catadupa. Quando a luz do dia enche a rua, descansa finalmente.
A direita não aguenta tanta rutura dos seus valores e faz duas tentativas militares de controlo do processo, que são travadas, o que dá um grande alento à esquerda que aprofunda o controlo da economia e avança no sentido da democracia direta, mas
cria muitos anti-corpos.
O bloco
central não abdica de
uma democracia por
representação e pressiona,
dinamitando o emissor que passava
continuamente música revolucionária e retirando apoios
institucionais à esquerda militar, que se torna mais aguerrida
por ver fugir-lhe espaço de manobra. A 25 de novembro de 1975,
reage, mas a resposta está preparada. É derrotada e o país
inicia um processo de estabilização política em moldes
tradicionais.
«E
depois do adeus…» O jovem sente essa derrota como sua, tanto
mais pessoal quanto estar a ser por si ajustada para a televisão a imagem do militar esquerdista que é retirada do ar, no momento simbólico da perda de controlo pelos revoltosos.
Não
fora alfabetizar as populações do interior, não ocupara casas
devolutas para famílias carenciadas, não participara em atividades
das cooperativas agrícolas ou outras. Quase não “mexera uma
palha”. Tivera uma mera adesão intelectual, pequeno-burguesa e
romântica. Ainda assim, está muito abatido. O jovem sente que
novembro significa o regresso da cinza de antigamente. Ou pensa que
sim. Só lhe apetece emigrar. Mas, falta-lhe coragem.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Vieira da Silva, Liberdade, (Cartaz comemorativo do
10.º aniversário do 25 de Abril de 1974), 1984.
Coleção
Família SMBA
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