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10/03/2023

A realidade

 

A minha mãe é alegria. E sabor. Ela junta açúcar num pratinho com requeijão ainda quente que o meu pai acabou de trazer. Delícia! Colhemos figos amarelos a escorrer um pingo de doçura dourada. Regalo! Vamos à fonte buscar água. Fresca! Eu corro à frente. A correr, ninguém ganha à Flecha, a cadela. Corro com ela, feliz. Correr é bom! E andar descalço pelos campos. E nas areias frescas da ribeira. Pela sombra dos amieiros. E estar deitado no meio da erva. Ouvindo os muitos pequenos sons do campo. E sentindo os muitos aromas das plantas. O cheiro a fumo da erva cortada de fresco…


Fumo? Pedro acorda.

Está no escritório. Sentado e com os cotovelos apoiados no tampo da secretária, tinha adormecido por momentos. No cinzeiro, um cigarro queimado até ao filtro. Olha o relógio. Já passa das seis. Arruma alguns papéis que estavam dispersos pela secretária, veste o casaco e sai. Ainda é cedo para ir para casa. Resolve passar pela tabacaria, para comprar o jornal, antes de se sentar na esplanada do fundo da rua.

Nada mais repousante num fim de tarde: uma cadeira, um jornal e um café.

Na tabacaria, olha os cabeçalhos de jornais e revistas e decide-se por uma de nome a branco sobre vermelho.

A Pesquisa, se faz favor!

Paga-a e sai observando a capa. Apresenta o desenho de um cérebro sob um título que promete revelar tudo sobre a fase REM do sono. Cruza maquinalmente o passeio e começa a atravessar a rua sem despegar os olhos da revista. Logo um guinchar estridente lhe assola os ouvidos e o seu olhar já lhe desvenda a origem. A poucos metros, vem um carro de rojo, agarrando-se desesperadamente ao alcatrão. Os olhos do condutor fitam-no aterrorizados, como que a pedirem-lhe o milagre de se desviar, a tempo, da trajetória do carro. O sol refletido nos cromados fere os olhos. Os travões gemendo desfazem-se em chispas de fogo. As pessoas detêm-se de olhos fixos no horror que se desenrola mesmo ali. Sabem que um homem vai ser atropelado e nada fazem. Algo as mantém presas. Há movimentos apenas esboçados. Parece que tudo decorre em grande lentidão. Lentidão apenas aparente. Àquela velocidade, o carro vai esmagar o homem.


Pedro dá um pulo na cama.

À sua frente desenrola-se um acidente do qual ele próprio é o atropelado iminente. Em escassos momentos, porém, o carro que vem ao seu encontro desvanece-se e desaparece, deixando em seu lugar apenas os ferros graciosamente enrolados da sua acolhedora cama.

Pedro pestaneja, olha em volta, e finalmente fecha a boca, que possivelmente gritara. Passam-se os segundos, mas na sua memória as imagens são nítidas. O carro parece estar ali. O carro, o chiar dos travões, o cheiro dos pneus, mesmo a cara do condutor que ele não conhece.

É difícil acordar de um pesadelo, mas no fim é um alívio. Pedro respira fundo, enquanto passa a mão pela testa. Da rua chegam-lhe ruídos de discussão. Levanta-se e vai à janela. Lá em baixo, no alcatrão, dois homens discutem. Um carro está atravessado na rua e outro em posição de ter surgido da lateral. Os rastos da travagem daquele atingem mais de dez metros. Aí está a explicação do aparecimento e do conteúdo do seu sonho.

Pedro volta para dentro, calça os chinelos, alisa o cabelo, e passa do quarto, onde dormira a sesta habitual dos sábados, à sala onde o seu filho se entretém com um automóvel de brinquedo e a sua mulher o recebe com um sorriso.

O quê? Já acabaste a sesta?

Ele beija-a e senta-se. Sabem-lhe bem os sofás macios, confortáveis. A sala acolhedora fá-lo sentir o contraste com a vivência de há momentos.

Nem queiras saber o pesadelo que tive... Ia sendo atropelado.

No sonho!

Sei lá se foi só no sonho. Era tão real! Eu ia a atravessar uma rua e de repente, sem esperar, aparece-me um carro a toda a velocidade.

Eu, às vezes, também tenho sonhos horríveis.

Mas as coisas estavam tão nítidas, tão coerentes, que eu chego a duvidar se era só sonho. Ainda me lembro da cara do tipo que conduzia. E das pessoas que assistiam. Sabes que a coerência interna das situações é o único indício que costumo tomar como certeza de que estou acordado.

Pela mente de Pedro, desfilam novamente as peripécias do sonho. Todos os pormenores permanecem vivos na sua memória: o rodado dos pneus, o aspeto da rua, o rosto da empregada da tabacaria, a revista...

E a revista era a Pesquisa. O engraçado é que é uma revista que já não compro há uns meses. Anunciava nesse número, em grandes letras, “Sono REM — o organizador da realidade”. Lembro-me bem.

Não sei que organização é essa, porque, para mim, isso de sonhos está cheio de incoerências.

Talvez não só incoerências! Repara que, na maior parte das vezes, o sonho reflete as peripécias do dia de quem sonha, ainda que sob uma capa surrealista. Posso sonhar que atravesso a vau um pântano onde outras pessoas chafurdam e não acho isso estranho. Quando acordo, se me lembrar do sonho e fizer um esforço de o relacionar com episódios do dia anterior, talvez me lembre de ter atravessado um relvado acabado de regar a caminho do trabalho. O terreno empapado está lá; o resto talvez seja um sentimento inconsciente do que penso do local de trabalho e de quem por lá se arrasta.

Hm, sim! Mas não seria mais lógico sonhares com o local de trabalho, mesmo, e não com o relvado?

Talvez, mas é a maneira como o nosso cérebro funciona. Aliás, os sonhos incongruentes perturbam-me menos do que aqueles que não distingo da realidade… Como é que eles acontecem? Sou eu, que estou a dormir, que consigo imaginar histórias, que nunca vivi, cheias de pormenores como na vida real? Chegam a ser tão coerentes e semelhantes à realidade que eu já me tenho perguntado o que é afinal real: o que vemos aqui, ou o que vemos nos sonhos? Ou ambos? Deixa-me cá beliscar… Ah! Outra curiosidade. Antes deste sonho, tive outro com recordações de infância. Esse era uma grande baralhada e já não me lembro bem. Mas evocava sobretudo sentimentos e emoções.

Eu chego a ter quatro e cinco sonhos só numa noite...

Sim, mas sabes o que me aconteceu? É que passei de um sonho para outro, como se passasse de um sonho para a realidade. Acordei, pensava eu. Mas era outro sonho, percebes? E olha que estava mesmo convencido que estava acordado.

Pedro fica calado a pensar. Depois adianta:

Quem me diz a mim que isto tudo não é outro sonho igual ao do acidente?

Entreolham-se. Pedro belisca-se novamente. A mulher finge que se zanga:

Então e eu sou o quê?

Tens razão, querida. Tu és mesmo real. E ainda bem.

Passa-lhe a mão pelos cabelos e pela face macia, olha-a no azul dos olhos e beija-a no quente dos lábios, longamente. O miúdo, que brincava com o carrinho, mas sem perder pitada do ambiente, vem a correr meter-se entre eles, para não ficar de fora na distribuição de carícias. Os três estão abraçados e a rir com a brincadeira, quando soa uma campainha. Ele pega no telefone, mas ninguém responde.

Deve ser a porta.

Ela vai abrir, mas volta logo.

Não está ninguém à porta...

Ele desliga o televisor, mas a campainha continua a tocar sem interrupção. Entreolham-se todos, com olhares um pouco assustados, sem trocarem palavra. O miúdo corre a abrigar-se nos braços da mãe. Olham para todos os cantos da sala, para o teto... O som da campainha continua, mete-se pelos ouvidos adentro, parecendo vir de todos os lados ao mesmo tempo.


Pedro começa a tomar consciência das cores escuras e pesadas. Depois as formas aparecem-lhe com mais nitidez. Os seus olhos abrem-se definitivamente e com eles percorre o aposento: roupa amarrotada numa cadeira; um poster de revista na parede; uma mesa com um prato sujo em cima; do outro lado da cama, um banco com um cinzeiro e um despertador.

O barulho do despertador é já insuportável. Pedro trava-o com um murro. Fica a olhar para ele e para tudo o que ele significa: trabalho, submissão a horários, salário de miséria...

Seis e meia. Merda de vida!

Senta-se na cama, encostado à parede. O leito é um colchão de espuma com um saco-cama em vez de lençóis. Acende um cigarro. Acodem-lhe ao pensamento imagens do sonho que acaba de viver. Detém-se nos sofás confortáveis, na estante cheia de livros, nos quadros, no menino adorável, na mulher linda e deliciosa…

Não querias mais nada: boa casa, um bom emprego e uma mulher boa!

Um sorriso amargo aflora-lhe a boca. Acaricia a ponta do travesseiro, sonhador, pensativo.

Sonhos!

Os seus olhos percorrem o local onde poderia estar deitada uma mulher. «É difícil viver sem mulher.» Mais difícil e amargo ainda lhe foi viver com uma mulher em desarmonia. «Que fazer?» Volta a olhar a miséria monótona do quarto. Não é preciso beliscar-se. Esta realidade conhece ele bem.

Ou não? Afinal, que crédito pode dar ao que, de todas as vezes, lhe pareceu realidade? Por que aceitar esta, se ela parece tão desagradável? «Não quero esta merda!», decide. «Qualquer das outras é preferível.» Acabado o cigarro, estende-se outra vez, relaxado.

Que se lixe!

Umas três horas depois, sonha que voa por cima do parque da cidade. Controla tão bem o seu corpo que bastam poucos movimentos dos pés para se elevar, e pequenas inclinações do tronco para orientar a trajetória. Acaba por poisar num enorme relvado junto a uma mata. Desta sai um urso que se prepara para o atacar. Pedro pega num pau e bate com ele fortemente na cabeça da besta. O animal tem a cara do seu patrão, que lhe aponta o indicador:

Estás despedido!


Pedro salta da cama com um forte sentimento de angústia. Está outra vez atrasado. Muito. Lava os olhos à pressa, veste-se num ápice e sai do quarto a correr. Lá fora, a realidade parece saída de um quadro de Bosch.

«Socorro! Quem me acorda?»

Joaquim Bispo

*

Este conto — escrito em 1976 e reescrito em 2016 — foi um dos 15 selecionados para integrar a 5ª edição da Fluxo — Revista de Criação Literária, de junho de 2019 (páginas 36 a 41):

http://bit.ly/fluxof5

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Imagem:

John William Waterhouse, Sono e seu meio-irmão Morte, 1874.

Coleção privada.

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