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10/03/2024

A última morada

 



Respeita a minha última morada.

Pelo teu exemplo, talvez respeitem a tua.


Eburo estava indignado. A anta da sua família, com mais de 6000 anos, fora arrasada para plantar um amendoal.

Ninguém o avisara que os mortos não se indignam. Nem têm nenhuma das outras inumeráveis emoções dos vivos. Mas, não era o único morto que não tinha consciência da impossibilidade da sua vitalidade psíquica.

Comentou o desacato com familiares e amigos, mas não obteve mais do que encolheres de ombros. Parecia que todos já estavam habituados à falta de respeito pela integridade dos seus restos mortais e da sua última morada. Uma indignidade continuada. A falta de apoio deixou-o desalentado, mas não deixou de ruminar no assunto.

Na excursão a Lisboa que a autarquia organizou pouco depois, Eburo sentou-se ao lado de um tipo moreno de óculos. A conversa, em língua moderna, só podia rumar num sentido:

O vizinho já viu o que me fizeram? Arrasaram-me a anta de família, ali na Herdade do Vale da Moura. Aguentou 6000 anos sem estragos de maior! É claro que os esteios já estavam à vista e a cobertura estava tombada sobre um resto da terra da mamoa, mas estava completa, com um porte ainda nobre. Agora vieram estes tipos e mandaram aplanar o terreno todo, para plantarem um amendoal intensivo, como se lhes fizesse falta o terreno de 4 árvores. A última morada, minha e da minha família, não vale mais do que 15 ou 20 quilos de amêndoas. É de uma indignidade atroz, você não acha? Você é de onde e de quando?

Olhe, eu sou ali de ao pé de Montemor e estou morto de fresco. Morri há 4 anos e nem fui à terra, fui direto para o crematório de Ferreira. E pensa que os herdeiros levaram as cinzas para casa? Ná, foram para o cendrário coletivo do crematório. É assim a nossa vida. Você, ao menos, sabe onde era a sua anta; eu nem isso.

Eburo não respondeu, mas franziu o sobrolho, surpreendido com a revelação pungente do companheiro de viagem.

Eu até acho mais ecológico — continuou o interpelado. E tem algo de evocação primordial: o clã à volta da pira sobre a qual se depositava o falecido, as chamas altas, o fumo a subir. Parece uma solução própria de exércitos ou grupos étnicos em marcha. Prestam homenagem ao extinto e não deixam para trás qualquer resto que possa ser profanado por estranhos ou inimigos. Era assim no tempo da Guerra de Troia.

Só soube dessa guerra umas centenas de anos depois...

Somos a única espécie que tem comportamentos funerários — discorria o recém-conhecido. Devem ter surgido não só pela razão prática de fazer desaparecer a carne morta, como pela tomada de consciência da falibilidade da vida. Para os nómadas, se não praticassem o canibalismo, seria fácil abandonar o corpo à ação higienizadora de abutres e lobos; para os sedentários ligados à terra, o fogo purificador faria menos sentido do que enterrar o defunto. Adubava a terra. As plantas e os frutos que dali medrassem teriam um pouco do falecido, seriam o seu regresso ao ciclo da vida.

Eburo mantinha-se atento, mas conhecia bem aquele entendimento.

O resguardo dos restos mortais em urnas, jazigos, criptas deve ter sido adotado quando se ganhou a convicção, ou pelo menos a esperança, na vida depois da morte — prosseguiu o morto recente. — Manter o corpo guardado num local fechado podia ser a melhor forma de manter alguma coerência corporal. E se fosse bem preservado por uma mumificação eficaz, como faziam os Egípcios, e bem resguardado numa estrutura inexpugnável, como uma pirâmide, o morto tinha as melhores condições a que podia aspirar, quando iniciasse a viagem para um outro mundo, ou quando ressuscitasse.

Em Lisboa, Eburo tratou de visitar o Cemitério dos Prazeres. Já conhecia a fama da qualidade arquitetónica dos jazigos, mas o que o levou lá foi sobretudo tentar perceber se a falta de respeito pelos mortos e pelo património também se fazia sentir na grande cidade. A maioria dos jazigos parecia em bom estado e objeto de atenção frequente. Não meteu conversa com ninguém, porque os habitantes estavam recolhidos, e não era por causa da Covid-19; era porque já não podiam com tanto turista. Deambulou pelas avenidas do local, ficou mesmo surpreendido com o inesperado de algumas construções e com a qualidade das esculturas, mas, depois de muitas paragens, decidiu que, apesar de tantos arrebiques, a sua anta possuía — possuíra — uma beleza singela e natural que nenhum daqueles edifícios tumulares atingia. Deteve-se com alguma demora em frente do formidável mausoléu do Duque de Palmela. A grandiosidade da edificação, que alberga os restos mortais de mais de 200 membros da família, causava-lhe um misto de admiração e ressentimento pela ostentação faraónica. A seu lado, dois outros turistas isolados apreciavam o túmulo coletivo.

Admiro o cuidado com que mantêm esta necrópole em tão boas condições — lançou Eburo aos presentes. — E até fico impressionado, confesso, com a capacidade dela. Já sou mais cético em relação à longevidade… Eu estive numa anta no Alentejo, logo abaixo de Évora, rodeado por vários familiares, durante quase 6000 anos. Há talvez uma centena de anos, assaltaram-na e a maioria dos ossos dispersou-se. E, há uns meses, vieram com máquinas e destruíram-na completamente. Já tenho dificuldade em saber onde era. Até as pedras enterradas arrastaram dali. Há direito isto? Já não valem nada 6000 anos? Aonde é que nós chegámos?

Os outros dois olharam-no surpreendidos. Pareciam não querer conversa, mas após um tempo, um deles pareceu entristecer-se e baixou a cabeça. Parecia rememorar alguma coisa penosa. Por fim, tomou a palavra:

Como eu o compreendo, amigo! Isto são tempos terríveis. Não há respeito por nada. Você, se calhar, ainda encontra as pedras maiores da sua morada; eu nem isso.

Lembranças dolorosas fizeram-no baixar de novo a cabeça. Depois prosseguiu:

Chamo-me Creze. Vivi há 3000 anos numa área junto à serra da Gardunha. Fui agricultor de certa importância. Cultivava cereais naquelas encostas descarnadas e mantinha um rebanho numeroso, ajudado pela meia dezena dos filhos que chegaram à idade adulta. Quando morri, os filhos mandaram escavar uma grande pedra oblonga e enterraram o féretro na encosta de uma pequena elevação, na qual eu gostava de me sentar à sombra de um carvalho olhando a distância. Há coisa de 60 anos, um agricultor agradou-se da minha sepultura. Devia querer usá-la para bebedouro de animais. Desenterrou-a, levou-a para a sua quinta e tentou furá-la no fundo. Tanto martelou que a sepultura de pedra se partiu a meio. Frustrado e sem lhe encontrar já préstimo, no dia seguinte partiu-a a martelão.

Os ouvintes franziram o sobrolho, incomodados com o relato daquela depredação inútil.

O meu querido machado de bronze, que ele também tinha levado, foi parar às mãos do filho adolescente, que não reconheceu a peça, muito menos a sua antiguidade, apesar de ser estudante. Pouco depois, usou-o como escopro para uma das suas bricolagens. É claro que, com aquele uso inadequado, o machado abriu-se em lascas. A metalurgia do meu tempo não tinha a qualidade da de agora. Em dois ou três dias, o meu espólio, a minha última morada, a minha dignidade foram completamente esfacelados.

Eburo estava impressionado. Parecia que o seu caso, que tanto o indignava, era a regra: saque e destruição.

O outro ouvinte pareceu ganhar coragem para contar a sua história.

O meu nome é Arnth Vipinana, de uma das mais importantes famílias etruscas do final do século IV a.C., da qual provinham os altos funcionários do Estado. Vivíamos na zona a norte de Roma e a nossa gens tinha um nível cultural muito apurado, o que não impediu que viéssemos a ser absorvidos, nos últimos séculos antes desta era, pelos emergentes descendentes de Rómulo. Deixámos monumentos funerários admiráveis, de uma beleza sofisticada — sarcófagos encimados por figuras reclinadas, geralmente resguardados em grutas coletivas. Assim era o meu, uma arca em granito, com altos relevos de cenas guerreiras na face maior e que na tampa apresentava a minha figura de vulto, em atitude de descanso majestoso, reclinado sobre o lado esquerdo. Mantive-me em sossego durante 22 séculos, juntamente com outros familiares, cada um em seu sarcófago, na cripta coletiva subterrânea.

Os dois ouvintes circunstanciais mantinham uma atenção silenciosa.

Então, em 1839, a necrópole da minha família foi descoberta pela família Campanari. Os Campanari eram já prósperos comerciantes de antiguidades, com licenças estatais e tudo. Estava em alta a moda das antiguidades, potenciada por uma exposição de arte etrusca por eles organizada dois anos antes em Inglaterra. As peças etruscas rendiam bom dinheiro e muito do espólio encontrado foi leiloado pouco tempo depois. Por volta de 1867, venderam três sarcófagos da nossa cripta, incluindo o meu, por um preço fabuloso, a um emergente comerciante inglês — Francis Cook. Cook tinha acabado de comprar a Quinta de Monserrate, em Sintra e lançara-se na construção de um esplendoroso jardim romântico, com inúmeras espécies botânicas exóticas, trilhos serpenteantes, cascatas, lagos, pontes, ruínas falsas. Neste ambiente paradisíaco, colocou ele os três sarcófagos verdadeiros, aproveitando não só a sua beleza estética, mas também a sua capacidade evocadora, cada um em seu contexto cenográfico. O meu ocupava a abside da ruína falsa de uma capela e ali se manteve desde 1867, à mercê da ação da humidade, de líquenes e musgos, e sobretudo, do vandalismo dos visitantes, que é sempre ignorante. Aquele fabuloso parque foi mesmo votado ao abandono a partir de 1929.

É uma falta de respeito inaudita! — fez-se ouvir Eburo, que já estava um pouco cansado da explicação.

Em 1983, houve uma tempestade tal que a torrente arrastou uns metros o sarcófago que estava junto a uma represa e lhe levou a tampa, que nunca mais apareceu. Foi um dia muito triste para nós os três. Só nessa altura as autoridades nacionais recolheram os sarcófagos no abandonado Palácio de Monserrate, mas com tal falta de cuidado que esborcelaram gravemente aquele já castigado pela tempestade. Mas terminavam 116 anos de grande degradação e angústia. Finalmente, em 1997, criaram uma câmara especial, a lembrar uma cripta etrusca, no Museu Arqueológico de Odrinhas, onde me sinto razoavelmente. Só me queixo da vozearia que vem da Sala dos Romanos — um salão com umas boas dezenas de estelas e pedras tumulares.

Isso foi uma odisseia e tanto, amigo! — respondeu, por sua vez, o beirão. — Mas ao menos acabou em bem. Já quanto a nós…

— “Em bem” é uma maneira de dizer; o amigo desculpe — ripostou o etrusco. “Em bem” era ter-me mantido na cripta em que os meus familiares me colocaram, e não vir parar a uns milhares de quilómetros, a servir de decoração e divertimento para gentes que não conhecia.

Tem razão, pois claro, desculpe. Mas como compreende, a nossa situação é muito mais penosa que a sua. Infelizmente, não há muito a fazer. Não é verdade, amigo alentejano?

Eu não sei. Acho que isto não fica assim; não pode ficar assim. Só me apetece ir lá deitar-me na cama dos que me fizeram isto. Se calhar, não davam por nada; ou talvez sentissem um fresquinho, sem saberem de onde vinha… Pelo menos, tinha onde descansar.

Creze gostou da ideia. Logo ali resolveram os dois criar um movimento dos “sem tumba”. Haviam de organizar-se, reunir o apoio de tantos outros deserdados, propor formas de ação, intervir no mundo dos vivos, ainda que de forma subtil.

Despediram-se do itálico, que prometeu pensar no assunto.

Quando passarem por Sintra, vão-me lá visitar a Odrinhas — convidou.

Está prometido, Arnth! Arrivederci — brincaram os ibéricos, bem-humorados.

Foi bom humor de pouca dura. Daí a pouco, no elétrico, enquanto lançavam olhares distraídos ao jornal que um cidadão folheava, carregaram de repente o semblante. Uma pequena notícia no interior, de título “Outra anta do Neolítico arrasada no Alentejo”, informava que o crime acontecera no mês anterior na Herdade dos Pardais, Cabeção, Mora.

Joaquim Bispo


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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 44ª edição (março/abril de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 71 a 74):

https://drive.google.com/file/d/1p23s5QFHjyx7ieM_btfnEYNRrYFF3m6r/edit

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Imagem: Sarcófago etrusco de Arnth Vipinana, c. 310–300 a. C.

Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, Sintra.

* * *

10/05/2023

Um crime suburbano

 

Não é um feito de que me orgulhe, mas tenho de confessar: eu apanho coisas no lixo. De vez em quando, percebo que uma peça interessante está poisada junto a algum dos grupos de caixotes que estão distribuídos um pouco por todo o bairro. Já trouxe para casa uma pequena mesa de apoio de sofá, uma prateleira para frascos de especiarias, uma moldura de madeira trabalhada e pintada de castanho, mas, geralmente só apanho livros. Apesar de poucas pessoas os comprarem, vão aparecendo livros, geralmente escolares, junto aos caixotes.

Esta história começa há uns quatro meses, em uma das minhas voltas de caminhada e exploração, que, invariavelmente, tentam percorrer itinerários menos habituais, quando encontrei uma caixa de cartão com livros, junto a uns caixotes de lixo no “Bairro dos Sinistrados”. Tinham todos capa preta e eram da mesma coleção de especulação paracientífica, área que agora me interessa pouco, mas que fez sucesso nas décadas de 70 e 80. Percorrendo os títulos, acabei por me agradar de “Os arquivos do insólito”. No meio deles, uma agenda de 2007, de tamanho próximo do dos livros — menor que o A4 —, que aparentemente tinha sido usada como diário. Movido por uma curiosidade voyeurista, acabei por a trazer para casa, também.

Era uma dessas agendas com umas quantas folhas iniciais de informações supostamente úteis, como a conversão entre as medidas inglesas e as do sistema métrico, as distâncias quilométricas entre cidades europeias, os feriados municipais de dezenas de concelhos portugueses, os cálculos de volumes de sólidos simples, e outras irrelevâncias de uso incerto. O resto apresentava três dias por página e estava parcialmente manuscrito. Havia muitos dias em branco, mas o espaço de outros estava aproveitado até às margens, em letra tanto mais pequena quanto o autor percebia que tinha mais para dizer do que o espaço disponível. Havia mesmo dias que invadiam o espaço dos seguintes.

A letra era relativamente bem desenhada e fui lendo as observações do quotidiano de alguém que, aparentemente, vivia de apanhar e vender metal, além de explorar uma horta urbana clandestina. Nada de especialmente movimentado ou excitante, mas, a certa altura, o relato terminava abruptamente e percebia-se que a folha seguinte tinha sido rasgada pela base. Caramba! Este pormenor acicatou-me mais a curiosidade do que o facto de ter encontrado a agenda. Teria a folha sido rasgada por conter alguma peripécia comprometedora ou o autor do diário tinha simplesmente precisado dela para escrever um recado? A curiosidade era grande, mas nada podia fazer.

Nada podia fazer em estado de vigília, mas, quando acordei na manhã seguinte, o trabalho do meu espírito, enquanto dormia, deu frutos. Lembrei-me de ter visto num filme, talvez policial, uma situação semelhante em que o protagonista tinha conseguido reconstituir o que tinha sido escrito, pela análise laboriosa dos sulcos produzidos nas folhas adjacentes pela pressão da ponta da esferográfica na folha arrancada. Inclinando a página seguinte, percebi a existência desses sulcos. O principal estava provado; a técnica para conseguir ler os ditos sulcos fui buscá-la à Internet. Após uma semana de trabalho paciente e meticuloso — polvilhamento com pó de café, meia-linha a meia-linha, aplicação de luz rasante, fotografia de alto contraste —, consegui reconstituir todo o texto desaparecido, que tinha ocupado as duas faces da folha. Aplicar a técnica à folha anterior e já escrita foi mais delicado e moroso, mas no fim consegui ler tudo.

Fiquei alarmado. Realmente, havia razões muito fortes para o autor do diário tentar esconder o que tinha acontecido naquele dia. Tão grave era a situação que a primeira coisa que me ocorreu foi ir à Polícia denunciar o autor, fosse ele quem fosse. Algo, no entanto, me levou a enveredar por uma investigação pessoal: talvez o medo de me expor como testemunha; talvez a necessidade de ocupar os dias de uma reforma monótona. Primeiro, havia que caracterizar o autor do diário e eventual criminoso, pela análise ponderada dos seus escritos. Acompanhem-me nessa análise e avaliem também que tipo de pessoa é esta.


23 de março

Gosto do cheiro das manhãs, da luz limpa e verdadeira do sol nascente. De manhã sou mais eu, mais o jovem que dormia de janela aberta para receber os primeiros raios refletidos no Mar da Palha. Fumava um cigarro a contemplar os alvores rubros em luta contra a neblina do rio, o fumo do meu cigarro a evolar-se pachorrento, como os indolentes vapores da fábrica da farinha que ronronava todo o dia e onde eu trabalhei dez anos. Se fosse dia de folga, voltava a deitar-me para mais umas horas de sono. Uma manhã — maldita seja —, o rubro não era o do astro da vida, era o do génio da morte. A minha fábrica, o meu ganha-pão, era uma garra de fumo negro a esganar o meu futuro e o dos outros operários. Por detrás, o diabo em cabriolas de chamas por entre as máquinas, a cortar tapetes de transporte de grão, a derreter alcatruzes e roldanas, a comer o pão de todos. No momento, ainda suspeitei dos homens de negro de cuja existência os meus livros me avisavam, o que me pareceu que era corroborado pelas luzes estranhas que por vezes via pairar sobre o mouchão, mas não descortinei as suas sinistras silhuetas a assegurarem-se que o mal feito se cumpria na totalidade. Nunca mais lá voltei.

Hoje, o céu estava assim vermelho, potente. Ao pé da escola de baixo estava uma máquina de roupa. Arranquei-lhe o tambor e umas seis peças que consegui cortar, com a mesma raiva de há vinte anos.


2 de abril

Marteladas, o raio que os parta! Quem é que eles pensam que são? Têm a mania que são aristocratas, por afocinharem no gargalo da mini ao fim da tarde na esplanada do café do Sr. Manel. Estes tipos veem-me andar ao cobre, ao latão e ao alumínio e pensam que sou um tipo qualquer, que me podem tratar de qualquer maneira. Não sabem nada de mim, em que ofícios trabalhei, como me realizo, o que sou. Não lhes passa pela cabeça as coisas que eu sei. Nunca viram a minha estante de livros… Devem pensar que Heisenberg é um corredor de automóveis. Não sabem quem é, muito menos o que disse.

«Ó, Marteladas, bebe aqui uma mini, que pago eu.» — grasnou um, de olhinhos apertados pelo prazer do deboche, a querer mais caçoar do que oferecer.

«Marteladas deve ser aquilo que tu já não dás há muito tempo» — foi a minha resposta pronta. Tenho pouca vontade de servir de chacota aos outros, muito menos de tipos que não merecem respeito.

Veio para mim com ar agastado: «Mas, ouve lá, é assim que agradeces? Tu não te enxergas.» Dei-lhe um empurrão que o fez estatelar no chão de mármore, a garrafa a escaqueirar-se e o líquido a espalhar-se. «Quem não se enxerga és tu, que deves estar bêbado desde ontem. Vai mas é beijar o rabo ao teu patrão.» Levantou-se de um salto, os olhos muito abertos a correr para mim, mas eu só levantei o martelo. Hesitou, a ver a questão de outra perspetiva, a olhar para os parceiros a ver se tinha apoio. Só grunhiram uns resmungos de apaziguamento. Já todos me conhecem… Se fosse preciso, tinha a navalha.


8 de abril

Entrou um rato na horta. Não foi nenhum cão, não foi uma rabanada de vento. Foi alguém que entrou lá deliberadamente para roubar. Destorceu o arame que tenho na porta, andou a cheirar e arrancou duas couves. Podia simplesmente tirar umas folhas, mas não. Esta gente não sabe nada de nada. Veem as couves inteiras no supermercado e acham que é assim que se colhem. Estúpidos.


10 de abril

Foi um dia para esquecer. Dei voltas e voltas, cheguei a ir aos Pombais, mas só encontrei umas calhas de estore. Tive de fazer uma saída à noite. A mulher na telenovela a querer saber aonde ia. Por acaso eu chateio-a por ela estar sempre a ver televisão? Felizmente, tenho os meus livros e o escritório. À noite são as novelas, de manhã são aqueles vendedores de rifas. Interessa-lhes lá a música de qualidade ou a formação de cidadania; só querem que se telefone para os sorteios deles, pagando, claro. Deve haver umas centenas de milhares de estúpidos que telefonam todos os dias e não fazem as contas ao que gastam. Se calhar, já ultrapassa o prémio. Creem na sorte e não nas probabilidades. Uma hipótese em duzentas ou quinhentas mil? Parvos.

Só achei mais umas caçarolas e um escadote partido. Não gosto de sair à noite, porque não se pode estar a fazer barulho com o martelo.


13 de abril

Este ano vou plantar morangueiros e espinafres. Aos poucos, vou tendo de tudo. É incrível como um espaço de uns 40 metros quadrados dá tanta coisa: batatas, couves, alfaces, tomates, cenouras, cebolas, alhos, favas, beringelas, feijão grande. Fica caro comprar as ferramentas, as sementes, o adubo — quando encontro, prefiro comprar estrume; é mais natural. Se fôssemos contabilizar o trabalho, então… Mas sei o que como. Parece que me sabe melhor. As batatas têm um sabor que não tem nada a ver com as do super. E passar ali umas horas a tratar das plantas não tem preço. São tão generosas. Se as pessoas tivessem metade da generosidade das plantas…

A primeira horta que arranjei era lá em baixo, ao pé da ribeira. Já lá vão uns anos valentes. O espaço estava baldio e eu precisava de ganhar alguma coisa. Ou, pelo menos, de não gastar. E de ocupar o tempo. Nessa altura estava com subsídio de desemprego e tive de me desenrascar. Pareceu-me que poupar nas compras era uma espécie de complemento do subsídio. E era. Cheguei a ter três macieiras, uma pereira, um pessegueiro, uma ameixieira. Para nós dava. Ou tinha de dar. Passei a ir ao super só para comprar arroz e massa. E alguns enlatados. Mas depois quiseram melhorar o trânsito e fizeram para ali uns viadutos e umas rotundas e usaram o terreno à vontade deles. Enfiaram um pilar mesmo no meio da horta. Tive de procurar outro local. Aqui ao pé de mim tinham andado a mexer na ribeira, quando rasgaram uma rotunda, e deixaram uns espaços que davam umas leiras estreitas e inclinadas. Vedei uma tira com canas, aos poucos endireitei o terreno e criei um ponto firme na berma da ribeira para tirar água. Desloquei para lá uma arca congeladora velha, para fazer de tanque, e uns bidões de plástico. Quando tenho mais tempo, encho tudo. E rego quando é preciso. É quase como se tivesse água canalizada.

O que eu sinto é que aquilo dá-me trabalho, mas tiro de lá compensação mais do que suficiente. De víveres e de serenidade. Quando posso tirar. Porque esta noite o rato voltou e levou as beringelas todas: umas cinco ou seis. Andava a olhar para elas, à espera de ficarem maduras, para fritar às rodelas… Fiquei fulo. Que tipo de pessoa se vem aproveitar do trabalho de outro em seu proveito? Bem, qualquer um. Vivemos numa sociedade podre. Se apanho o ratinho…


16 de abril

Dia de entrega de material. O fulano de Torres Novas apareceu logo às 8 e meia. Só queria dar 50 cêntimos, o quilo, pelo alumínio, 2 euros pelo latão e 3 pelo cobre. Ferro, nem vê-lo. Isto cada vez está pior. Argumentava que as poucas coisas que eu juntei mal davam para a deslocação, porque tinha de pagar o gasóleo, os pórticos e as portagens.

Pouca coisa, para ele, que a mim bem me custou catar peça a peça. E cortá-las aos bocados, de modo a caberem nos bidões. Tinha quatro de ferro, dois de alumínio e meio com coisas de latão e de cobre. Acabou por subir um bocadinho e levou também o ferro. Tudo junto, pouco passou dos 150 euros. Enfim. Podia ser melhor, mas bom jeito dá. Com o que poupo com a horta, vai ajudando a esticar as reformas. E mortinhos que os do Governo andam para lhes meterem a unha.

Ninguém imagina a economia que representa a reciclagem de metal puro, em vez de ser extraído do minério. Ninguém suspeita que se economiza mais de 90% da energia elétrica que seria utilizada na produção do metal a partir da bauxita, li num artigo. Se fizessem as contas à energia que o país poupa ao reciclar os metais que nós, os coletores de sucatas, fornecemos, talvez nos dessem mais valor. É preciso é acabar com os que geram mais prejuízos que poupanças, esses que vão pelos campos de zonas pouco habitadas e desmontam centenas ou quilómetros de cabos de cobre — o “bife do lombo” dos metais —, quer da rede telefónica, quer da de distribuição de energia elétrica. E que roubam tudo o que aparece, desde floreiras e estátuas nos cemitérios, até esculturas, em praças ou rotundas, algumas com centenas de quilos. Vendem por umas dezenas de euros o que pode ter custado milhares. Não tenho nenhum respeito por essa gente. Olham para os trocos no bolso deles, não olham para o mal que fazem. O património artístico não lhes diz nada. Vivem para quê? Em dias fracos, quantas vezes olhei para os puxadores de cobre de algumas portas, mas seria preciso eu estar muito desvairado. Não, comigo não.


Aqui terminavam as páginas escritas. Só transcrevi as que me pareceu que melhor caracterizavam o autor, ao qual podemos chamar Marteladas, à falta de um nome. O que se segue é o texto recuperado, o tal que, aparentemente, o nosso homem quis esconder.


28 de abril

Se calhar, não devia escrever isto, mas preciso de desabafar. Nos últimos dias, houve três assaltos à minha horta. Ontem, depois de a ver patinhada, destruído um alfobre de alfaces e roubadas mais três couves e umas duas dúzias de cenouras, decidi-me. Quem rouba tais quantidades não é para comer, deve ser para vender. Arranjei um banquinho e um cobertor escuro e, à noite, instalei-me na horta, num nicho de canas que improvisei. Pelas duas da manhã, já estava arrependido. Achei que precisava de saber primeiro se o rato vinha à noite ou de manhãzinha. Estava quase a decidir regressar a casa e acolher-me ao quentinho da cama, quando ouvi um restolhar na vereda que dá acesso à horta. O meu coração partiu para uma prova de velocidade. Até tive medo que o barulho que fazia denunciasse a minha presença. Então, vi a sombra de um homem que, cautelosamente, destorceu o arame da porta e entrou quase sem ruído. Pela silhueta, parecia o tipo a quem eu dera um empurrão na esplanada do Sr. Manel. Sacana! Não era por fome, era por vingança. Senti um afrontamento no pescoço. Tentei dominar a raiva. Peguei, silenciosamente, no sacho que tinha posto à mão, disposto a dar uma coça no intruso. Na minha horta não entrava um ratoneiro impunemente. O ratinho olhou, a orientar-se no escuro e, fiado na vedação de canas, acendeu uma lanterna de bolso, mas não consegui divisar-lhe as feições. Momentos depois, já tinha cortado uma couve com uma navalha de bolso. Antes que cortasse outra, saí de trás das canas a gritar. O tipo assustou-se, mas depois cresceu para mim, com a navalha e a lanterna a encandear-me. Estava a ver o caso mal parado. Felizmente, o cabo do sacho era muito mais comprido do que o da navalha dele. Puxei-o de trás de mim, numa rotação lateral acelerada em direção à luz. Ouvi um som abafado e senti que o movimento foi travado por alguma coisa pouco rija e, imediatamente, apenas o escuro, a lanterna no meio das canas, o vulto do malandro a esmagar o canteiro das cebolas. Totalmente aturdido com a rapidez dos acontecimentos, mantive-me em pé, alerta não sei para quê. Passado um tempo que me pareceu infindo, tomei finalmente consciência plena do que acontecera. E da situação melindrosa em que me colocara. Baixei-me a apalpar o vulto caído, mas, pela brecha na cabeça, logo percebi que o irremediável estava feito. O calor de pouco antes deu lugar a um frio intenso. Perigo era o que sentia. Era preciso atuar rapidamente. Desfazer-me do corpo. Atirá-lo à ribeira, escondê-lo, desmanchá-lo. Na escuridão, percebi as manchas claras dos bidões e da arca congeladora. Esta era quase do tamanho do corpo. Não tentei provar a mim mesmo que era a melhor solução. Era uma solução.

As duas horas seguintes foram de trabalho esforçado. Afastei a arca e cavei uma cova suficiente para o corpo. Não a afundei mais que uns 60 centímetros, porque depois havia rocha. Para já, chegava. Arrastei para lá o corpo, tapei-o bem e arrastei a arca para o sítio dela, por cima do corpo. A terra que sobrou espalhei-a nas zonas pisoteadas e aumentei o cômoro das couves.

Voltei para casa, mas não consegui dormir. Nem ontem, nem hoje. São quatro da manhã e estou tão desperto como se tivesse dormido oito horas. Oiço um melro que não para com a cantoria. E só imagino coisas. Lembrei-me outra vez dos homens de negro. A cor negra do pássaro não é por acaso. Deve ser um sinal deles. Será que eles viram tudo? Não sei o que fazer.

*

Caramba! Tinha pensado em inúmeras situações que podiam ter obrigado o Marteladas a desfazer-se de uma folha do diário, desde roubos inconfessáveis, até maroteiras lúbricas, mas nunca suspeitei que ia encontrar um crime de sangue. Era disso que se tratava, sem dúvida. E tudo indicava que, apesar de alguns aspetos delirantes, o Marteladas era um indivíduo imputável. Tinha de ir à Polícia. Estava certo de que, apesar de não dispor da folha de diário original, facilmente conseguiria que a Polícia se interessasse pelo provável homicídio perpetrado por ele.

Chamem-me a mim delirante, se quiserem, mas, por um momento, tive medo de uma improvável construção ficcional do Marteladas. Um lampejo fez-me temer que aquela mente desvairada tivesse arquitetado um episódio excitante na monotonia da sua vida. Recobrei rapidamente o bom senso e afastei a apreensão de um possível ridículo ao perceber que, nesta hipótese, fazia pouco sentido a folha arrancada. Ainda assim, antes de ir à Polícia, resolvi obter maiores certezas. Sabia da existência de algumas referências — o “Bairro dos Sinistrados”, as hortas junto à rotunda, o café do Sr. Manel —, e foi por este que comecei: se conhecia alguém com a alcunha de Marteladas e se se lembrava de um recontro dele com outros clientes, uns anos atrás.

Oh, esse já está engavetado há muito tempo. Então o senhor não se lembra? O tipo matou um desgraçado que ia à horta dele apanhar qualquer coisa para comer, em vez de andar aos caixotes. Coitado!

Inesperada, é o que posso dizer desta revelação. Andava eu com tantos pruridos, com tantas cautelas e, afinal, já estava tudo resolvido.

Ah, sim? Sabe, eu moro aqui há poucos anos. E como é que o apanharam?

Parece que foi ele que se entregou. Eu não sei bem a história, mas acho que foi isso que veio nos jornais.

Isto também não me pareceu normal. Todos os criminosos tentam esconder o crime para salvarem a pele e este entregou-se? Pelo Sr. Manel soube onde era a casa do Marteladas — que, vim a saber, se chamava Francisco Gomes —, onde a mulher continua a viver e para lá me dirigi, um pouco sem pensar.

A mulher recebeu-me com a típica farda das donas de casa — uma bata às florinhas miúdas. Sem nunca referir a questão do diário, apresentei-me como um conhecido do marido, dizendo que nos encontrávamos por aí, quando também eu andava ao metal, mas que tinha estado fora uns anos e que só agora tinha sabido da prisão dele.

Ele nunca lhe falou no Esteves?

Fez que não. Se desconfiou, não o manifestou. Mandou-me entrar, “para as vizinhas não darem fé”, e, às minhas perguntas orientadas, foi informando que o marido, depois de ter morto o homem, andava alterado.

E eu sem saber porquê. Não dormia, estava sempre irritado, achava que andava a ser vigiado. O que, pelos vistos, era verdade.

Ah, sim? — incitei.

Pois! A certa altura, recebeu uma carta anónima com insinuações sobre algo que essa pessoa sabia. O meu marido ficou desvairado. Tudo o que ele suspeitava se confirmava. Ficou muito tempo a pensar, tão impaciente que eu não lhe podia dizer nada. Andou a remexer nos papéis dele, a rasgar coisas. Depois foi à horta, mas não se demorou. Dias depois, outra carta. Era a confirmação da chantagem. Exigia cinco mil euros, senão denunciava-o à Polícia, sem nunca explicar o que sabia.

E, então, pagou? — perguntei genuinamente curioso.

O meu marido tinha lá cinco mil euros para dar assim! Se calhar, até arranjava, se pedisse uns adiantamentos, sei lá! Mas resolveu não pagar. Sabe, ele era muito reto. Isto que lhe estavam a fazer era tudo o que representava podridão para ele. Então, resolveu ir à Polícia com as cartas do chantagista, sem eu saber que era para se entregar. Não quis que a barafunda fosse aqui em casa.

Esta revelação não me apanhou completamente desprevenido. Pelo que tinha lido no diário, pareceu-me que ele tinha uma espécie de ética pessoal.

Em que prisão é que ele está?

Está em Pinheiro da Cruz. Mas acho que não fica lá muito tempo. Ele apanhou oito anos; já vê, a coisa não foi premeditada, aconteceu, e teve a atenuante de se ter entregado. Quando foi preso, foi um grande choque para mim, que não sabia de nada. Pensei que ia lá ficar para sempre, digamos assim. Até dei uma limpeza a fundo ali no escritório dele.

Posso ver? — apontei com o queixo para a direção que ela tinha indicado. — Só para saber se ele ainda gosta de livros esquisitos — sorri, atenuando a impertinência do pedido.

Gostar, gostava, mas deitei tudo fora. Aquelas palermices só lhe faziam mal. Qualquer dia está aí e, se calhar, ainda se vai zangar comigo por ter deitado aquilo fora.

Entrámos. Era uma marquise fechada com uma escrivaninha minúscula e uma cadeira. A parede tinha estantes de cima a baixo, organizadas em prateleiras temáticas. Ao nível dos olhos era a secção de divulgação científica: Sagan, Asimov, Gould, Dawkins, Clarke, e outros nomes menos conhecidos. À direita, ficção científica e policiais. À esquerda, seria a secção “arrumada” pela mulher: restavam uns títulos “esquisitos”, relacionados com religião e marianismo. As prateleiras cimeiras deviam corresponder a ciência, propriamente dita, onde identifiquei nomes como Galileu, Crick, Darwin, Freud, Jung. Surpreendi-me de ver História e Política a partilhar uma prateleira e de uma inteira com livros sobre Arte e outra com Poesia. Este Marteladas — não é fácil adaptar-me a Francisco Gomes, depois de o ter tratado tanto tempo pela alcunha — é um indivíduo surpreendente, pensei.

E o morto? Sempre era um que tinha tido uma rixa com ele, além no café? Contaram-me… — disse eu, cautelosamente, com medo de denunciar o pormenor do diário.

Não, veja lá! Era o vizinho aqui da cave. Então, se nós soubéssemos a miséria em que ele vivia não lhe tínhamos dado as hortaliças que quisesse? É a pobreza escondida. Olhe, tenho feito um esforço para tomar atenção a algum caso parecido que haja por aí. E já tenho dado aos vizinhos. Agora, sou eu que trato da horta, sabe? Temos que nos desenrascar, não é?

E o chantagista, apanharam-no?

Acho que não, mas preferia não falar muito disso. Nunca se sabe. O meu marido suspeitava de alguém que tem uma janela que dá lá para a horta. Mas ainda fica desviada. Não sei.

Despedi-me e prometi visitar o marido na prisão. Não só precisava de manter a coerência da minha história, como fiquei verdadeiramente curioso por conhecê-lo.

No dia seguinte, fui a Pinheiro da Cruz, armado de bloco de notas e minicâmara. E o último livro do João Magueijo, como prenda. O Marteladas tinha uma tez levemente sanguínea, nariz um pouco abatatado, era alto e bem constituído, aparentando menos idade do que os 63 anos declarados. Estranhou a minha visita, por não me conhecer, mas eu disse-lhe que era um jornalista do Correio da Manhã e que estava a organizar uma reportagem que reabilitasse a imagem de presos que tinham matado por acidente. Contou-me tudo o que eu já sabia mas, quando lhe falei no chantagista, baixou a cabeça a sorrir.

Só falo disso se for off the record — exigiu.

Anuí, claro. Do meu lado era tudo off the record.

Sabe, eu vi-me muito apertado com a pressão dos remorsos, que vinha somar-se à vida atarefada e de pouca qualidade que eu levava. Estava farto. E cansado. Só queria sossego e descanso, mas o que me tinha acontecido não me permitia nenhuma serenidade. Fui eu que escrevi as cartas. Eu queria vir para a prisão, queria cumprir pena, para me livrar dos remorsos. Queria deixar de calcorrear as ruas à procura de metal. Queria deixar de ouvir novelas. Queria entregar-me, mas queria deixar a minha mulher a pensar que eu não tinha outra saída. Então escrevi as cartas, só para ela ler. Nem as mostrei à Polícia. E tive sorte, muita sorte. Aqui, Pinheiro da Cruz, é uma colónia penal agrícola. Os campos anexos da prisão são um paraíso para alguém que gosta de trabalhos do campo, como eu. Estou bem.

A minha capacidade de adaptação não me permitia mais surpresas. Despedi-me. A última visão que tive dele foi a de um rosto em grande serenidade. Antes assim!

Joaquim Bispo

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Este conto foi a base de um guião para cinema, desenvolvido pela realizadora Margarida Moreira, que intitulou “A Horta”, com o qual tem ganho vários prémios em concursos da especialidade. No passado dia 24/4/2023, em cerimónia realizada numa das salas do Cinema City do Campo Pequeno, recebeu dois desses galardões: “Best Short Screenplay” do Canada Independent Film Festival 2023; “Best Short Screenplay” do France International Film Festival 2023.

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Imagem: 

Eduardo Batarda, Néctar, 1984.

Centro de Arte Moderna, F. C. Gulbenkian, Lisboa.

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10/09/2021

Os ardis de Amaltescher

 

Amaltescher é uma colónia penal alucinante — sei que dificilmente me vão entender.

Na altura, eu pertencia à célula de Lisbuhan dos Albertianos — um movimento que tinha como referência os ensinamentos teóricos de Leon Battista Alberti e propugnava uma imaginária com a excelência representacional dos chamados pintores do século XV da era antiga. Éramos quase todos ex-estudantes de arquitetura que, por uma razão ou outra, nos tínhamos tornado representadores. «Com efeito, foi do pintor que o arquiteto tomou as arquitraves, os capitéis, as colunas e tudo o que faz o mérito dos edifícios» — argumentávamos a quem manifestasse estranheza pela opção que tomáramos. Usávamos quase sempre tecnologia eletrónica, mas, às vezes, preferíamos os métodos e os suportes analógicos, como adesão superlativa às práticas obsoletas dos criadores de imagens de há oitocentos anos, como Piero della Francesca ou Durer. A esta veneração interpúnhamos o filtro da naturalidade. Rejeitávamos as artificialidades, ainda que perspeticamente corretas, como os trompe l’oeil, mas abominávamos especialmente tudo o que indiciasse intenções de manipulação do espírito, como as deformações de El Greco, evidentes, ou as de Michelangelo, subtis.

Era esta recusa do artificialismo que nos levava a abdicar das representações holográficas, apesar da sua popularidade e da facilidade de criação que os equipamentos de última geração proporcionavam. Apenas a representação a duas dimensões perspeticamente inatacável, composicionalmente deleitosa e de matização venusta era o desafio que sempre procurávamos ultrapassar. E mensalmente fazíamos o nosso próprio certame expositivo — uma fila de ecrãs a todo o comprimento parietal de uma ala no centro discente, matizado com um ou outro suporte arcaico. Era a nossa vaidade e a nossa coragem. Percorríamos a exposição vezes sem conta em pequenos grupos a admirar e a criticar o que víamos.

Os aspetos que nos mereciam apreço eram invariavelmente brindados com uma citação do De pictura, de Alberti, que quase todos sabíamos de cor: «O maior trabalho do pintor não é fazer um colosso, mas uma história.»; «Não vejo caminho mais seguro do que observar a Natureza.»

Qualquer desatenção perspética, qualquer deformação ou incoerência detetada, era apontada de braço estendido e alvo de sarcasmos ruidosos, evocando aos gritos a norma hereticamente transgredida: «Esperamos que uma pintura pareça em relevo e que ela se assemelhe o mais possível aos corpos reais»; «Numa história, é preciso que todos os corpos se harmonizem pela estatura e pela função.» Quando o caso era grave, chegava-se frequentemente à execução sumária da obra e até a algumas vergastadas decididas pelo Coletivo Albertiano e aplicadas pelo Veteranus Albertianorum.

Só me alonguei nesta explicação para que percebam o contexto por detrás do que aconteceu e me deem razão no que fiz. Nessa noite tinha ido alimentar-me com dois colegas a um fornecedor alimentar, numa zona fora das nossas rotas habituais. A certa altura reparámos que havia umas quantas pinturas analógicas nas paredes, supostamente para as adornar. Levantei-me e fiz o giro de análise. O que vi não podia deixar-me mais irritado: eram umas pinturazinhas a tinta biótica, representando edifícios arcaicos das zonas reservadas, até com um apreciável tratamento lumino-cromático, mas… O ignorante que produzira aquilo nunca tinha ouvido falar em ponto de fuga — o rudimento dos rudimentos perspéticos. As linhas das cimalhas apontavam para uma zona do céu e as linhas dos lintéis das janelas e das portas apontavam para uma zona do piso a meio da rua. Chamei os meus colegas e, com a constatação daquela aberração representacional, começámos a lançar citações de Alberti: «Imaginar sempre uma linha transversal cortada por uma linha perpendicular, a fim de determinar na pintura uma posição fixa do ponto de vista.» A ira crescia dentro de nós. «Para um corpo retangular feito de ângulos retos, não se podem ver, com uma olhada, mais do que duas superfícies contíguas tocando o solo.» No auge da exaltação, peguei no forco da pasta proteica e desatei a esburacar aquelas indignidades. Logo um dos alimentários, um velho enrugado de cabelo pintado — que eu soube mais tarde que era o executante responsável — correu para mim, a tentar segurar-me os braços. Percebia-se que procurava defender aquela imundície. Não pensei ou talvez tenha pensado no que havia a fazer. Espetei-lhe o forco com força na lateral do pescoço. O que se seguiu nublou-se na minha memória, mas sei que senti uma grande serenidade, como quando se faz o que se espera de nós.

O processo judicial foi rápido e resultou num veredito cruel: ostracismo em Amalteia. O juiz devia ser um pós-picassiano: não teve em conta a atenuante de eu ter livrado a sociedade daquelas enormidades. Aliás, nem sequer proibiu o velho — que sobreviveu — de continuar a pintar. Tentou ainda dissolver a comunidade albertiana, mas isso não conseguiu. A ideia que a animava era mais intensa e íntima que a mera brandura conjuntural. Sei que o grupo continua a reunir-se, a espalhar os ensinamentos albertianos e a aprofundar a ligação entre os membros. Como tenho saudades do grupo e desses tempos! A vida em Amalteia era de uma crueldade sem nome, sobretudo para um homem com a minha preparação mental.

Amalteia ou Júpiter V é um dos satélites mais próximos de Júpiter. Minúsculo, é desde há uns quarenta anos usado como colónia de reeducação. Uma da dezena fora do planeta-mãe. O juiz não podia ter escolhido mais “acertadamente” o local de cumprimento da sanção. Claro que foi devido ao parecer do Conselho Normalizador que estudou o meu caso. Para me fazer sofrer. Tendo em conta o meu percurso de educação e de vida, as minhas escolhas, o meu pensamento, o que sou. Aquele mundo não fazia sentido. Depois de lá chegar, percebi muito bem por que há quem lhe chame Amaltescher, em referência ao alucinado criador de representações absurdas, irrealidades em imagem — Escher.

Com uma gravidade extremamente baixa, é um misto de anacronismos anatómicos, paradoxos geométricos e sobrepopulação. Tudo embebido num éter transparente, viscoso mas respirável, que deforma a perceção das formas. A fauna é variada, mas infinitamente metamorfoseável, quase fluida, resultado de evolução em condições de subgravidade. Como se percebe, é um mundo avesso a tudo em que acredito — rigidez, precisão, previsibilidade —, pelo que me era extremamente penoso viver ali. Era como se aquele mundo me estivesse continuamente a desmentir, a agredir, a humilhar. Nas primeiras semanas, eu e o grupo que chegou comigo, fomos obrigados a caminhar insensatamente numa espécie de sem-fins, para nos adaptarmos às condições singulares de gravidade e ilusão ótica. Durante horas incontáveis descíamos escadarias, sempre a descer, sempre a descer, mas não chegávamos a pisos inferiores — mantínhamo-nos no mesmo nível do edifício. Cruzavam-se connosco reeducandos de um grupo mais avançado, que subiam as mesmas escadas, interminavelmente. Mais tarde, passámos para um “nível” mais difícil: eram torres, edifícios, estruturas “impossíveis”, em que colunas da frontal do edifício sustentavam as traseiras do piso acima; em que cúpulas, a um tempo, eram abóbadas depois; em que escadas a ligar andares baixos e altos pareciam poder ser percorridas quer na sua parte de “gravidade normal”, como de “gravidade invertida” ou “lateralizada”, isto é, havia a ilusão de se poder caminhar tanto pelas paredes como pelos tetos.

Imaginem o que isso fazia à minha sanidade mental. Chamarem-lhe “reeducação” é de uma maldade obscena. Apetecia-me gritar: «Está bem, já percebi, estúpidos pós-naturalistas, já vi as vossas armadilhas surrealistas, mas não pensem que alteram a minha maneira de pensar. Na minha Terra é o rigor albertiano que explica a realidade. Isso é o que tenho de mais íntimo, de mais pessoal. Não se pode converter alguém que não queira. As inquisições descobriram-no pelo cansaço. Podem continuar com os paradoxos, que eu não abdicarei da minha certeza!»

Mais tarde, passei para o “convívio” com outros seres. Chamar-lhes seres é arrojado. Pareciam-me mais materializações ilusórias de formas de seres do meu planeta, como se aquele satélite captasse o meu pensamento, o interpretasse e o representasse. De maneira totalmente “herética”, para usar a minha tão cara terminologia albertiana. Um sofrimento intelectual permanente. Uma tortura. Uma impiedade. Cruzavam-se uns com os outros num trânsito compacto e inextricável. Continuamente alteravam as formas de modo a cruzarem-se sem se tocar. Os seres que passavam como um grupo de tartarugas, mais à frente já eram lagartos e depois abelhas, borboletas, aves, peixes. Em sentido contrário deslizavam cavalos, aves, peixes, formigas. Mas nas transições passavam por formas desconhecidas para mim, embora me fizessem lembrar formas da Terra. A única regra parecia ser a de evitar espaços vazios. Alguma diferenciação de cor era o fugaz alívio percetivo, ao permitir distinguir a demarcação entre seres.

Descobri a vulnerabilidade do sistema, por acaso. Todas aquelas formas eram bastante paradoxais e incongruentes, mas eram neutras, inócuas, quase decorativas. Discorrendo, pensei que o tormento de lhes estar exposto só era penoso intelectualmente. Bem pior seria se, além de aberrantes, aquelas formas fossem assustadoras, como as de Bosch. Automaticamente, visualizei um pormenor de uma pintura dele: um homem com uma cobra enrolada às pernas a ser engolido por um enorme sapo com botas bicudas. A este pensamento inquietado, uma forte flutuação do fluido imersor transmitiu-se às formas imediatamente. Os peixinhos a metamorfosearem-se em aves mudaram para peixes monstruosos, de bocarras assustadoras cheias de dentes, em vias de devorar pássaros de aspeto jurássico; cavalos não apenas deformados ganharam desfigurações doentias, tumores e pústulas, enquanto escaravelhos repugnantes lhes devoravam o pus. De repente, todo o espaço que me circundava era uma representação alucinante e amedrontadora das Tentações de Santo Antão.

Suspeitando do que acontecera, rapidamente me controlei. Fora muito evidente que a perturbação se devera à influência do meu pensamento. Outras experiências com evocações de obras de De Chirico e Dali convenceram-me disso. Mais tarde, percebi que a chave não era apenas a evocação, mas alguma perturbação de medo ou inquietação, no meu espírito. O que não acontecia com outras emoções. O que havia a fazer? Como poderia aproveitar aquela singularidade ambiental em meu proveito? Talvez… A ideia fulgurou no meu espírito: treinar-me para sentir apreensão, receio, medo, mas por imagens que me agradassem.

Pensam que é fácil? Havia que evocar imagens como A Virgem dos rochedos, sugestionar-me para sentir medo delas e, quando o fluido imersor gerasse o universo sereno e deleitoso da imagem, conseguir manter um sentimento de medo, enquanto tentava fruir aquela paz. A ambivalência de sentimentos necessária tornava a experiência extenuante, devido à concentração exigida. A princípio, o fingimento não resultou, mas depois tornei-me eficaz a interiorizar medo no meu espírito. Quando o consegui, pude sentir a harmonia, o apaziguamento, em ambientes de Piero della Francesca ou de Da Vinci. E, de vez em quando, permitia-me uma incursão em Botticelli. Mas era de mais. O medo construído começava a misturar-se com alguma aversão verdadeira. Então regressava a Ticiano, a Giorgione. Parecia que tinha conseguido escapar dos paradoxos e das aberrações. Parecia que conseguira burlar o sistema. Nada de mais errado.

Muito tempo depois, apercebi-me da armadilha. Cada vez era mais fácil recear as imagens de que gostava. O fingido ia passando a sentido. A certa altura, já sentia medo genuíno até da placidez de Bellini. E atrás da emoção incómoda de medo vinham sentimentos de desagrado, de asco, de rejeição. Sofria muito. Evocar uma imagem, mesmo a mais deleitosa, era equivalente a experimentar emoções de náusea e ódio. Paradoxo puro. Não tinha descanso. Não tinha para onde fugir. Nem daquele mundo, nem de mim. Estava desesperado.

Certo dia, recebi uma ordem de transferência. Não sei por que motivo, tinham resolvido comutar-me a reeducação em Amalteia para guarda no Museu do Renascimento em Lisbuhan. Conclusões e decisões do Conselho Normalizador... Não sei se tenho razões para me alegrar. Deambulando pelas galerias repletas de obras de arte, tenho um só truque; não para burlar o sistema, mas para sobreviver: limito-me a caminhar de olhos no chão, para não vislumbrar sequer as obras expostas. Não posso ver, não posso espreitar, não posso permitir que o meu olhar caia sobre alguma. Não posso sequer imaginá-las. Tento manter vazio o espírito, sempre ameaçado pelos terrores e os paradoxos imagéticos de Amaltescher. Assim sobrevivo.

Joaquim Bispo

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Imagem: M. C. Escher, O Encontro, 1944.

Coleção Elisha Whittelsey, Museu “Met”, Nova Iorque.

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