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10/12/2020

O Paladino

 


O rei Milore e Guloz, o senescal do rei Justin, caçam o veado na floresta de Gamywood. Estão acompanhados pela rainha Florence e pelos cavaleiros de ambas as casas. A manhã vai avançada e ainda não abateram qualquer peça de caça. Avistam um veado, um enorme “doze-hastes”, pastando calmamente numa encosta fronteira. Guloz levanta o arco. Ao ver tal, o rei Milore incita o convidado:

A esta distância, homem algum lhe consegue acertar!

Que prémio me dareis, se o atingir? ─ inquire Guloz, sobranceiro.

O rei semicerra os olhos e avalia a distância: “Impossível!”

O que me pedirdes! ─ declara o rei, categórico.

O senescal retesa o arco. Um gavião passa a voar à esquerda do grupo. Os corações dos homens do rei apertam-se. A flecha parte, voa como nunca se vira, dirige-se velozmente em direção ao animal. Surpreendentemente, trespassa o flanco do veado que logo cai morto.

Levanta-se um coro de regozijo na comitiva. O cavaleiro Potranc está apreensivo. O rei grita:

Hurrah! Que bela peça vamos ter hoje para a ceia. Felicitações, sire! Dizei-me, então, que prémio quereis por esta proeza. Palavra de rei não volta atrás!

Guloz olha em volta e dá com os olhos na jovem rainha.

Quero a rainha Florence.

Um rumor atravessa toda a comitiva. Os cavaleiros do rei agitam-se, belicosos. O mais exaltado é Potranc. O rei mostra-se pesaroso e impotente. Ouvem-se palavras de revolta. Há muitas mãos nos punhos das espadas. A rainha intervém:

Sires, mostremos nobreza aos nossos convidados; não os hostilizemos. Eu irei com sir Guloz, já que ele assim o quer e o ganhou pela sua destreza em desafio justo.

Guloz, seguido pelos seus cavaleiros, parte de imediato, levando a rainha Florence.

Potranc diz ao rei:

Vós, pela vossa palavra, nada podeis fazer, mas eu, que não aceito a perda da minha senhora, irei resgatá-la de Guloz.

O fogoso cavaleiro parte a galope, sem que alguém o tente demover. Embrenha-se no caminho da floresta, por onde o grupo desapareceu. Ao fim de um bocado, chega a um riacho cuja ponte foi derrubada; pelos homens de Guloz, certamente. Mete o cavalo à água, o qual luta para vencer a força da corrente com tal peso na garupa. Passam ambos o obstáculo, sãos e salvos.

Logo à frente, encontra dois cavaleiros do senescal, que montaram guarda. Postam-se a barrar a passagem a Potranc. Este desembainha a espada e investe contra o primeiro. Retinem os metais. O segundo cavaleiro ataca-o pelo outro flanco. Potranc espadeira à esquerda e à direita. Num golpe à perna, corta o estribo do primeiro, que se desequilibra e cai. Ao segundo, assesta um golpe no elmo, que o deixa atordoado.

Potranc não quer combater, só passar. Avança. Mais à frente, chega a uma bifurcação. Há sinais de cascos em ambos os caminhos. Vê um monge que anda a apanhar ervas medicinais para as suas mezinhas. Diz-lhe:

Meu padre, se vistes passar a comitiva do senescal Guloz, dizei-me por que caminho seguiu.

Todos os caminhos vão dar ao Senhor, mas o do evangelho é mais direto que o da epístola ─ responde o santo homem.

Deixai-vos de enigmas, que isto não é um romance de Chrétien de Troyes ─ riposta Potranc de mau humor. ─ Indicai-mo sem demora!

À vossa direita, sire ─ diz o monge, após o que murmura entre dentes: “Nada se pode ensinar a quem pensa que tudo sabe!”.

Potranc retoma o galope. A tarde inteira, Potranc cavalga a toda a brida e esporeia o cavalo que, não suportando tal esforço, tomba e morre. O cavaleiro prossegue a pé.

Num troço do caminho onde o matagal é mais espesso, Potranc depara com um enorme javali. O animal, ou porque está a defender o território ou porque acha agressiva a figura do cavaleiro a pé, arremete de presas prontas a rasgar o que se lhe meta à frente. Potranc, surpreendido, só pode saltar para o lado. A besta volta à carga, mas o cavaleiro, treinado em justas de lança, aplica um tal golpe, com a sua espada Morandina, na cabeça do varrasco, que este tomba de crânio aberto.

Potranc prossegue. De um ramal, surge um almocreve, com uma carga de loiça no seu carro puxado por uma mula.

Para onde vais, almocreve? ─ indaga o cavaleiro apeado.

Para o castelo do rei Justin. Se quiserdes, posso levar-vos ─ responde o carregador, solícito.

Potranc não tem outro remédio senão aceitar, apesar da situação pouco nobre para um cavaleiro. Toma lugar ao lado do almocreve e rumam ao castelo, onde espera encontrar a sua senhora. Chegam à noitinha.

Potranc, informado pelo seu benfeitor, dirige-se à torre onde Guloz habita. Sobe os degraus a dois e dois. O seu peito está cheio de receio, pelo que possa ter acontecido à sua rainha. Ouve a voz de Florence, em gritos de aflição. Vêm do ponto mais alto da torre. Lá chegado, Potranc encontra dois homens armados a defender uma porta. De trás dela, vêm os gritos da sua senhora. Louco de fúria, arremete de espada em riste contra os sequazes de Guloz. Tinem os ferros num bater ritmado, chispando a cada golpe. Guloz assoma, a ver o que se passa. Pela porta aberta, Potranc vislumbra a sua senhora de cabelos em desalinho.

Minha senhora, morrerei, se tal for preciso, para vos salvar ─ grita o cavaleiro, entre duas espadeiradas.

Guloz, com um gesto, manda parar o combate.

Que quereis daqui, cavaleiro?

A minha senhora, que vós, maliciosamente, usurpastes ─ responde Potranc enraivecido.

Vistes bem que não forcei o rei Milore a prometer-ma. Ganhei-a em aposta leal.

Aposta, sim, mas não leal. Um nobre cavaleiro, além do mais, convidado, não se aproveita assim, dum gesto magnânimo do seu anfitrião. Vós não tendes nobreza.

Já que quereis tanto bem à vossa senhora, prometo entregar-vo-la se cumprirdes com êxito três tarefas que vos vou indicar: matar o javali que vive na gruta do Diabo; enganar a bruxa do Penedo e fazê-la beber da sua própria poção; e encontrar-me a espada que deixei cair ao Lago do visco ─ enumera Guloz com um sorriso furtivo.

Não vou cumprir nenhuma dessas estúpidas tarefas ─ riposta Potranc. ─ Não que me intimidem. O mais certo é que não respeitásseis a vossa própria palavra e criásseis outros obstáculos. Vós sois matreiro e cobarde!

O cenho de Guloz carrega-se. Está prestes a bradar por reforços, quando chega o rei Justin, atraído pela algazarra que a luta na torre tinha provocado. Quer ouvir ambas as partes. Depois, sentencia:

Guloz tem razão porque, dadas as condições e embora sem nobreza, conquistou o direito a escolher a rainha como prémio, mas Potranc, como seu paladino, tem direito a procurar contestar essa condição que desonra a rainha e o rei Milore. Tal situação também me constrange e temo que ponha em perigo as boas relações que têm existido entre os dois reinos. Estais dispostos a lutar por Florence, em combate singular?

Ambos os contendores assentem. Na manhã seguinte, à hora combinada, em frente aos cavaleiros dispostos em fila e às damas da corte, que se aglomeram junto ao palanque real, alinham-se os antagonistas. Justin dá sinal para começarem. Cada um esporeia o cavalo que lhe foi distribuído e arremete contra o outro, de lança em riste. O primeiro golpe faz voar um troço da ponta de cada lança. Os cavaleiros voltam para trás e tornam a enfrentar-se. Uma e outra vez as lanças apontam ao peito do adversário e, todas as vezes, a espada do oponente afasta o perigo, com um golpe potente e decidido. Quando de cada lança não resta mais que um toco, trocam por novas e recomeçam o combate.

Neste reinício, Potranc engana o rival e atinge-o com a lança em pleno peito. Guloz é arrancado da montada e cai desamparado. Potranc não se aproveita da vantagem. Desmonta e prossegue o combate a pé. Guloz já se levanta e maneja a espada enraivecido. Durante muito tempo, os escudos ressoam com as pancadas dos ferros. Os cavaleiros que assistem mantêm-se silenciosos, mas as damas não conseguem evitar um ou outro grito de emoção. As maiores simpatias vão para o defensor da rainha Florence.

De repente, um brado. Potranc, entrando pela nesga entre a proteção do ombro e a do tronco, penetra a cota de malha de Guloz e atinge-lhe a carne. O senescal sangra abundantemente e parece exausto. Finalmente, cai de joelhos, sob o peso da armadura. O rei manda parar a disputa, não que Potranc faça menção de atacar o adversário no chão, mas por se tornar claro de que lado está a razão neste ordálio. A rainha Florence será confiada à proteção de Potranc; Guloz, sem honra para continuar a ser o senescal do rei Justin, será expulso do seu reino.

Após uma refeição festiva, Potranc e a rainha partem, cada um em seu cavalo, nobremente ajaezados. Embrenham-se na floresta, de regresso ao seu castelo, mas por um caminho que evita a ponte caída. A tarde vai soalheira, a floresta enche-se de cores fortes, mas nenhuma parece mais agradável a Potranc que o dourado que se solta em chispas, quando o sol atinge a cabeleira loura de Florence.

De repente, um texugo passa a correr à frente do cavalo da rainha. Este assusta-se e toma o freio nos dentes. Potranc vai atrás, tentando travar o galope louco do animal. Embora o comando dum cavalo não tenha segredos para a rainha, desta vez, não consegue dominá-lo e cai, felizmente, sobre um tufo de junco. Não se magoa. O cavalo desaparece pelo caminho que seguem e que serpenteia por entre as árvores. Não há outro remédio senão subirem para a mesma montada e viajarem muito mais devagar.

Daí a pedaço, o sol baixa e a floresta começa a escurecer. Passam por um forno de carvão, chegam à cabana do carvoeiro, que parece não receber o dono há semanas, e resolvem pernoitar ali. Enganam o estômago com maçãs silvestres e descansam, como podem ─ Florence no catre do carvoeiro e Potranc reclinado sobre a sela.

Na manhã seguinte, quando Potranc acorda, fica amorosamente enlevado pelo rosto adormecido da sua senhora sobre um mar de fios dourados, cujas ondas enrolam na cabeceira. A rainha acorda também e percebe o arrebatamento no olhar claro do seu paladino, iluminado pelos alvores da manhã.

Bem conhece ela o entusiasmo que o cavaleiro põe nos poemas e louvores que canta à sua beleza e a outros atributos e talentos, nos alegres e prazerosos serões do castelo, e lhe valem, não sem fundamento, o epíteto maldoso de “lançarote”. Sim, é certo que, muitas vezes, vai visitar o leito de Milore, mas com a alma deleitada pelas palavras e as canções de Potranc. Não será o rei que reclamará por esse acréscimo de languidez.

Eis agora junto a si, de olhar apaixonado e depois de se ter sujeitado a tantos perigos para a salvar, o mesmo generoso e bravo jovem que tantas vezes a faz sonhar nos jogos de amor cortês. Os seus olhares fundem-se numa comunhão de almas mutuamente afeiçoadas. Uma enorme ternura invade Florence que quase desfalece. Os corações abandonam-se à vontade do destino. Nenhum tenta resistir à atração.

Os lábios encontram-se e os corpos pressionam-se um contra o outro num paroxismo de desejo há muito sublimado. As mãos libertam roupas e tateiam geografias ocultas. Potranc vislumbra finalmente o mármore e a seda que tantas vezes adivinha no corpo da sua senhora, quando nele cogita. Florence entrevê nos peitorais do cavaleiro a potência do Arcanjo Miguel. O encontro da seda e do couro não pode ser dito por palavras; o purgatório deve ser assim; o advento do paraíso é uma urgência.

Mas o corpo de Potranc, tão lesto e magnânimo quando, na solidão do seu leito de cavaleiro, fantasia com a rainha, mostra-se agora preguiçoso e refratário. A iminência de receber, sem resistências nem hesitações, a rendição da fortaleza, que sempre lhe parecera inexpugnável, desarma-o. A retirada é sombria e embaraçosa.

Florence cicia um «Não faz mal, meu paladino!». Acrescenta no mesmo tom «Sei agora que me respeitais tanto como me amais», enquanto lhe acaricia o rosto, onde uma névoa de tristeza se instalou. Ficam muito tempo abraçados, envoltos no chilrear matinal da passarada em afazeres primaveris. Aninhado nos braços da sua senhora, Potranc adormece sobre o seu seio.

Nesse momento, o cavalo de Potranc relincha e ambos percebem que é tempo de regressar aos domínios do castelo, onde, desde os servos da gleba ao castelão, todos os esperam inquietos, sem saberem que Potranc já resgatou galhardamente a rainha e a traz de volta sã e salva.

Cavalgando com a sua senhora à garupa, Potranc é a imagem imponente do paladino intrépido e abnegado.


Joaquim Bispo

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Imagem: Henry J. Ford, Lancelot traz Guenevere a Arthur, 1902.

Ilustração de O Livro de Romance, de Andrew Lang, de 1902.

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