É
a noite de 21 de dezembro — a mais longa do ano que vai terminar em
breve. No silêncio do seu quarto de solteiro, Luís fuma, embrenhado
numa meditação encorajadora. Pressente-se o ânimo cósmico da mudança de ciclo, como promessa de renovação. Observando, absorto, o fio de fumo do cigarro, Luís toma a decisão. Inabalável:
«No
próximo ano é que é. Começo logo no dia 1. Não fumo mais. Ou bem
que tenho vontade própria ou não. Estou farto de que me chamem a
atenção para não fumar aqui, nem ali, nem em lado nenhum.
Sinto-me discriminado, excluído, insultado. E os que já fumaram são
os mais fundamentalistas. Não sei que raio de mecanismo psicológico
é que os afeta. Será porque antes se consideravam perseguidos como
eu me sinto agora? Será que eu também vou passar a maçar os outros
por estarem a fumar num lugar onde, eventualmente, não se deve
fumar?»
«Há
pessoas que são torcidas e maldosas. Lembras-te, Luís, quando
estavas a jantar sozinho no balcão corrido daquele snack-bar?
E aquela velha que entrou — tica, tica, tica, tica — naquele
passinho miúdo? Tinha as mesas quase todas vazias. E ao balcão só
estavas tu e mais um casal. Pois a malvada velha atravessou o
estabelecimento todo e veio sentar-se ao teu lado. E apenas se
sentou, virou-se para ti, lembras-te?, e vai de dizer que ali não se
podia fumar, e que não tinha que estar a levar com o fumo do teu
cigarro, e frito e cozido. Não há paciência!»
«Este
ano tem de ser Luís! Custe o
que custar. Eu sei que é difícil, sei-o bem. Há três anos que
andas nisto: a tentar fumar pouco e não consegues. Fizeste enormes
progressos, reconheço, mas falta o rabo, que é o mais difícil de
esfolar. Começaste por vinte minutos. É pouquíssimo. Mas, antes de
tentares fumar pouco, havia situações em que apagavas um e
acendias outro. E, se estavas muito concentrado ao computador,
chegavas a acender um, com outro ainda a arder no cinzeiro. Durante
uns segundos meditavas nisso. Mas adiavas uma decisão que iria mexer
contigo.»
«Há
uns cinco anos, chegaste a estar três meses sem fumar. Lembras-te
como de repente voltaste a sentir os sabores da comida e da bebida —
intensos — e os cheiros, tantos e tão ricos, e de que já te
tinhas esquecido? E te apercebeste de como
cheiravam as tuas roupas? Já para não falar da centena de euros que
de repente te sobravam e que orgulhosamente gastaste em mimos para
ti, que bem merecias! Mas, depois, as contrariedades da vida… És
muito sensível à tristeza e à frustração. É nessa altura que
precisas de um cigarro. Precisar mesmo. Há pessoas —
já conversaste com muita gente sobre este assunto —
cujos momentos fatais são aqueles em que se sentem bem, aconchegados
no calor do grupo de amigos. Beberam um café, a conversa está boa…
Para culminar... um cigarro. E então se meter álcool… Quem pode
aguentar um cocktail
num ambiente descontraído, rindo com os amigos, sem puxar por um
cigarro?»
«Começaste
por vinte minutos. Punhas o telemóvel para tocar de vinte em vinte
minutos. Era fácil. A cada semana aumentavas cinco minutos. Em dois
meses chegaste a intervalos de uma hora. Aí, já custava. Mas foste
forte e disciplinado. Às vezes, parecia que nunca mais passava o
tempo. Sacavas amiúde do telemóvel para consultar as horas.
Finalmente, chegava o momento de fumar. E relaxar. E andaste com este
ritmo uns dois anos. Já só fumavas menos de um maço por dia. Já
era melhor. Mas ainda tinhas expetoração negra de manhã. E
catarro. E as pontas dos dedos amarelas. E ainda sentias que te
cansavas mais do que o devido, se tinhas que subir umas escadas mais
depressa. Começaste a sentir menos respeito por ti próprio. Que
raio, não teres força de vontade para fumar ainda menos! Então,
deste a arrancada final —
pensavas tu. Voltaste a aumentar o intervalo. Em cada semana
acrescentavas um quarto de hora. Em pouco tempo chegaste às três
horas de intervalo. Voltaste a sentir-te orgulhoso e auto-confiante.
Já só fumavas uns seis cigarros por dia. O pior era o fim do dia.
Era difícil ires deitar-te sem fumar um último cigarro. E não ias
esperar que chegasse a hora. Quebravas ali, excecionalmente,
o esquema. Fumavas e relaxavas, e ficavas um pouco a saborear
o momento. E, de repente, tinha passado mais uma hora… e não era
fácil adormecer sem fumar um último cigarro… E neste ciclo
vicioso fumavas três ou quatro.»
«Mas
agora cansaste-te. Agora não vais vacilar. Arquitetaste o teu plano,
meticulosamente, sem dizer nada a ninguém. Estás decidido. A 31 de
dezembro fumas o último cigarro. E nunca mais lhe vais pegar. Sabes
bem que nunca estarás curado.
Serás sempre um convalescente, um viciado em fase de não-consumo. E
ressaca. Sabes que, se
deres uma “passa”, podes voltar a fumar tanto ou mais do
que fumavas antes. Sabes
que o teu corpo, as tuas células em carência, vão inventar todo o
tipo de argumentação para te levarem de novo ao consumo. Não vais
aceitar nenhuma justificação. Não serias tu a falar, mas a
carência. Agora, estás bem alerta. Pensaste em tudo já há
muito tempo. Tomaste a decisão. Inabalável.»
Luís
está decidido, mas... será
que consegue superar a última prova, a
do amor?
Ele
ainda não sabe, mas, na noite de Natal, o pai vai-lhe oferecer uma
cigarreira em aço gravado, distinta; a mãe, uma boquilha equipada
com um filtro especial para reduzir a nicotina; a irmã, um cinzeiro
em porcelana; e a namorada vai-lhe fazer a surpresa daquele isqueiro
Ronson eletrónico em plaquê
que uma vez tinha cobiçado!
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Otto Dix, Autorretrato,
fumando, 1912.
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(Este
conto foi publicado no número 12
da revista literária virtual
Samizdat, de
janeiro
de 2009.)
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