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10/10/2020

O homem invisível

 A H. D. — amigo e mestre

 


Conta-me uma história verdadeira, avô! — lança o menino de uns oito ou nove anos. — Daquelas da televisão!

Desde pequeno que o ancião lhe conta histórias do seu passado profissional na televisão pública, sobretudo as dos tempos pioneiros. Recorda com prazer esses episódios antigos e surgem-lhe mais nítidos do que as vivências recentes. A idade traz destas contradições.

Já tas contei todas, Ricardo! — mente ele, conscientemente. As histórias não acabam nunca, sabe-o bem, a única limitação é a memória. — Queres qual?

Aquela da avaria das luzes da câmara do locutor; e ele fazia caretas, a pensar que a câmara não estava a transmitir — entusiasma-se o miúdo.

Aquela lembrança divertida traz-lhe instantaneamente, sem saber por quê, outra recordação antiga, passada também no mesmo estúdio. Não sabe se já a contou, mas envereda por essa peripécia:

Vou-te contar a do Homem Invisível — declara, confiante na proposta.

Conta, avô, conta! Essa não conheço — delira a criança.

Foi assim: no princípio da Televisão, havia um programa que passava filmes policiais e que era apresentado por um senhor que se intitulava “Inspetor Varatojo”. O senhor explicava muitas coisas dos filmes e a maneira como os polícias e os detetives, por meio de raciocínio e muita observação, descobriam os bandidos que faziam os crimes. O programa era só isso: o senhor a explicar estas coisas e depois passava o filme. Mas era muito popular.

Ricardo começa a ficar parado, preso à história.

Como só tinha um senhor a falar, o programa era feito num estúdio pequenino, ainda mais pequeno do que esta sala. E não precisava de mais do que duas câmaras: uma para dar a cara do senhor e outra para o mostrar em tamanho maior, a ver-se em fundo uma secretária ou um mapa ou algo assim. Na altura, eu era operador de câmara, mas fazia o que fosse preciso, das coisas técnicas. Nessa época, éramos “meia dúzia”, éramos como uma família. Ora, certa vez, o senhor Artur Varatojo — era assim que ele se chamava — precisou de ir ao Brasil, lá por coisas dele. E, portanto, não podia estar cá para apresentar o programa, que passava uma vez por semana.

Então, gravaram-no a falar no estúdio, antes de ele ir embora, e no dia do programa passaram o vídeo! — deduz o rapazito, já muito rodado em tecnologias.

Pois… O problema, Ricardo, é que nessa altura não havia gravadores de imagem, só de som… — articula o avô, ciente da mossa que está a causar nas certezas do petiz e do aumento de curiosidade que lhe está a suscitar.

Não havia, avô? Como é que isso podia ser?

Era! Não havia. Tudo era feito em direto: peças de teatro, concertos, provas desportivas. Só se filmava quando alguma coisa não se conseguia passar em direto.

Já sei, filmavam com uma máquina fotográfica, como aquelas que tens guardadas — adianta-se o neto, a agrupar informações.

Isso! Mas maiores; máquinas de filmar que usavam grandes rolos de fita de filme. Era um processo complicado, demorado e caro. Por exemplo, as notícias para o Telejornal eram captadas em filme. O operador, depois de as filmar, voltava para os estúdios, levava o filme ao laboratório, onde era revelado; depois era montado, para tirarem as partes sem interesse, e só então era posto na máquina que o transmitiria durante a emissão do Telejornal — descreve o ex-técnico com pequenos lampejos no olhar. — Percebeste tudo?

Hmm! Acho que sim. O avô já tem falado disso.

Mas, dessa vez, não filmaram o Inspetor Varatojo, já não me lembro por quê. Se calhar, foi porque gostou da solução engenhosa que combinou comigo.

O quê, avô, tu é que resolveste o problema? — recrudesce o entusiasmo parental do rapaz.

Já não me lembro de quem teve a ideia. Sei que nessa altura — o antigo operador de câmara semicerra os olhos, a concentrar-se na memória, que cada vez está mais volátil — devia ser aí por 1961, 62..., andavam a passar na televisão os filmes do Homem Invisível. Com grande êxito. E uma coisa levou à outra. Pois se o Inspetor não estava cá… estava invisível. Às vezes umas ideias puxam as outras.

O quê, avô, o quê? — o jovem não cabe em si de excitação.

Pensámos pôr o Inspetor Varatojo a apresentar à maneira do Homem Invisível! Embrulhado em ligaduras? Não; invisível. Só com a voz dele.

Eh, avô, isso era batota, não? Só o som?

O problema é que ficava uma imagem muito pobre, sem movimento. Televisão são imagens a mexer. É o que as pessoas esperam. Então, resolvemos dar-lhe algum movimento, para parecer verdade. Fizeram-se as gravações de som do Inspetor Varatojo a apresentar os seus filmes policiais e ele pôde ir à vida dele.

Com tanto contacto com filmes, o ex-técnico aprendera alguma coisa da maneira de fazer render uma história, até porque também passara pela realização.

O que combinaram, avô? Diz, diz! — desvaira o moço, de suspense.

No dia do programa — acho que era às segundas-feiras — apontou-se uma câmara de frente para uma secretária, com uma máquina de escrever em cima; outra câmara só a mostrar a máquina, do ponto de vista de quem estivesse sentado a escrever à máquina. Era uma máquina daquela época, grande, mecânica, com uma letra metálica em cada braço comandado por uma tecla. À hora do programa, quem estivesse em casa a assistir ouvia o bater das teclas e a voz de sempre a apresentar os filmes, mas não via o Inspetor, supostamente sentado à secretária, a ler o que batia à máquina; só a secretária e a cadeira vazia.

Um sorriso deliciado, mas subtil, aflora o rosto do narrador.

A outra câmara ia mostrando a máquina de escrever a bater as teclas sem ninguém lhe tocar. Ninguém, não! A voz do Inspetor avisara no princípio, em tom maroto, que nesse programa ele próprio estava invisível…

Boa, avô; fantástico! Isso devia ser ainda mais interessante do que nos outros dias, não? Mas como é que as teclas batiam sozinhas?

Eh, eh, eh! — a voz excitada do miúdo é música para os ouvidos do ancião. É hora de lhe fazer, finalmente, a revelação. — Por baixo da secretária em que a máquina estava pousada, estava eu, com dez cordéis presos aos dedos, cada cordel atado a um dedo e a um braço da máquina… Enquanto ouvia a voz gravada do Inspetor, eu ia puxando ora um, ora outro cordel, dando a ideia de que o Inspetor invisível é que estava a acionar as teclas...

Caramba, avô! Afinal, nesse dia, o homem invisível eras tu!

Sim, e era duplamente verdade — eu também estava bem invisível por debaixo da secretária.

E as pessoas a julgar que era o Inspetor Varatojo invisível… Esta foi boa, avô! O teu trabalho devia ser muito divertido. Quando for grande, também quero ir trabalhar para a Televisão. Agora, queres jogar às escondidas?


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 22ªedição (julho/agosto de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 130 a 132).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_22__edi__o

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Imagem: René Magritte, O Espelho Falso, 1928.

Museu de Arte Moderna (MoMA), Nova Iorque.

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