10/01/2017

Ano Novo — Vida Nova!

É a noite de 21 de dezembro — a mais longa do ano que vai terminar em breve. No silêncio do seu quarto de solteiro, Luís fuma, embrenhado numa meditação encorajadora. Pressente-se o ânimo cósmico da mudança de ciclo, como promessa de renovação. Observando, absorto, o fio de fumo do cigarro, Luís toma a decisão. Inabalável: «No próximo ano é que é. Começo logo no dia 1. Não fumo mais. Ou bem que tenho vontade própria ou não. Estou farto de que me chamem a atenção para não fumar aqui, nem ali, nem em lado nenhum. Sinto-me discriminado, excluído, insultado. E os que já fumaram são os mais...

10/12/2016

Pouca sorte

Há dias em que um homem não devia sair de casa; o problema é que só o sabe tarde de mais, como bem se lamenta o meu vizinho António, que me contou o que se segue: Foi aos Correios levantar uma encomenda e deu de caras com um antigo colega da Secundária, a quem na altura toda a gente chamava «Fosquinhas». Feitas as saudações e as manifestações de regozijo adequadas a um desencontro de mais de vinte anos, António fez a pergunta que o perdeu: — Então, vai tudo bem contigo? Gustavo, o amigo, desforrando-se de um longo jejum de ouvintes complacentes, sorriu tristemente, antes de desenrolar...

10/11/2016

A Vida Continua

Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm avenidas bordejadas de “palacetes” e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitetura que, ao longo dos tempos, tem refletido a arquitetura dos vivos. E mais bem preservada do que a da cidade dos vivos. É que, nessa cidade dos mortos, não é necessário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros. Veem-se jazigos de todos os estilos: neogótico, neomanuelino, neoclássico, “casa portuguesa”. Uns, imponentes, a refletir a importância do defunto...

10/10/2016

Um assassino online

Quando os inspetores chegaram ao local do crime, encontraram a jovem aspirante a escritora de cabeça tombada sobre o teclado do computador e, no chão, uma poça de sangue que escorria do flanco esquerdo, onde um abre-cartas se mantinha espetado. — Bela encrenca temos aqui — desabafou o inspetor Magalhães. — Ainda estava à espera que fosse um suicídio, mas com a lâmina neste ângulo não é viável. — E para homicídio também não está fácil — continuou o subinspetor Barbosa, denunciando a completa concordância com o chefe. — A porta não foi arrombada, não há sinais de luta e o namorado está no...

10/09/2016

A faixa branca

Ah, a Irlanda! — a ilha que exibe o permanente verde dos seus campos numa faixa da bandeira. Há quem diga que a faixa alaranjada no outro extremo é a cor do uísque. Ah, os pubs, a festa, a herança celta. E a faixa branca, a meio, faz-nos lembrar o quê? A pureza perdida das crianças? Um relatório divulgado há poucos anos revela que, entre 1930 e 1990, milhares de crianças carenciadas, que tinham sido acolhidas por instituições religiosas irlandesas, foram objeto de violência e abusos sexuais por parte de centenas dos seus cuidadores. O facto choca, sobretudo, porque os acontecimentos tiveram...