10/06/2015

O Retrato do Juiz

O pintor contemplava o retrato do juiz no cavalete e os seus olhos teimavam em fitar o olhar incisivo do retratado, muito firme, muito intenso. Parecia vigiar-lhe cada movimento. Era perturbador. O cliente já devia ter ido buscar o quadro, mas não havia maneira de aparecer. Júlio começava a ficar impaciente. Não que o dinheiro lhe fizesse muita falta, mas o olhar do retrato inquietava-o. Cada vez que o observava, parecia encontrar-lhe novos aspetos fisionómicos. Como se tivesse vida. Era, sem dúvida, das suas obras mais conseguidas. Desde novo que, nas suas mãos, as telas se povoavam...

10/05/2015

A Luz de Delft

O que vou contar começou na semana após o Natal, ao chegar a casa, cerca das cinco da tarde. Depois de me pôr à vontade, preparei um copo de leite-com-chocolate morno, juntei um pacote de bolachas recheadas e fui lanchar para a sala, enquanto via televisão. Foi já no fim do lanche que o vi: o carteiro de Pablo Neruda, como eu me lembrava dele no filme, estava mesmo atrás da rapariga que lê uma carta junto a uma janela aberta, na reprodução pintada de Vermeer, que tenho por cima da escrivaninha. Primeiro, fiquei estático, sem saber bem o que pensar. Depois, observei as bolachas e cheirei...

10/04/2015

O atraso da primavera

Há muito, muito tempo, quando os homens viviam ao ritmo das estações, houve um ano em que a primavera se atrasou para além do habitual. Passou março, abril ia adiantado e nem sinais dela. O verão, lá dos pomares que habitava, olhava, olhava e os campos que vislumbrava mantinham-se desolados, gelados, batidos pelo vento. Temendo pela eclosão das sementes e preocupado com o que pudesse ter acontecido à primavera, resolveu procurar o outono para lhe comunicar o que estava a acontecer e decidirem o que fazer. Muniu-se de uma coroa de raios solares e pôs-se a caminho. Em breve atingiu as...

10/03/2015

Os ratos

Pelo Carnaval, encontrei um amigo que já não via há uns anos. Falou-me com entusiasmo de uma compra que entretanto fizera — uma casa no campo que, segundo disse, era um elixir miraculoso para a pressão da vida na cidade. Satisfeito com o meu interesse, acabou por insistir em me emprestar a casa, para lá ir passar uns dias. Eu aceitei com agrado e muita curiosidade. Mas o meu amigo avisou-me: — Olha que é capaz de haver lá ratos! Da última vez que lá estive, havia. Na manhã do sábado seguinte, rumei às Beiras, com a minha mulher. Mas antes preveni-me. Fui à drogaria e comprei...